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Livros & Ideias - Jürgen Habermas - UMA BIOGRAFIA


habernas

Um percurso extraordinário, em que, além de Adorno e Gadamer, encontramos os grandes dilemas do pós-guerra, num contexto de complexidade, diversidade e incerteza

Stefan Müller-Doohm
Jürgen Habermas, Una Biografia
Editorial Trotta, 2020

Guilherme d’Oliveira Martins

 

É importante recordarmos alguém que representa a necessidade de refl exão e do espírito da ilustração

 Jürgen Habermas, Una Biografia

Em tempos de confinamento, a leitura foi sem dúvida um dos melhores remédios, desde que temperada por algum sol e por contacto com os amigos através dos meios tecnológicos que o progresso tem permitido. Os livros e a música são preciosos companheiros, que permitem abrirmos outras janelas, para além das reais, que nos levam a usufruir a luz irregular que tem caracterizado a meteorologia nestes dias. Acaba de ser publicada em Espanha, pela Editorial Trotta, Jürgen Habermas, Una Biografia, da autoria de Stefan Müller-Doohm, obra dada à estampa em Berlim em 2014, na qual encontramos o percurso intelectual e cívico de quem é indiscutivelmente uma das consciências morais da Europa contemporânea. E neste momento de tantas incertezas, em que os egoísmos e a cegueira do curto prazo tendem a prevalecer, é importante recordarmos alguém que representa a necessidade de reflexão e do espírito da Ilustração, não numa lógica fechada e positivista, mas numa perspetiva aberta à diversidade e capaz de ligar as ideias e os acontecimentos, a razão e os sentimentos. “Babelia”, o suplemento literário de “El Pais”, reservou a sua capa a este pensador, que nos seus noventa anos se mantém ativo, de um modo persistente, na compreensão da importância do tempo, da decisão e da reflexão na vida democrática. O tema da democracia está na ordem do dia. Há nuvens negras no horizonte e temos de estar despertos para os perigos que espreitam. Nada há de mais sério. E se hoje há urgência na prevenção e na ação, para que a saúde pública não contrarie a democracia e possa estar associada à retoma na economia e na so- ciedade, é importante falar do “patriotismo constitucional” e da “democracia deliberativa”, de que trata Habermas, não apenas nas democracias nacionais, mas também na vida supranacional, em especial europeia. Num momento em que há sinais preocupantes, em que a dúvida se confunde com a descrença, e em que o desalento alimenta a desistência, importa não esquecer o que nos diz o filósofo: “A verdade não existe no singular”, pelo que a legitimidade democrática deve ligar-se à mediação das instituições e ao envolvimento dos cidadãos. No debate europeu, infelizmente, há sinais de recusa de uma elementar solidariedade que contrarie a fragmentação e a lógica do salve-se quem puder. E Habermas lembra as origens da União Europeia, como construção de paz e desenvolvimento, capaz de integrar as diferenças, sem esquecer a memória histórica, não numa perspetiva de culpa (se lembrarmos o Holocausto), mas sim de responsabilidade. E a tarefa do intelectual tem de ser a de melhorar o lamentável nível do discurso das confrontações, evitando a todo o custo o cinismo. Um filósofo intelectual é contemporâneo dos nossos contemporâneos – e daí a sua necessária inserção numa ética de responsabilidade. É esse o papel que Habermas assume, com todas as limitações e virtualidades – lembrando tantas vezes aos seus alunos: “Nunca te compares com um génio, mas trata sempre de criticar a obra de um génio”. Nesta perspetiva, ainda jovem, o filósofo ousou afrontar Heidegger, em 1953, num texto publicado no “Frankfurter Allgemeine Zeitung” com o título significativo “Pensando com Heidegger contra Heidegger”, menos pelo desprezo que o velho pensador tinha pela igualdade democrática, e mais pela recusa da autocrítica e pelo facto desse silêncio contaminar irremediavelmente a atitude filosófica. Afinal, a principal tarefa dos que se dedicam ao ofício de pensar é a de fazer luz sobre os crimes que se cometeram no passado e manter desperta a consciência sobre eles? Lembrar para que não voltem a acontecer, mas evitando o ressentimento e a vingança. Heidegger evitaria a polémica e responderia que a sua preocupação tinha a ver com a relação entre o homem e a técnica. Mas Habermas contraporia que a sua crítica não tinha a ver com o envolvimento político com o nacional-socialismo em 1933, mas com a teimosa negativa em reconhecer o seu erro a partir de 1945. No fundo, “a discussão sobre o comportamento político de Martin Heidegger não poderia nem deveria servir propósitos de difamação e desprezo sumários. Como nascidos depois, não podemos saber como nos teríamos comportado nessa situação de ditadura”. Pouco depois, Habermas chamaria a atenção de Theodor W. Adorno com um texto publicado na revista “Merkur” “A dialética da racionalização”, no qual analisava a alienação gerada tanto pelo trabalho numa cadeia de monta- gem, como no consumo sem limites. E premonitoriamente avisava: «da produção ao transporte, passando pela comunicação ou pelo ócio, a “cultura das máquinas” terminará por dominar as nossas vidas. Cada dia, estaremos mais longe da natureza e do resto dos seres humanos». Apesar da resistência de M. Horkheimer, pelo pendor pacifista de Habermas na altura, este ingressou, em 1956, no célebre Instituto de Investigação Social, centro da chamada Escola de Frankfurt, o dito Café Marx, que Lukács designava depreciativamente como “Grande Hotel Abismo”... Adorno admirava o pensador, e para sua mulher Gretel ele fazia lembrar Walter Benjamin, o grande amigo, que se suicidara em Port Bou, em 1940, perseguido pela Gestapo... Ao longo de 650 páginas, a biografia acompanha um percurso extraordinário, em que, além de Adorno e Gadamer, encontramos os grandes dilemas do pós-guerra, num contexto de complexidade, diversidade e incerteza. E fica claro que a reflexão filosófica e o compromisso social são faces de uma mesma moeda – a necessidade da Ilustração... E é esse sentido de responsabilidade crítica que marcará a decisiva importância do pensador na atualidade – designadamente no tocante à defesa de uma Europa como fator de paz, de desenvolvimento e de diversidade cultural. Daí a necessidade de domesticar o capitalismo com a democracia garantida por um Estado de direito com “rosto social”, com superação do “pessimismo antropológico” que caracterizou a primeira fase da Escola de Frankfurt. Os conceitos de conhecimento, liberdade e progresso constituem valores de uma razão ilustrada, no contexto de uma “modernidade”, como “projeto inacabado”, por contraponto à “condição pós-moderna” de Jean-François Lyotard... Lembrando a democracia quando há sinais da sua fragilidade em tempos como os que temos vivido, em virtude da pandemia, recordo um outro livro, acabado de sair na Europa, Penser la Justice, constituído por entrevistas a Michael Walzer por Astrid von Busekist, (Albin Michel, 2020). Para o filósofo norte-americano, democracia e justiça têm de estar ligadas. Aos grandes sistemas, Walzer prefere as “pequenas teorias”, acreditando num Estado social, no qual as nações e as fronteiras sejam garantes da liberdade das pes- soas. E, em seu abono, lembra o Profeta Amos, para quem não bastava condenar a injustiça e a idolatria, necessário construir em concreto a sociedade mais humana. Tanto Michael Walzer como Jürgen Habermas insistem numa consciência crítica capaz de entender a sociedade em mudança, em conflito e em diálogo, num contexto plural. E nessa perspetiva de diversidade e complexidade se explica a anedota que corre nos meios da reflexão política e filosófica: um professor norte-americano aterra na Alemanha, toma um táxi e diz: “Leve-me à Escola de Frankfurt!”. E o taxista surpreendido responde: “A qual delas?”...


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