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Winston Churchill - Caminhando com o Destino


Winston Churchill Caminhando com o Destino

 

Andrew Roberts
Churchill: Caminhando com o destino
Leya, 2019

João Carlos Espada

Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Director de Nova Cidadania

Winston Churchill -  Caminhando com o Destino

Sob o título Churchill: Walking With Destiny, o distinto historiador britânico Andrew Roberts publicou em Outubro de 2018 a mais recente biografia de Winston Churchill, em um só volume (ainda que com mais de mil páginas). A obra tem sido elogiada por académicos, jornalistas e políticos dos mais diversos quadrantes. E, no curto período de um ano, já foi ou está a ser traduzida em 10 línguas. Em Portugal, acaba de ser publicada pela LeYa. O autor apresentou a versão portuguesa no passado dia 17 de Outubro no Palácio da Cidadela de Cascais, no âmbito da 5a Palestra-Jantar Winston Churchill do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, com o Alto Patrocínio de S. Exa. O Presidente da República.

Na presente comunicação, procurarei passar em revista alguns dos aspectos centrais do livro de Andrew Roberts, com particular ênfase na caracterização pelo autor da personalidade e filosofia política de Winston Churchill. Roberts enfatiza certeiramente o ‘background’ aristocrático do jovem Winston e o sentido de independência e rebeldia dele decorrente. Em contrapartida, distingue esse sentimento aristocrático do vulgar snobismo, enfatizando o sentido de dever que Churchill nutria para com os mais desfavorecidos e a independente nação britânica como um todo.

A rebeldia de Churchill e o seu sentido de dever ancoravam-se ainda na sua pro- funda admiração pela Civilização europeia e ocidental da Liberdade sob a Lei — no âmbito da qual ele via o Império Britânico, os povos de língua inglesa e a “relação especial” anglo-americana como parte integrante e também como garantes essenciais.

Todavia, antes de entrar na abordagem do conteúdo do livro propriamente dito, uma questão prévia é incontornável: porquê mais uma biografia de Churchill? Segundo algumas contagens, existem mais de mil. Haverá algo de novo que ainda não tenha sido dito sobre Churchill? Em caso afirmativo, poderão essas eventuais novidades preencher um volumoso tomo de 1100 páginas?

Estas perguntas são sem dúvida pertinentes e devem ser colocadas. Mas elas não devem impedir o leitor de olhar criticamente para este livro. Se isso for feito — e, no meu caso, francamente comecei por abordar o livro com um olhar céptico — creio que não haverá desapontamento. O texto tem um ritmo e uma elegância contagiantes, e contém muitos dados novos que não estavam previamente acessíveis aos estudiosos de Churchill.

Como o autor refere, ele foi o primeiro historiador a obter a permissão de Rainha Isabel II para ter acesso ilimitado aos diários da II Guerra de seu pai, Rei George VI. Aqui se incluem naturalmente as notas escritas pelo Rei acerca dos seus almoços semanais com Churchill durante a guerra. Andrew Roberts faz bom uso destas notas instrutivas e cita-as abundantemente ao longo da narrativa.

Outra fonte não previamente usada pelos biógrafos de Churchill são os recentemente publicados diários do embaixador soviético em Londres durante a II Guerra, Ivan Maisky. É algo surpreendente a quantidade de in- formação interessante que Andrew Roberts consegue extrair dos diários de Maisky. E há ainda várias outras fontes que o autor foi autorizado a consultar pela primeira vez, como o livro de visitas de Chartwell (a casa de campo de Churchill), as actas do “The Other Club”, que foi fundado por Churchill em 1911, bem como, last but certainly not least, os diários de Mary Soames, a filha mais nova de Churchill (que estão agora nos Churchill Archives, no Churchill College, em Cambridge).

Além de tudo isto, Andrew Roberts consegue combinar todas estas novas fontes numa narrativa bem ritmada e bem ilustrada com passagens excitantes — que espelham bem a personalidade algo aventureira de Winston Churchill. Finalmente, o livro justifica bem o título escolhido pelo biógrafo: “Winston Churchill: Caminhando com o Destino”.

Somos recordados logo no início de que Churchill, tendo nascido em 1874, “acreditava no seu destino desde pelo menos os 16 anos de idade, quando disse a um amigo que iria salvar a Inglaterra de uma invasão estrangeira.” Bastante mais tarde, em 1948, no primeiro volume das suas Memórias da II Guerra, Churchill escreveu que, quando em 10 de Maio de 1940 fora nomeado primeiro-ministro, “eu senti que caminhava com o destino.” É a este propósito que Andrew Roberts apresenta a principal intenção do seu trabalho de biógrafo: explorar “o grau extraordinário em que em 1940 a vida passada de Churchill tinha sido uma preparação para a sua liderança durante a II Guerra.”

Mas a obra não consiste numa hagiografia, uma vez que Roberts procura mostrar que grande parte da preparação de Churchill assumiu a forma de cometer muitos erros — e de aprender com esses erros. O biógrafo fornece uma longa lista de erros Churchillianos ao longo de todo o livro. E, para o caso de ao leitor terem escapado alguns, encontramos um longo sumário de todos eles, que ocupa a página 966. Essa lista inclui designadamente “a sua oposição ao voto das mulheres, a continuação da ‘operação Gallipoli/Dardanelos’ após Março de 1915, o regresso ao padrão-ouro, o apoio a Eduardo VIII durante a crise da abdicação, má gestão da operação Noruega, o chamado ‘discurso ligando o socialismo à Gestapo’ na campanha eleitoral de 1945 (em que foi derrotado pelo partido trabalhista), ter permanecido como primeiro-ministro após o AVC de 1953, e muitos outros.

Cometer erros, sugere Andrew Roberts, parece ter sido o que permitiu a Churchill ter razão nas “três ameaças mortais colocadas à civilização ocidental, pelos militaristas prussianos em 1914, pelos nazis nas décadas de 1930 e 1940, e pelo comunismo soviético após as II Guerra Mundial”.

Creio, no entanto, que a expressão “caminhando com o destino”, pode ser enganadora, se for dissociada das razões — morais, políticas, filosóficas — que levaram Churchill a enfrentar as batalhas cruciais que enfrentou. Alguns dos seus contemporâneos descreveram-no como um oportunista em busca de fama. Andrew Roberts cita muitas dessas apreciações críticas, por vezes muito críticas, sobre Winston, desde os seus tempos na escola até ao fim da vida. Roberts reconhece que Churchill tinha uma vertente de aventureiro algo convencido de si mesmo; mas acrescenta que esse espírito de aventura estava enraizado em algo mais que lhe dava substância. Esta âncora moral, digamos assim, é descrita por Roberts como tendo duas dimensões: por um lado, a defesa de Churchill da especificidade das tradições políticas do Império Britânico e dos povos de língua inglesa; por outro lado, a sua origem e formação aristocráticas.

Andrew Roberts argumenta persuasivamente que a origem e formação aristocráticas de Churchill lhe forneceram um forte sentido de independência e de auto-confiança. Essa dimensão aristocrática, diz Andrew Roberts, “pode hoje ser vista com desconforto em associação com a sua imagem de salvador da democracia, mas, se não fosse a invencível auto-confiança da sua casta de origem, Churchill poderia muito provavelmente ter preferido adaptar a sua mensagem às circunstâncias políticas dos anos 1930, em vez de as tratar com desdém, como de facto fez.”

Churchill, acrescenta Andrew Roberts, “nunca sofreu de deferência das classes médias nem de ansiedade social, simplesmente porque ele não era de classe média, e o que pensavam as respeitáveis classes médias não era importante para a criança nascida no Palácio de Blenheim”.

Tenho de confessar que esta passagem imediatamente me recordou a minha primeira visita a Blenheim, em 1990. O palácio onde Churchill nasceu tinha sido mandado construir pela Rainha Ana para oferecer ao Duque de Marlborough, antepassado de Churchill, como recompensa pelas suas proezas militares em 1705. Ainda hoje é considerado uma das mais imponentes propriedades privadas em Inglaterra. Quando cheguei lá pela primeira vez, lembro-me perfeitamente de ter ficado surpreendido com a imponência do Palácio e dos amplos bosques e lagos adjacentes. E o meu primeiro pensamento foi que alguém nascido em Blenheim não teria muita propensão para obedecer a ordens de comando — especialmente se estas fossem ditadas por “that man” (como Churchill se referia ao desprezível cabo Hitler), ou pelo camarada Stalin.

Este aristocrático sentimento de rebeldia contra poderes arbitrários de plantão está de facto presente em muitos discursos de Churchill. Um dos mais expressivos terá sido o seu discurso em Paris, em 1936, contra o nazismo e o comunismo:

“Como poderemos nós, criados como fomos num clima de liberdade, tolerar ser amordaçados e silenciados; ter espiões, bisbilhoteiros e delatores a cada esquina; deixar que até as nossas conversas privadas sejam escutadas e usadas contra nós pela polícia secreta e todos os seus agentes e sequazes; ser detidos e levados para a prisão sem julgamento; ou ser julgados por tribunais políticos ou partidários por crimes até então desconhecidos do direito civil?

“Como poderemos tolerar ser tratados como rapazinhos, quando somos adultos; sermos obrigados a desfilar às dezenas de milhar entoando esta ou aquela palavra de ordem; vermos filósofos, professores e autores serem intimidados e obrigados a trabalhos forçados até à morte em campos de concentração; sermos forçados a todo o momento a esconder o funcionamento natural do intelecto humano e a pulsação do coração humano? Pois eu afirmo que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para não termos de nos submeter a tal opressão!”

Por outras palavras, concordo com Andrew Roberts quando ele sugere que a origem e formação aristocráticas de Churchill lhe terão facultado um sentido de rebeldia contra ordens arbitrárias de comando originárias de poderes centralizados e distantes — mas não necessariamente contra as opiniões e sentimentos das pessoas comuns. Como Roberts enfatiza correctamente, Churchill gostava de recordar o mandamento de Edmund Burke, “Trust the people”. E, ao descrever a filosofia política de seu pai, o conservador Randolph Churchill, Winston escreveu: “Ele não via razão para que as velhas glórias da Igreja e do Estado, do Rei e do País, não pudessem ser reconciliadas com a democracia moderna; ou que as massas do povo trabalhador não se pudessem tornar as maiores defensoras daquelas antigas instituições através das quais as suas liberdades e o seu progresso têm sido alcançados.”

De acordo com Roberts, a origem e formação aristocráticas de Churchill deram-lhe também, ou talvez sobretudo, um sentido de dever para com o povo e a nação. Escreve Roberts:

“As suas opiniões políticas vinham essencialmente do movimento ‘Young England’ que Disraeli lançara na década de 1840, cujo sentido de noblesse oblige assumia eterna superioridade mas também instintivamente apreciava os deveres dos privilegiados para com os menos favorecidos. A interpretação de Churchill sobre as obrigações da aristocracia era que ele e a sua classe tinham uma profunda responsabilidade para com o seu país, o qual tinha o direito de esperar dele uma vida dedicada a servir o país.”

Roberts em seguida acrescenta sabiamente que, “como verdadeiro aristocrata, Churchill não era snob”. Recordando que os amigos mais próximos de Churchill vinham de uma vasto círculo social, o biógrafo chama a nossa atenção para um notável episódio sobre a visita da sua Ama, Mrs. Everest, ao colégio de Harrow, em 1892 (quando Churchill tinha 18 anos). O jovem Winston caminhou com ela de braço dado através de todo o colégio até à estação de comboios, e “até teve a coragem de lhe dar um beijo” — ignorando ostensivamente o snobismo dos seus colegas de Harrow.

O distinto historiador britânico Andrew Roberts publicou em Outubro de 2018 a mais recente biografia de Winston Churchill

Esta força de vontade e a capacidade de resistência de Churchill iriam ficar sobretudo patentes na década de 1930 -- “the wilderness years”, como ficaram conhecidos. Isolado no seio do seu próprio partido Conservador – ao qual regressara em 1924, vinte anos depois de o ter trocado pelos Liberais, em 1904 – Churchill recusou ao longo de toda a década de 1930 subscrever as teses dominantes favoráveis ao apaziguamento com a Alemanha em acelerado processo de rearmamento. Essa persistente oposição ao consenso dominante da época – o que hoje chamaríamos o pensamento politicamente correcto da altura – custou-lhe um tremendo isolamento político e pessoal. Mas Churchill não cedeu. Durante dez anos, repetiu os alertas contra o rearmamento da Alemanha, condenou a paralisia da Sociedade das Nações, denunciou a maré anti-democrática que, à esquerda e à direita, crescia na Europa. A partir da sua casa de campo em Chartwell, onde escrevia e reunia um pequeno círculo de teimosos dissidentes, Churchill construiu pacientemente um autêntico “governo sombra”. Recolhia informações sobre a evolução da Europa, acompanhava o crescimento das forças militares alemãs, estudava a evolução das tecnologias militares. Esses dez anos de resistência solitária tinham-no preparado como a nenhum outro para liderar a resistência inglesa, quando tudo parecia perdido. E foi um programa de resistência que anunciou nas palavras memoráveis do seu primeiro discurso como Primeiro-Ministro na Câmara dos Comuns, a 13 de Maio de 1940, quando ainda estava a formar o seu Governo:

“Nada tenho a oferecer senão sangue, esforço, lágrimas e suor. Temos perante nós uma ameaça da mais grave natureza. Temos perante nós muitos, muitos longos meses de combate e sofrimento. Perguntam-me, qual é a nossa política? Eu direi que é a de fazer a guerra, por mar, terra e ar, com todo o nosso poder e com toda a força que Deus nos deu; fazer a guerra contra uma monstruosa tirania, nunca ultrapassada no lamentável catálogo do crime humano. Esta é a nossa política... Perguntam-me, qual é o nosso objectivo? Posso responder numa palavra: é a vitória. Vitória a todo o custo, vitória apesar de todo o terror, vitória por mais longa e árduo que o caminho possa ser; porque sem vitória, não há sobrevivência.”

Menos de um mês depois, a 4 de Junho, Churchill voltaria ao Parlamento, um dia após a evacuação com êxito de Dunkirk de 224,318 soldados ingleses e 112,172 soldados franceses. Churchill considerou Dunkirk um milagre, confessando nunca ter esperado conseguir evacuar mais de 20 ou 30 mil soldados. Mas alertou que “devemos ser muito cautelosos em não atribuir a esta operação os atributos de uma vitória. As guerras não se ganham com evacuações.” E foi neste contexto que ele proferiu o célebre discurso no Parlamento:

“Apesar de largas partes da Europa e muitos velhos e famosos Estados terem caído ou poderem cair nas garras da Gestapo e de todo o odioso aparato do poder Nazi, nós não vacilaremos. Iremos até ao fim. Combateremos em França, combateremos nos mares e nos oceanos, combateremos no ar com crescente confiança e crescente força, defenderemos a nossa ilha, qualquer que seja o seu custo. Lutaremos nas praias, lutaremos nos campos de aterragem, lutaremos nos campos e nas ruas, lutaremos nas montanhas; nunca nos renderemos. E se, o que não acredito por um momento que seja, esta ilha ou uma larga parte dela fosse subjugada e condenada à fome, então o nosso Império para além dos mares, armado e guardado pela Armada Britânica, continuaria a luta até que, quando Deus quisesse, o Novo Mundo, com todo o seu poder e força, avançasse para salvar e libertar o Velho.”

“CORTINA DE FERRO”

No fim da guerra, Churchill voltaria a dar provas desta força de vontade e capacidade de resistência. Tendo vencido a guerra para logo a seguir perder as eleições, o velho combatente não desistiu. Em 1946, no célebre discurso de Fulton, no Missouri, ladeado pelo Presidente Truman, Churchill fez a primeira denúncia pública da tirania bolchevique que se abatia sobre a Europa central e de Leste:

“De Stettin no Báltico a Trieste no Adriáti- co, uma cortina de ferro está a descer através do Continente. Por detrás dessa linha ficam todas as capitais dos antigos Estados da Europa central e oriental. Varsóvia, Berlim, Praga, Viena, Budapeste, Belgrado, Bucareste e Sofia, todas estas famosas cidades e a população em seu redor estão no que devemos chamar a esfera soviética, e todas estão sujeitas, de uma forma ou de outra, não apenas à influência soviética mas a um muito elevado e, nalguns casos, crescente controlo de Moscovo.

[...] Quaisquer que sejam as conclusões a retirar destes factos – e de factos se trata – esta não é certamente a Europa Libertada que nós lutámos por construir. Nem ela contém os ingredientes essenciais de uma paz permanente”.

Churchill iria então, mais uma vez, desafiar o consenso politicamente correcto que emergia nos pós-guerra. Este consenso, promovido habilmente pelas forças comunistas e pela ala esquerda das socialistas, contava com a paralisia comprometida de grande parte das forças centristas e conservadoras. Estas estavam embaraçadas pela propaganda esquerdista que re-escrevia a história da II Guerra, apresentando-a como uma guerra contra as forças conservadoras, a chamada “direita”, alegadamente representadas pelo nazismo alemão e pelo fascismo italiano. De acordo com essa narrativa imaginária, a União Soviética de Staline teria sido a grande opositora de Hitler. O socialismo seria o destino inexorável do progresso histórico. E a eliminação definitiva das raízes do belicismo nazi-fascista exigiria a destruição do capitalismo e a construção do socialismo.

Obviamente, esta mistificação só podia merecer o desprezo de Churchill. Orgulhoso conservador e liberal, Churchill sabia bem que a democracia ocidental fora ameaçada pelos totalitarismos colectivistas de sinal contrário, o comunismo e o nazismo — cuja aliança aliás desencadeara a dupla invasão da Polónia em Setembro de 1939, e, com ela, o início da II Guerra. E Churchill sabia que a resistência das democracias de língua inglesa se devera em grande parte ao facto de elas nunca terem sido tentadas pela hostilidade anti-ocidental – a hostilidade ao pluralismo político e eco- nómico, ao Governo limitado pela Lei que presta contas ao Parlamento, à economia de mercado e empresa live -- a hostilidade pregada por esses dois colectivismos revolucionários de sinal contrário, o comunismo e o nazismo.

Com base nesta sólida visão do mundo, Churchill iria apresentar no discurso de Fulton, em 1946, a estratégia que viria a servir de base à Guerra Fria e ao “containment” da ameaça comunista durante as quatro décadas seguintes. Em Fulton, Churchill defendeu que as Nações Unidas só poderiam desempenhar um papel efectivo se as democracias ocidentais actuassem unidas no seu interior. Apelou ainda à reconstrução de uma Europa ocidental unida, ideia que viria a desenvolver no célebre discurso de Zurique, também em 1946, em que apelou à criação de uma comum cidadania europeia, chegando a mencionar a ideia possível de “qualquer coisa como uns Estados Unidos da Europa” (de que o Reino Unido, sendo apoiante, não faria no entanto parte). Finalmente, no núcleo dessas alianças democráticas, voltou a colocar a relação especial entre a Inglaterra e os Estados-Unidos da América, parceiros centrais da vasta comunidade dos povos de língua inglesa. Churchill via esta comunidade de língua inglesa como a principal referência de liberdade ordeira na História recente ocidental, herdeira de Atenas, Roma e Jerusalém. E atribuía-lhe a principal responsabilidade na vitória da II Guerra Mundial.

Churchill com efeito acreditava na especificidade da história comum dos povos de língua inglesa — e este foi o título do seu último de mais de 40 livros, publicado em 4 volumes em

Churchill sabia que a resistência das democracias de língua inglesa se devera ao facto de elas nunca terem sido tentadas pela hostilidade anti-ocidental

Churchill, cuja mãe era americana, definiu esta herança comum em inúmeras ocasiões. Talvez uma das mais significativas tenha ocorrido no seu discurso na Universidade de Harvard, em 1943, por ocasião do seu Doutoramento Honoris Causa por aquela universidade:

“A lei, a língua, a literatura — estes são factores consideráveis. Concepções comuns do que é justo e decente, um marcante respeito por fair play, especialmente para com os fracos e os pobres, um forte sentimento de justiça imparcial, e acima de tudo o amor pela liberdade pessoal.. Se permanecermos juntos, nada será impossível. Se ficarmos divididos, tudo falhará. Por isso eu prego continuamente a doutrina da associação fraternal entre os nossos dois povos, pela causa de serviço à humanidade e pela honra que advém de servir fielmente grandes causas.”

Um notável exemplo deste comum comprometimento anglo-americano para com a liberdade e o dever (como Edmund Burke gostava de dizer) pode ser encontrado num aparentemente minúsculo detalhe desta massiva biografia agora publicada. Numa carta dirigida a Winston por sua mulher, Clementine, em 1940, disse-lhe ela:

“Parece que os teus Secretários Pessoais acordaram entre si comportar-se como meninos de escola, ‘aceitando tudo o lhes dizes’ e depois escapando da tua presença encolhendo os ombros... Devo confessar que tenho notado uma deterioração nas tuas maneiras, não és tão amável como costumavas ser. Tens o poder de dar ordens e se elas não forem cumpridas, podes despedir qualquer pessoa — excepto o Rei, o Arcebispo de Canterbury e o Speaker [da Câmara dos Comuns]. Por isso, com este tremendo poder deves combinar urbanidade, amabilidade e se possível calma olímpica. Costumavas citar ‘On ne règne sur les âmes que par le calme’. Não posso aceitar que aqueles que servem o país e te servem a ti próprio não possam também gostar de ti, e admirar-te, e respeitar-te.”

Andrew Roberts admira, e leva-nos a admirar, que num momento de grande perigo para a nação e para todas as nações livres — a carta é de 1940 — ‘o primeiro-ministro britânico pudesse estar a ser repreendido por sua mulher a propósito das suas maneiras’. Ele acrescenta que era altamente improvável que alguém naquela mesma altura “estivesse a dizer algo semelhante ao líder da Chancelaria do Reich”.

Muito obrigado.

Academia de Ciências de Lisboa,
28 de Novembro de 2019


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