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Um livro muito raro em defesa da liberdade escolar


Um livro muito raro em defesa da liberdade escolar

A liberdade de educação, familiar e escolar, é um bem universal, serve a todos e não discrimina ninguém.

Vários Autores
Escola de todos, para todos, com todos Liberdade de Educação
Associação Portuguesa de Escolas Católicas e Fundação SNEC, 2019

Mário Pinto Mário Pinto

Professor Catedrático Jubilado, Universidade Católica Portuguesa; Presidente do Conselho Editorial Nova Cidadania

N o dia 2 de Dezembro de 2019, decorreu, no auditório da Rádio Renascença, a sessão de apresentação de um novo livro, intitulado “Escola de todos, para todos, com todos”. Com um prefácio do ex-Presidente da República, Ramalho Eanes, um posfácio do Prof. Barbas Homem e introduções do Bispo D. António Moiteiro e do Dr. Fernando Magalhães, o livro reúne artigos de 29 autores, todos dedicados à questão fundamental das liberdades de educação. A título de declaração de interesses, dir-se-á que o autor desta recensão participa neste elenco.

A coordenação do livro é da Associação Portuguesa de Escolas Católicas (APEC); e a edição é da Fundação Secretariado Nacional da Educação Cristã. Mas não se conclua da confessionalidade religiosa destas entidades que o livro tem uma intenção confessional. Não tem. A verdade é que nele se defendem as mesmas liberdades de educação igualmente para todos. E quanto aos seus autores, uns são publicamente crentes, outros não são crentes.

A liberdade de educação, familiar e escolar, é um bem universal, serve a todos e não discrimina ninguém. Só limita os autoritarismos educativos, designadamente os estatais, que a história abundantemente documenta. É um ideal e uma aspiração que une todos os homens que respeitam e servem a dignidade da pessoa humana, que o art. 1.o da Constituição Portuguesa declara estar na base da soberania da República: «Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana». Ideal e aspiração universal, que se desenvolve na linha directa do constitucionalismo moderno, fundado pelas duas declarações de direitos dos fins do séc. XVIII, a Declaração ame- ricana (1776) e a Declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão (1789); e consagrado à escala mundial na ONU, em 1948, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, complementada, nos anos sessenta, pelos dois Pactos Internacionais, respectivamente dos Direitos civis e políticos e dos Direitos económicos, sociais e culturais.

Felizmente, a doutrina destes solenes documentos (de vigência universal para os Estados das Nações Unidas) vigora em Portugal, e está expressamente acolhida na Constituição Portuguesa. Mas, infelizmente, nunca chegou a ser inteiramente respeitada nem cumprida pelo Estado Português. O que significa que vivemos numa situação de inconstitucionalidade já crónica, em matéria de liberdades de educação. Isto é, numa situação em que, face ao Estado-educador, a nossa Sociedade Civil parece já se ter deixado vencer, caindo num clima cultural e político entorpecido, até nas suas instâncias mais fortes e responsáveis, como a própria Igreja Católica, que não tem defendido suficientemente a doutrina das liberdades de educação, como lhe compete. Daí uma especial justificação para a publicação deste livro; mas não menos para a notícia da sua apresentação pública.

De facto, a sessão de apresentação do livro foi rica de intervenções; e, em balanço final, significativa de que, afinal, subsiste, entre nós, ainda que minoritária, uma clara e culta consciência da gravidade do proble- ma das liberdades de educação, sufocadas pelas discriminações do Estado-educador que nos domina. Aberta pelo Secretário Geral da APEC, e coordenador executivo do livro, Jorge Cotovio, doutor em ciências da educação e autor de dissertações académicas publicadas sobre a matéria, foi depois preenchida pelas intervenções de um painel de oradores moderado pela jornalista Graça Franco. Em curtas mas substanciosas intervenções, amável mas firmemente controladas na sua duração pela moderadora, falaram o Presidente da APEC, Dr. Fernando Magalhães, o Bispo D. António Moiteiro (Presidente da Comissão Episcopal para a Educação), o Prof. Barbas Homem (Reitor da Universidade Europeia e reconhecido especialista em Direito da Educação), e finalmente o Dr. Luís Marques Mendes, este último na pesada incumbên- cia de uma apreciação final do livro, que cumpriu muito bem.

Tão importante como dar a notícia da publicação do livro, que quem quiser poderá ler, é partilhar uma reflexão sobre este invulgar encontro. Porque ele afinal revelou que um problema tão importante, como o dos direitos fundamentais de educação (quer os “direitos de liberdade”, quer os “direitos sociais”) é bem compreendido e respondido por qualificadas personalidades portuguesas, do mesmo passo que vem permanecendo por tanto tempo mal resolvido nas nossas políticas governamentais. E ressurge a interrogação: como é possível entender que, a uma luta tão viva (uma das mais vivas) na Assembleia Constituinte sobre as liberdades de ensino, depois prolongada nas primeiras revisões constitucionais (que finalmente deram a Portugal uma “Constituição Educativa” personalista, liberal, democrática e social), se tenha seguido uma apatia partidária e civil perante as políticas educativas de sucessivos governos, que continuam a seguir políticas jacobinas de Estado-educador? Desrespeitando a “Constituição Educativa”, a correspondente Lei de Bases do Sistema Educativo e, finalmente, a legislação que regulamente a gratuitidade do ensino obrigatório também nas escolas não estatais?

O que de facto acontece, entre nós, é que o Estado, pessoa jurídica colectiva, “apropria-se pessoalmente” dos impostos dos cidadãos, e depois age como se, com esses impostos assim pessoalmente apropriados, pudesse financiar exclusivamente as suas próprias iniciativas escolares, comportando-se como um proprietário privado. Pior, ainda, porque opõe à Sociedade Civil um verdadeiro monopólio, com deliberada e pública consciência de que as suas iniciativas são concorrenciais das iniciativas dos cidadãos — sendo certo que estas são exercício de liberdades fundamentais (liberdades de ensinar e de criação de escolas) que ao Estado incumbe garantir, enquanto que o Estado não tem nenhum direito pessoal de ensinar. O Estado é, por definição, uma entidade culturalmente neutra e imparcial, perante as plurais opções dos cidadãos no exercício das suas liberdades fundamentais, designadamente as liberdades de educação; por isso, não é possível justificar que o Estado se assuma (de facto e de direito) como melhor educador público, criando um monopólio e discriminando as iniciativas dos cidadãos.

Mas insista-se: tem o Estado, face à Constituição, uma opção política educativa que pode impor ou privilegiar perante os cidadãos? Não tem. A nossa Constituição vai ao ponto de assentar o seguinte, no art. 43.o: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.» Então, como se pode justificar que os representantes do Estado constantemente defendam a bondade das escolas do Estado, que designam pela expressão monopolista de «a escola pública», contra as escolas privadas, da iniciativa dos cidadãos, que são chamadas pela designação bárbara de «ensino particular e cooperativo»? Se o poder político estabelecido não pode educar segundo uma qualquer opção educativa, a que título se pode arrogar de privilégio educativo, numa democracia constitucionalmente pluralista?

Uma resposta a este pergunta já foi dada, por uma extraordinária e marcante personalidade feminina do séc. XX, Hannah Arendt (1906 - 1975), nestes termos: «O objectivo da educação totalitária nunca foi incutir convicções, mas sim destruir a capacidade pessoal de livremente se formar alguma».

Como se sabe, os defensores portugueses do monopólio estatal do ensino escolar argumentam sempre e só com o art. 75.o da Constituição, que diz assim, no n.o 1: «O Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos que cubra as necessidades de toda a população». Ora, esta disposição normativa apenas impõe ao Estado a obrigação instrumental de criar uma “rede escolar”. Mas a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) integra expressamente a rede escolar no que chama de «recursos materiais» do «sistema educativo». No seu capítulo quinto, conceitua como “recursos materiais” os edifícios escolares, a rede escolar, outros recursos materiais (como manuais, bibliotecas, equipamentos laboratoriais, oficinas) e, finalmente, o financiamento da educação (cf. arts. 37.o a 42.o da LBSE). E isto tem de ser entendido à luz das definições que a mesma Lei de Bases estabelece, logo no seu art. 1.o, onde faz a distinção entre “estruturas e acções educativas”, as quais — diz expressamente a Lei — «podem ser diversificadas e por iniciativa e responsabilidade de diferentes instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas». Manifestamente, portanto, a criação de estabelecimentos escolares não é monopólio do Estado e é apenas criação de estruturas educativas; e não é ainda, por si mesma, verdadeira e própria acção educativa, ou ensino. E a prova definitiva é que a mesma Constituição que obriga o Estado a criar escolas, proíbe o Estado de educar: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas» (art. 43.o).

Em conclusão, a obrigação de o Estado criar uma rede de estabelecimentos escolares que seja suficiente para acolher todos os alunos que escolham as escolas do Estado (seria ridículo que o Estado fosse obrigado a ter uma rede com escolas vazias, para virtualmente acolher vinte por cento dos alunos portugueses que de facto e de direito escolhem as escolas privadas), não lhe dá nenhum direito a um monopólio, nem da rede escolar nem da «acção educativa»; e logicamente também não dá, aos alunos das escolas estatais, o exclusivo do benefício da gratuitidade do ensino obrigatório.

Porque, sem dúvida, quanto ao financiamento da educação pelo Estado, essa obrigação jurídica resulta de disposições constitucionais que o não limitam às estruturas escolares estatais. A obrigação de financiamento público da educação, além de constar de instrumentos internacionais que vinculam o Estado português, está claramente consagrada no art. 74.o da Constituição, que diz assim: «Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar.» Acrescentando imediatamente: «Na realização da política de ensino, incumbe ao Estado: assegurar o ensino básico universal obrigatório e gratuito; [...] estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino».

Ora bem, será preciso sublinhar que, como se vê, a Constituição diz aí que «todos» têm direito à gratuitidade do ensino obrigatório? Será necessário enfatizar que, no regime constitucional em vigor, o papel do Estado em matéria de educação escolar (seja pela criação de uma rede escolar estatal, seja pelo financiamento da gratuitidade do ensino) não é um privilégio do Estado; mas é sim um dever de garantir que — com igualdade de oportunidades e sem discriminações negativas — seja tornada efectiva, para todos, a possibilidade prática do exercício das primordiais liberdades pessoais de educação e ensino, tituladas pelos cidadãos? É bem sabido que, ao longo de toda a nossa tradição jacobina, desde o Marquês de Pombal (250 anos), o Estado sempre oprimiu (em grau variável) as liberdades fundamentais de aprender e de ensinar. Mas, actualmente, com as revisões constitucionais do texto primitivo da Constituição de 1976 (e só com essas revisões, note-se), não é mais possível legitimar um Estado-educador.

Portanto, só por ignorância ou má fé se pode actualmente defender, na interpretação constitucional do art. 75.o, que o dever estatal de criação de uma rede escolar estatal pode ter, como primeira consequência, o exclusivo do financiamento público da gratuitidade constitucional do ensino aos alunos dessas escolas estatais, assim se criando uma discriminação negativa dos outros alunos, que são cidadãos iguais em direitos e deveres. E, por esta via, ter como segunda consequência o combate às liberdades fundamentais de escolha da escola (forçando os alunos que não podem prescindir da gratuitidade do ensino a escolher contra-vontade as escolas estatais monopolistas dessa gratuitidade). Esta tese seria a negação do autêntico fundamento dos direitos sociais em Estado de Direito Democrático (de democracia pluralista): fundamento que é tornar facticamente possível a todos, e em igualdade de oportunidades, o efectivo exercício dos «direitos individuais de liberdade» enquanto direitos universais. Tese muito distinta da tese marxista-leninista, que classifica as liberdades individuais (designadamente de iniciativa e de escolha) não como liberdades universais, mas sim como “liberdades burguesas”, isto é, liberdades restritas de apenas uma classe, e por isso mesmo indignas de reconhecimento e garantia constitucional.

Em Portugal, depois de uma luta em defesa das liberdades de ensino durante a Constituinte, luta essa que não foi vencedora, conseguiu-se, nas imediatas revisões constitucionais fazer finalmente vingar, nesta matéria do ensino, a doutrina (liberal e pluralista) dos direitos humanos em Estado de Direito Democrático e Social. Para tal foi muito importante, por essa altura, a aprovação internacional do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), que Portugal também ratificou. Este Pacto Internacional reconhece, expressa e distintamente, quer o direito à escola, quer o direito à gratuitidade do ensino. Aliás, mais correctamente, o Pacto reconhece o direito «à educação» (escolar), e não à escola (a uma rede escolar estatal). Diz assim o seu art. 13.o: «1. Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa à educação. [...] 2. Com o objectivo de atingir o pleno exercício deste direito, os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem que: a) O ensino primário deve ser obrigatório e acessível a todos gratuitamente; b) O ensino secundário, nas suas diferentes formas, incluindo o ensino técnico-profissional, deve ser generalizado e tornar-se acessível a todos, por todos os meios apropriados, em particular, pela implantação progressiva do ensino gratuito».

Mas, logo nos parágrafos seguintes do mesmo artigo, o PIDESC nega expressamente que a satisfação destes “direitos sociais” possam ter como consequência prejudicar a liberdade de escolha e de criação da escola. Assim: «Os Estados signatários no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais, ou, se for o caso, dos tutores legais, de escolherem para os seus filhos ou pupilos escolas diferentes das criadas pelas autoridades públicas, sempre que aquelas satisfaçam as normas mínimas que o Estado estabeleça ou aprove em matéria de ensino, e permitam que os seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa ou moral de acordo com as suas próprias convicções.» E o Pacto reforça esta garantia acrescentando: «O disposto neste artigo não poderá ser interpretado como uma restrição à liberdade dos particulares e entidades para estabelecerem e dirigirem instituições de ensino, com a condição de respeitarem os princípios enunciados no [anterior] parágrafo 1, desde que a educação dada nessas instituições se ajuste às normas mínimas estabelecidas pelo Estado.»

Ao longo de toda a nossa tradição jacobina, desde o Marquês de Pombal (250 anos), o Estado sempre oprimiu as liberdades fundamentais de aprender e de ensinar

Ora, evidentemente, estas garantias fundamentais de liberdade pessoal (tanto de criação como de escolha da escola), afir- madas precisamente quando se proclamam os (dois) direitos sociais (de acesso à escola e de acesso à gratuitidade do ensino), não podem ser (imediata ou mediatamente) iludidas, através de uma discriminação quanto à satisfação do direito à gratuitidade do ensino, que o Pacto declara como universal, e não apenas como privilégio dos alunos das escolas estatais. Porque, inevitavelmente, com uma discriminação no financiamento da educação, discriminam-se efectivamente as liberdades de educação, de iniciativa e de escolha da escola.

Infelizmente, como já se disse, Portugal não cumpre esta doutrina, que está no PIDESC e na nossa Constituição, porque discrimina os alunos das escolas não estatais, que têm o direito de escolher a escola sem por isso perderem o seu direito (universal) à gratuitidade do ensino obrigatório. Como de resto reconhece expressamente a Lei n.o 85/2009 (da iniciativa do Governo de José Sócrates). Diz assim, esta lei: «A escolaridade obrigatória implica, para o encarregado de educação, o dever de proceder à matrícula do seu educando em escolas da rede pública, da rede particular e cooperativa ou em instituições de educação e ou formação, reconhecidas pelas entidades competentes, determinando para o aluno o dever de frequência.» E além disto esclarece: «1 - No âmbito da escolaridade obrigatória o ensino é universal e gratuito. 2 - A gratuitidade prevista no número anterior abrange propinas, taxas e emolumentos relacionados com a matrícula, frequência escolar e certificação do aproveitamento, dispondo ainda os alunos de apoios no âmbito da acção social escolar, nos termos da lei aplicável. 3 - Os alunos abrangidos pela presente lei, em situação de carência, são beneficiários da concessão de apoios financeiros, na modalidade de bolsas de estudo, em termos e condições a regular por decreto-lei.»

E então — repita-se a interrogação — como é possível que partidos políticos democráticos e Sociedade Civil se mantenham e manifestem, por tanto tempo, conformados com esta contumaz violação de “direitos e liberdades fundamentais” pelo Estado português? E com uma escandalosa discriminação negativa do “direito social universal à gratuitidade do ensino obrigatório” dos pais e alunos das escolas privadas? A favor de um privilégio de monopólio estatal: discriminatório, anti-democrático, inconstitucional?


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