Sociólogo
Desde há quase cinquenta anos que nos podemos orgulhar por não existirem presos políticos ou prisioneiros por delito de opinião, nem exilados forçados a viver no estrangeiro.É provavelmente a primeira vez, em muitos anos ou em séculos, que tal se verifica.
Em 1974, Portugal estava longe de ser um país desen- volvido. Muitos eram os indicadores que revelavam o grande atraso relativamente aos países europeus: o analfabetismo, os salários e o rendimento, por exemplo. A saúde pública e a Segurança Social eram incipientes. Em 1970, 52% das casas não tinham água canalizada, 70% não tinham banho, 40% não tinham instalações sanitárias e quase metade não tinham electricidade nem ligação à rede de esgotos. Os analfabetos eram um terço da população. Tínhamos a mais alta mortalidade infantil da Europa e a mais baixa esperança de vida à nascença. E os números relativos à emigração de portugueses para o estrangeiro, quase um milhão e meio em quinze anos, revelavam uma realidade indiscutível.É verdade que Portugal pertencia ao grupo dos países desenvolvidos, mas ocupava o último lugar. Numa só breve frase, era, no mundo, o mais pobre dos mais ricos.
O atraso não era apenas o dos números, nem o das realidades económicas. A sociedade era um retrato dessa condição. Quem, entre os mais velhos, não recorda como os pobres de pé descalço passavam na rua, como os trabalhadores falavam com os patrões e como os empregados olhavam para os seus directores? Quem, entre os mais novos, não ouviu falar do ambiente de desconfiança, de reverência acrítica e de submissão existente em tantos locais, em tantas instituições e no espaço público em geral? Quem não tem ainda na memória os olhares por cima do ombro, nos cafés e nos cinemas, à procura de quem nos ouvia e de quem simplesmente mostrava curiosidade? Quem já esqueceu a condição das mulheres que tinham o acesso vedado a certas profissões como a justiça e a diplomacia, que figuravam nos passaportes dos maridos e que deles tinham de obter autorização para viajar ou abrir uma conta no banco? Quem, como leitor, escritor, académico ou jornalista, nunca foi vítima de uma censura sempre presente e atenta?
Tudo o que precede era verdadeiro. Mas não era toda a verdade. Também o era a evolução recente da sociedade e da economia que dava sinais favoráveis. O crescimento económico era real há mais de dez anos, o que se devia em grande parte à Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA), à industrialização recente e à emigração. Portugal vivia praticamente em pleno emprego e em muitos sectores da economia, faltava mão-de-obra. A população escolar e o acesso ao Ensino Superior atingiam valores nunca antes alcançados. Os serviços de saúde pública, para todos e especialmente para os funcionários públicos, tinham-se alargado. O número de beneficiários da Segurança Social, reformados e pensionistas, aumentava consideravelmente.
Eram reais estes progressos sociais e económicos, mas, em contraste, o regime político encontrava-se bloqueado. A ditadura mantinha-se, prosseguia a guerra colonial e as aspirações democráticas não encontravam satisfação. A guerra em África era o principal problema, o primeiro estrangulamento. Paradoxalmente, o enorme esforço de guerra coexistiu com a década de maior desenvolvimento. Apesar de as economias ultramarinas estarem em período de notável crescimento económico (entre os mais elevados de África), perpetuavam-se os conflitos armados e não se via qualquer hipótese de solução política. O descontentamento, na juventude e nas Forças Armadas, era cada vez mais real e visível. A partir de finais de 1973, numerosos oficiais do quadro e milicianos começaram a discutir a situação militar e política e a reflectir na maneira de pôr termo ao impasse.
Tudo se passou em segredo conspirativo. Em poucos meses, organizou-se o MFA (Movimento das Forças Armadas) que tomou a iniciativa do golpe de 25 de Abril. Era necessária uma grande ousadia, mas a operação foi relativamente fácil: quase ninguém acorreu a salvar o regime e os seus responsáveis. Facto particularmente relevante, o apoio imediato da população foi assinalável. Em poucos dias se percebeu que a ordem estabelecida ia mudar, que os órgãos de soberania e as principais instituições políticas seriam derrubados ou dissolvidos e que estava aberta uma via para mudar de regime, possivelmente para fundar uma democracia.É este gesto que comemoramos hoje e que em breve fará 50 anos.
O 25 de Abril não era um programa político, não tinha conteúdo social e económico
Mais de metade da população portuguesa nasceu já depois de 25 de Abril de 1974. Os que nasceram antes são uma minoria, sendo que muitos destes nem sequer tinham idade suficiente para perceber o que acontecia então e para se lembrar hoje. Ao lado de outras comemorações, esta data parece ter uma presença indelével. O que faz com que ainda tenha eco? Creio poder afirmar que é por causa da liberdade. Não por acontecimentos políticos passageiros. Não por factos polémicos com vitoriosos e derrotados. Também não por uma espécie de liturgia laica, mas sim por esta razão singela: a liberdade.
É verdade que o principal móbil do golpe dos oficiais foi o de cessar a guerra em África, mas ninguém duvidava de que esse objectivo só seria atingido com o derrube do regime e a instauração de uma qualquer forma de democracia. Desde a primeira hora, as proclamações dos militares eram claras: a sua intenção era democrática.
O que não impediu que muitos se tenham querido apropriar desse gesto fundador. Vários pretenderam imprimir-lhe o programa próprio de um partido ou de uma facção. Outros tentaram impor uma versão particular da nova sociedade a construir. Todas essas tentativas falharam. Acabou por triunfar a intenção democrática, a mais geral, menos facciosa e mais capaz de agregar uma população.
O principal feito do 25 de Abril foi a remoção da ditadura quase sem violência. Mesmo nos anos imediatos em que houve terror, em casa, na empresa, na herdade, no emprego, na Administração Pública e na escola, mesmo nesses anos quase não houve violência. Era terror a ameaça de ficar sem emprego ou de ter a sua a casa ocupada. Era terror ser proibido entrar na sua empresa ou na sua quinta. Como era terror ver a família incomodada ou ameaçada. Como foi terror ser detido sem culpa formada e com mandato de captura em branco. Tudo isto foi real, tudo isto aconteceu. Mas raramente, quase nunca se chegou à verdadeira violência.
A queda da ditadura teria sido inconsequente, se seguida de novos desastres. Que quase surgiram. No essencial, o feito principal foi o de se ter resistido às tentações programáticas de decidir por todos, de impor novo regime e de criar uma nova sociedade. Por outras palavras, esse principal feito foi o de se ter dito aos portugueses, agora cidadãos em parte inteira, “façam o que têm a fazer”! “Decidam o que querem ser e fazer! Escolham o tempo e o modo. Não deixem que ninguém tome as decisões por vós. Não permitam que ninguém cumpra os vossos deveres ou detenha os vossos direitos”!
O derrube da ditadura, obra essencial do 25 de Abril, deu lugar a confrontos. O gesto permitiu naturalmente que se exprimissem todos os que tinham algo a dizer, algo por que lutar. Para se conferir legitimidade, todos invocaram a sua interpretação do espírito do 25 de Abril, entidade ainda hoje misteriosa, a não ser que a limitemos ao mais nobre desígnio, o da liberdade. Os dezoito meses que se seguiram foram dos mais agitados da história recente. E dos mais perigosos. Até 25 de Novembro de 1975, estivemos na vizinhança da guerra civil e passámos ao lado de um desastre nacional. Que soubemos evitar. O número de vítimas mortais e de violência foi mínimo.
Apesar da turbulência, a democracia, em Portugal, nasceu bem. Foi um percurso rico e agitado, que incluiu um golpe de Estado, um início de revolução na rua e nas instituições, manobras políticas mais ou menos palacianas, reviravoltas militares, uma desordenada participação popular em movimentos sociais e numerosos actos puramente revolucionários até se chegar aos actos fundadores por vontade dos cidadãos: eleições, aprovação de uma Constituição democrática, formação de um Governo, eleição de um Presidente e estabelecimento do Estado de Direito. Este processo político inicial conheceu momentos inesquecíveis, erros e acertos, mas também vitórias e derrotas.
O 25 de Abril não tem culpas. Nem responsabilidade pelo que se seguiu. O 25 de Abril é uma data, um feito raro, obra e graça de um grupo de militares, seguido por quase todas as Forças Armadas e ulteriormente apoiado pela população. A partir daí, bem ou mal, para o melhor e o pior, as escolhas foram dos portugueses, as decisões foram dos seus dirigentes, as opções foram as do eleitorado, as determinações foram as das instituições e dos partidos políticos.
O 25 de Abril cumpriu-se plenamente. O que comemoramos hoje não é uma revolução inacabada, nem o 25 de Abril incompleto. O 25 de Abril não era um programa político, não tinha conteúdo social e económico. O que não impede que não tenham sido várias as tentativas de lhe imprimir um programa. Mas essas apropriações eram ilegítimas. O 25 de Abril cessa na antecâmara da acção, do governo e do programa. Por estes, os responsáveis são os partidos e os eleitores.
As escolhas foram nossas. As justas e as erradas. Mesmo as contraditórias. Foram os portugueses que escolheram os governos, que designaram os partidos preferidos, que castigaram quem não cumpriu e que, mesmo indirectamente, optaram por uma Constituição, pela democracia, pelo Estado social e pela integração europeia. Fomos nós, não foram “eles”.
Foram os portugueses que deixaram que um processo revolucionário se desenvolvesse em 1974 e 1975, dando lugar a vários projectos políticos para se afirmarem. Foram estes projectos que levaram a erros e gestos ilegítimos, às ocupações de casas, de empresas e de explorações agrícolas, aos saneamentos e a conflitos perigosos. Mas foram também os portugueses que corrigiram erros e excessos, que impediram novos poderes opressivos, que afastaram os que pretendiam evitar o Estado de Direito e que preferiram os defensores de uma democracia plural, constitucional e europeia.
Foram os portugueses que permitiram que a descolonização se fizesse do modo desastrado como se fez, com desprezo por centenas de milhares de portugueses ulteriormente repatriados, expatriados ou retornados, ou que não reagiram perante o abandono de milhares de africanos que se identificaram e colaboraram com as Forças Armadas portuguesas. Mas também foram os portugueses que, anos depois, tentaram construir com os países de língua portuguesa, um entendimento ou uma comunidade digna desse nome.
Foram os portugueses que apoiaram políticas de crescimento do Estado e do sector público, como foram os portugueses que, noutros momentos, escolheram privatizar as empresas, promovendo a economia de mercado e o investimento privado.
Foram os portugueses que decidiram ou deixaram decidir o alargamento da Educação e da Segurança Social, assim como a criação do Serviço Nacional de Saúde. Como foram ainda os portugueses que concordaram ou não contrariaram a adesão à União Europeia, um dos mais importantes gestos políticos dos últimos cinquenta anos.
As escolhas foram nossas. As justas e as erradas. Mesmo as contraditórias. Fomos nós, não foram “eles”
Já tivemos governos justos e honestos, assim como prepotentes e corruptos. Já tivemos governos de maioria parlamentar e de minoria. De um só partido, de coligação e de arranjo. Já tivemos governos que garantiram estabilidade e continuidade de propósito, mas também os tivemos instáveis e de visível desorientação. Já tivemos governos de esquerda, de direita e de centro. Já tivemos bom entendimento entre os órgãos de soberania, especialmente Presidente da República, Parlamento e Governo, mas também momentos de discórdia inútil e de conflito prejudicial para o país.
Não se trata propriamente de inconstância, de instabilidade e de ignorância, mas sim de escolhas feitas de experiência e de esperança, de adequação aos tempos e às circunstâncias e de opções que podem mudar de acordo com as situações, com as necessidades e com os méritos dos políticos em exercício. Estas foram e são as escolhas dos portugueses, ontem como hoje, não as do 25 de Abril que se cumpriu em seu tempo.
Nós somos responsáveis pelo que escolhemos, pelos que elegemos, pelos programas que defendemos, pelas opções que tomamos e pelas decisões que outros tomam em nosso nome e nós aceitamos. Somos responsáveis pelos que elegemos e pela sua acção, mas também pela substituição de quem não cumpre, não age de acordo com as nossas opções e não busca o interesse comum. Somos responsáveis pelo que fizemos nestes cinquenta anos. De melhor e pior. Tivemos a liberdade de escolher, de acertar e de errar. E temos a de corrigir e fazer melhor. Mas algo convém recordar. Desde há quase cinquenta anos que nos podemos orgulhar por não existirem presos políticos ou prisioneiros por delito de opinião, nem exilados forçados a viver no estrangeiro.É provavelmente a primeira vez, em muitos anos ou em séculos, que tal se verifica.
Durante as últimas décadas, muito correu bem, muito correu mal. De comum a um e outro, foi a nossa escolha, foram as nossas decisões. As dos governos e dos dirigentes, dir-se-á. Seguramente. Mas também esses são as nossas escolhas.
Em momentos difíceis, como os actuais, não é a liberdade que está em causa, mas sim o que fazemos dela. Não é a democracia que falha, mas sim o que os cidadãos permitem que os seus governos façam. Ou então, pode dar-se também o caso de os dirigentes estarem a uma distância crescente dos cidadãos. Por isso se diz, com frequência, que as democracias não são derrubadas, mas caem por si próprias. Haverá maneira de evitar erros? Há sempre. Mas nunca é possível evitá-los todos, os dos cidadãos e os dos dirigentes.É através da correcção e da reforma que se pode mudar de caminho e escolher melhor. E trata-se sempre de preferir a via da liberdade, em detrimento da imposição por outros ou por dirigentes esclarecidos. Não. Uma vez mais, não tenhamos dúvidas: um erro cometido por nós vale bem uma vitória imposta. O primeiro, corrige-se. A segunda, paga-se.
O crescimento e o desenvolvimento da sociedade foram, nestes cinquenta anos, formidáveis. Sabemos que os dos outros países também foram. Por vezes até mais do que os nossos. Mas que isso não ofusque o que aqui se fez e importa melhorar e corrigir.
Portugal mudou tanto desde 1974! Graças ao 25 de Abril, com certeza. E ainda graças à democracia e à União Europeia. Mas também graças à década de 1960, com a adesão à EFTA e um crescimento económico jamais visto. Não se pode honestamente afirmar que tudo começou com o 25 de Abril. Não é verdade. O crescimento da Segurança Social, o desenvolvimento da Educação e o progresso da Saúde estavam nas cartas. Era clara uma tendência para o desenvolvimento: a economia crescia como nunca antes. Na esteira da adesão à EFTA, fizeram-se enormes investimentos industriais e o capital estrangeiro procurava Portugal. A exportação para a Europa crescia a olhos vistos. A emigração de mais de um milhão de portugueses aliviou as pressões sociais e o subemprego, ao mesmo tempo que proporcionou um inédito caudal de remessas.
Nesta perspectiva, o 25 de Abril e a democracia aceleraram o que já estava presente na sociedade e na economia. Essa aceleração foi tal que acabou por ser uma nova realidade, de que o Serviço Nacional de Saúde é talvez a melhor demonstração. A situação crítica em que se encontra hoje não é argumento suficiente para negar o progresso social que é o seu.
Houve, portanto, continuidade e aceleração com o 25 de Abril e a democracia. Mas, realmente novos, verdadeiros acontecimentos de uma radicalidade evidente, foram os do domínio político: o Estado de Direito, a democracia, a eleição livre universal e a liberdade de expressão e de associação são indiscutíveis realidades trazidas pelo 25 de Abril. E mais ainda: mais igualdade social, mais igualdade de género e um sentido novo de dignidade humana com o qual os cidadãos se olham e coexistem sem temores sociais, sem terrores reverenciais e sem paternalismo de condição.
Ao lado destes melhoramentos, não faltam os atrasos e os obstáculos. Muitas das nossas dificuldades de hoje não são passageiras. O envelhecimento acelerado da população é uma dessas. Ou a emigração anual de dezenas de milhares de portugueses, que revela, como sempre na história, as incapacidades da nossa economia e da nossa sociedade. A persistente falta de mão de obra qualificada é outro obstáculo. A insuficiência de investimento e de crescimento económico é conhecida de todos. E a insistente desigualdade social é sempre questão preocupante.
Também há a assinalar, na política e no espaço público, uma pertinaz corrupção que a democracia não tem sabido combater nem sequer diminuir. E uma sempre viva crise da Justiça, resistente a todas as críticas e a todos os diagnósticos. Ou uma abstenção política e eleitoral preocupante, que nos obriga a reflectir nas insuficiências da democracia e no afastamento crescente da população.
Tal como não é responsável pelas êxitos, o 25 de Abril não é culpado pelas falhas. De uns e de outras, as responsabilidades são nossas. O 25 de Abril é data rara na história de Portugal. Tem autor: foram os militares do “Movimento” que o fizeram. Não tem dono: o que resultou, a democracia, é de todos. Na democracia, na Constituição e no Estado de Direito, cabem todos. Não há exclusões.
O que o 25 de Abril acabou por revelar é que a liberdade está acima de tudo. Podem ser importantes outras condições, como o bem-estar, e indispensáveis outros valores, como a justiça e a igualdade, mas todos dependem muito da liberdade, esta serve para criar os outros. Acima da independência e da autonomia, antes do patriotismo, da solidariedade e do bairrismo, a liberdade é fim e meio, é objectivo e instrumento. A liberdade tem valor em si própria, mas também como meio de obter bem-estar ou justiça.É com liberdade que se faz frente aos poderosos e aos dogmas.É a liberdade que permite cuidar dos outros e ser solidário.É com liberdade que se pode conhecer e saber.
É a liberdade que permite cuidar dos outros e ser solidário.É com liberdade que se pode conhecer e saber. Ao contrário dos programas políticos, sociais e económicos, a liberdade não divide. Permite que todos vivam em conjunto
Ao contrário dos programas políticos, sociais e económicos, a liberdade não divide. Permite que todos vivam em conjunto ou em vizinhança. Ajuda a perceber o lugar de cada um e o dos outros.É fonte de direitos e de deveres. Permite lutar pelo que defendemos, pelo que acarinhamos.É com a liberdade que conseguimos viver as nossas diferenças, a pluralidade das opiniões e os confrontos que fazem parte integrante das vidas das nossas sociedades.É a liberdade que permite que amemos os deuses e as pessoas que entendemos.É com a liberdade que reconhecemos o valor da cultura.É com a liberdade que construímos a nossa dignidade e respeitamos a dos outros.
Palestra proferida no 25 de Abril nas Capelas Imperfeitas do Mosteiro da Batalha, a convite do Presidente da Câmara Municipal da Batalha. Nova Cidadania agradece a António Barreto o privilégio da sua publicação nestas páginas.
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