• +351 217 214 129
  • This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

Este vírus que nos enlouquece...


Capa do Livro Este Vírus que nos Enlouquece

Hoje sabemos, que além das mortes ditadas pelo vírus, houve muitos outros efeitos que sacrificaram vidas humanas, como a solidão, a violência doméstica, o isolamento e o medo.

Bernard-Henri Lévy
Este Vírus que nos Enlouquece
Editora Guerra & Paz, julho de 2020

Guilherme d’Oliveira Martins

Guilherme d’Oliveira Martins

Conselho de Administração, Fundação Calouste Gulbenkian; Conselho Editorial, Nova Cidadania

Muito se tem dito sobre o “confinamento” e sobre as medidas excecionais de preservação da saúde pública perante a estranha pandemia que nos assalta. Hoje sabemos, que além das mortes ditadas pelo vírus, houve muitos outros efeitos que sacrificaram vidas humanas, como a solidão, a violência doméstica, o isolamento e o medo – e, infelizmente ainda iremos ter no futuro mais ou menos próximo outros efeitos negativos. Veja-se o tema da escola e da educação, e compreenda-se que a distância é exatamente o contrário do que se pretende na aprendizagem. Teremos, afinal, de regressar rapidamente à socialização educativa. Como tenho afirmado: «Se queremos melhor democracia, temos de dar tempo ao tempo, para que a reflexão não seja substituída pela manipulação. É verdade que o ensino, no seu conjunto, pode sair da pandemia mais preparado para aproveitar as tecnologias e as novas correntes de aprendizagem, mas temos de cuidar dos que não podem ser abandonados, favorecendo a criatividade e a cooperação pessoal. No dilema saúde / economia, o valor fundamental é o da vida, da existência, da liberdade, da igualdade e da fraternidade... O capital social e a confiança obrigam ao que Adela Cortina designa como “amizade cívica” (El Pais, 16.5.2020). Só com esta estaremos mais preparados para afrontar próximas epidemias e ameaças de destruição da humanidade...».

A Guerra e Paz publicou de Bernard-Henri Lévy “Este Vírus que nos Enlouque- ce” (2020), que constitui uma oportuna reflexão sobre este tema profundamente perturbador, que deve ser pensado para além dos lugares comuns. Aí todos os alertas são dados. O ambiente de confinamento é malsão e não pode ser aceite de forma passiva ou indiferente. Não esqueçamos que o “confinamento” italiano foi uma palavra mussoliniana. Confinavam-se as vozes críticas e a oposição para criar bolhas autossuficientes em ilhas ou lugares escolhidos para evitar que as ideias perigosas se espalhassem. Eis por que o filósofo considera indispensável não tornar esse um método normal. Mas há o risco para a vida das pessoas em virtude da presença do vírus. É verdade. Importa adotar soluções inteligentes que nos permitam lidar com o perigo e controlar o medo. Temos de formar crianças conscientes de que não irão viver num mundo assético. Têm de estar preparadas. Temos de regressar à lealdade do aperto de mão como sinal de confiança mútua. Não se esqueça que esse hábito nasceu para dizer que não há armas e que podemos estar seguros uns com os outros. E assim as pessoas mais lúcidas têm de falar, dando confiança e delineando caminhos que preservem a autonomia e a responsabilidade, a segurança e a amizade. Importa dizer: a pandemia não terminou, mas está a ser controlada. Visa-se reduzir efetivamente uma segunda vaga, havendo para tal capacidade médica e hospitalar. Importa, pois, substituir o discurso do medo, pela racionalidade e pela criação de condições para que as máscaras, a higiene das mãos e as distâncias prudentes reduzam a transmissão da doença. Dar sinais de que não há epidemia é criminoso, como é absurdo criar um ambiente de culpa e eleger bodes expiatórios. Se há quem diga que estamos numa boa ocasião para o combate da globalização e do capitalismo, estamos a assumir a mesma atitude medieval contra as grandes epidemias, como se uma qualquer providência estivesse por trás de uma maldição.

Se o ritmo da descoberta dos tratamentos e das vacinas pode ser mais rápido e resultar da cooperação internacional, tal deve-se à globalização, não tenhamos dúvidas... Aproveitar a morte e o drama humano para defender uma agenda ideológica é inaceitável. Temos de romper com a tentação de tirar partido de um desastre. Qual a atitude inteligente? Importa viver com mais sobriedade, como nos ensinou a última crise financeira, devemos consumir menos, racionalizar o uso dos transportes, no entanto a frugalidade e a proteção do meio ambiente organizam-se, não se decretam. O experimentalismo social e um novo malthusianismo limitam a cidadania e a liberdade. Não há contradição entre a saúde e a economia. Temos de evitar que a vida destrua a vida. Se pararmos a economia e se não definirmos uma estratégia de melhor utilização dos recursos, teremos mais desemprego, mais fome, mais desigualdade e menos desenvolvimento. Os cientistas não são os novos oráculos de Delfos, são importantes agentes na estratégia humana, mas caminham, como nós, no nevoeiro. Importa mobilizar a sociedade toda. Urge haver partilha de responsabilidades. Importa evitar o abuso de autoridade, onde quer que ele se manifeste. E o certo é que a manipulação do medo leva a pôr em causa a autonomia e a liberdade. O trabalho à distância pode ser bom se houver melhor conciliação familiar, melhor utilização do tempo na vida das pessoas, mas é negativo se favorecer a solidão, o tédio e se levar à incompreensão das fronteiras entre o público e o privado ou à espionagem eletrónica dos empregados pelos patrões.

Diga-se ainda que a metáfora da guerra é perigosa. Há um vírus, há uma doença, não há uma guerra. Ao contrário do combate do tráfico da droga ou da existência de um inimigo externo, o vírus não tem uma intenção, nem uma vontade. É verdade que há medo. Temos, assim, de saber lidar com ele. Não podemos deixar que os poderes do Estado e da economia ocupem o espaço da cidadania e dos direitos humanos. Não devemos deixar que o medo se torne pânico, limitando a inteligência e a vida humana. Nesse sentido, BHL faz neste obra um discurso contra a servidão voluntária. A cidadania e a democracia têm, deste modo, de se aliar contra a tomada dos espaços públicos pelos Estados e pelas grandes redes como Google, Amazon, Facebook e Apple... O “Big Brother watching us” tem de ser prevenido. A proteção dos dados pessoais não pode tornar-se uma burocracia inútil e opressiva. Como se mede a liberdade? Na medida em que protegermos a vida privada ou o segredo de que somos detentores. Haverá outras epidemias depois desta, e não poderemos deixar que segmentos da democracia se percam. Por exemplo, espiritualidade e higienismo não podem confundir-se... O distanciamento social preventivo não deve ser sinónimo de fragmentação social. O distanciamento que gere indiferença e torne as pessoas abstrações põe em causa a organização da sociedade e a vida democrática, conquistada ao longo de décadas. Eis o que está em causa... Martha Nussbaum tem, aliás, analisado este tema na perspetiva do “cosmopolitismo”, considerando este como “um nobre e imperfeito ideal”, pela necessidade de ligar o interesse geral e interesse próprio nacional. E o certo é que o empenhamento de cada um no seu país precisa da consideração da proximidade e a compreensão do interesse geral assumido como defesa da dignidade de todos em qualquer parte do mundo...

Bernard-Henri Lévy


1000 Characters left


Please publish modules in offcanvas position.