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Virtude Política


Virtude Política

O problema fundamental em torno do qual ele gravita é o da possibilidade de melhorar a qualidade da política através dos políticos; e, nesse caso, o da identificação e geração das competências correspondentes.

Pedro Rosa Ferro
Virtude Política Uma Análise das Qualidades e Talentos dos Governantes
Almedina, 2017

Pedro Rosa Ferro Pedro Rosa Ferro

Professor da AESE, Professor convidado IEP-UCP

E ste livro reproduz basi- camente a tese de dou- toramento do autor, no Instituto de Estudos Po- líticos da Universidade Católica Portuguesa, sob o título: Virtude Política. A figura do estadista, a partir de Harvey C. Mansfield. O problema fundamental em torno do qual ele gravita é o da possibilidade de melhorar a qualidade da política através dos políticos; e, nesse caso, o da identificação e geração das competências correspondentes. Procurei tratar este problema decompondo-o em três sub-questões (que correspondem também aos capítulos centrais do livro), que podemos formular, simplificadamente, através das seguintes interrogações: Qual a relevância da virtude política pessoal dos governantes? Qual a substância dessa virtude? Como seria possível suscitá-la? O produto final pretendido consiste numa visão estruturada sobre o que podemos dizer, sob o estímulo de Mansfield, sobre essas questões. No final, essa visão culmi- na num convite à restauração – embora muito matizada e sem complacência – da dignidade e importância da actividade e da profissão políticas.

Neste apresentação, começarei por esboçar as razões pelas quais escolhi o tema investigado e pelas quais julgo ser importante estudá-lo. Depois, aflorarei três ideias: a primeira, acerca da importância das pessoas políticas; a segunda, acerca da prudência política; a terceira, acerca de condições de possibilidade da emergência de virtude política.

A PERGUNTA “QUEM DEVE GOVERNAR?”
O ponto de partida do livro é o contraste entre o relevo concedido pelas opiniões comuns e pela filosofia política clássica à virtude do pessoal político, por um lado, e o desinteresse ou desvalorização – quando não rejeição – que a teoria política contem- porânea dedica a essa matéria, por outro.

Virtude PolíticaNos anos 40 do século passado, o politi- cólogo americano Harold Lasswell escreveu um livro famoso intitulado A Política: quem consegue o quê, quando, como. 1 Ora, a enfâse da teoria política moderna tem sido colocada inteiramente nos benefícios que se obtêm – o quê, quando, como se distribui? – em vez de no quem: quem é o agente político, quem pensa ele que é, quão importante é ele. Psicólogos, poetas e filósofos atenderam a essa questão, a teoria política moderna não. A statesmanship e a virtude política não figuram certamente entre os temas mais tratados pelas suas correntes principais. 2 Esse relativo silêncio estará associado à focalização nos aspectos formais, institucionais e procedimentais de uma sociedade justa, em detrimento do comportamento humano real. E, noutros casos, resultará talvez da rendição a factores impessoais, supra-pessoais ou sub-racionais – seja metafísicos, históricos, económicos, sociológicos, psicológicos ou outros – re- lativamente aos quais a política seria uma mera “super-estrutura” e os políticos seriam meros títeres.

 Por outro lado, em contraponto, ouvi- mos o clamor e lamento sobre a “falta de liderança” – e, em geral, sobre a falta de qualidades – dos dirigentes políticos actuais, que constituiria uma das causas do nosso mau estar e das nossas diversas crises. Um exemplo eloquente desse desencanto pela degradação da elite política foi-nos ofere- cido há cerca de um ano pela campanha presidencial nos EUA. As pessoas estão zangadas e ressentidas. «Não confiam no governo», e consideram que «os políticos estão continuamente a mentir». 3 As pessoas duvidam quer das capacidades quer das intenções da classe política. A palavra que melhor condensa a atitude comum face aos governantes (ou aos candidatos a tal) será talvez enfado, no duplo sentido de aversão e de tédio. 4 E a convicção resultante é a de que os problemas da política decorrem – em grande parte – do próprio pessoal político.

Agora, ao mesmo tempo que a teoria política é pouco sensível ao carácter dos políticos, o homem comum despreza os políticos

Assim, agora, ao mesmo tempo que a teoria política é pouco sensível ao carácter dos políticos, o homem comum despreza os políticos. E esse desprezo tende a degenerar em desilusão pela política (em geral), e pela política democrática (em particular), mani- festada quer pelo alheamento e abstenção, quer pela raiva e voto de protesto. Estudos empíricos revelam um declínio do apoio à democracia ocidental, manifestando uma inclinação a favor de putativos “líderes fortes”, libertos dos freios e contrapesos próprios dos regimes constitucionais; ou a favor do governo de técnicos e peritos, em detrimento de repre- sentantes eleitos. 5 Ora, esse descontentamento e irritação populares devem inspirar-nos um «receio salutar», como dizia Tocqueville 6 , pela sorte da democracia liberal.

Virtude PolíticaLeo Strauss contrasta, algures, os mundos da filosofia política de Platão e Aristóteles com o mundo turbulento de Tucídides. A melhor cidade está em repouso; a cidade real está em movimento: movimento de pessoas, de partidos, de cidadãos, generais, estadistas e demagogos. Pessoas com nome e rosto próprio, a quem importa o bom nome e não perder a face; a quem importa o que indigna, desonra ou zanga, o que enobrece ou degrada... A hipótese subjacente à investigação agora apresentada é precisamente a de que a teoria política deve olhar para a política tendo também em consideração a pessoa, a pessoalidade dos actores políticos; e deve dar atenção à pergunta clássica sobre “quem deve governar” – no sentido de averiguar quais devem ser as virtudes dos príncipes. Essa pergunta não pode ser razoavelmente suprimida. Sem ela, a teoria política ficaria como que desequilibrada.

«TUDO O QUE NÃO É AUTOMÁTICO PER- TENCE AO REINO DA VIRTUDE» 7
Vale a pena remontar, por um momento à monarquia virtuosa de Aristóteles, no Livro III da sua Política. Trata-se de um regime e de um rei imaginários, uma meta-Constituição, um padrão de referência, mas não por isso irrelevantes: permitem-nos idealizar algo melhor do que o que já temos e, ao mesmo tempo, previnem-nos contra o investimento das nossas esperanças na perfeição política e ensinam-nos a desconfiar das posições facciosas, quando afirmadas unilateralmente, sem mistura ou moderação.

Segundo Aristóteles, a regência da lei e o regime misto seriam dispositivos concebidos para viabilizar e confortar a virtude política que se poderia razoavelmente esperar, à custa de sacrificar os benefícios de uma irrestrita e rara virtude, caso ela surgisse. Os conceitos modernos – de soberania, representação, direitos, interesse próprio, poder executivo, separação de poderes... – têm ainda, de algum modo, o mesmo propósito. Simplesmente, os Modernos (por grosso) perderam de vista a virtude. Ela ter-se-ia tornado supérflua, pelo mecanismo da separação de poderes, pelo princípio da legalidade e pela res- ponsabilidade política democrática; seria dispensável, para efeitos de representação; seria facultativa, face à autoridade racional- -legal; seria impotente, no confronto com o império da necessidade maquiaveliana; seria obsoleta, face a conceitos científicos, moralmente neutros, como os de interesse próprio e energia. Na teoria política moder- na, a ciência seria o sucedâneo da virtude.

Todavia, o investimento excessivo – po- deríamos dizer dogmático, talvez – nos su- cedâneos da virtude produziu uma “certeza”, uma confiança desmesurada nos mecanismos institucionais, como se eles fossem infalíveis. A ciência política visaria soluções mecânicas, universais, exactas, predictíveis. Ora, um sis- tema que reconhece a relevância da virtude sabe da sua fragilidade, enquanto os sistemas que dispensam a virtude assentam no pró- prio sistema e não são capazes de resistir às tentações da perfeição ou da complacência.

As instituições são sempre imperfeitas e participam da falibilidade humana. Nem as melhores estruturas institucionais podem gerar, por si mesmas – a partir do papel, de teorias, mecanicamente ou por inércia, ou mesmo por coerção – a realidade e substância da representação ou da separação de poderes, por exemplo. Isso não pode ser conseguido sem, ou contra, as convicções e qualidades dos indivíduos que operam o sistema; sem um esforço inteligente, responsável e virtuoso de algumas pessoas, pelo menos. Enfim, o sistema político constitucional não é auto- -suficiente – não “funciona sozinho”, com piloto automático. Em complemento, parece carecer (para ser funcional) de alguma variá- vel exógena ao sistema – i.e., que o sistema é incapaz de produzir ou, pelo menos, de garantir – nomeadamente, a virtude pessoal de pilotos de carne e osso.

Enfim, podemos dizer que a ideia – dos autores das primeiras Constituições liberais – segundo a qual se poderia criar “um go- verno de leis e não de homens” é uma ilusão piedosa. Todos os governos são governos de homens, embora os melhores contenham também uma elevada mistura de lei – isto é, de limitações eficazes sobre a acção livre dos governantes. 8

STATESMANSHIP E GENTLEMANSHIP
Virtude Política Ao longo do livro, a prudência foi repetida- mente afirmada como correspondendo à dimensão fundamental da actividade política, não no sentido de oportunismo, mera reti- cência ou aversão ao risco – ao que Edmund Burke chamou «false reptile prudence» 9 – mas no daquilo que ele designou «god of this lower world» 10 . Segundo Aristóteles, é «a única virtude peculiar ao governante» 11 . No livro, contrastei a prudência política de tradição aristotélica (aquela que não está nos livros e que só podemos conhecer a partir do exemplo das pessoas a que chamamos prudentes, como diz o Estagirita) com a prudência astuciosa de Maquiavel (aquela que só ele saberia ensinar aos príncipes, razão pela qual escreveu precisamente os seus dois livros principais). Distingui entre a prudência política e a ciência política, mobilizando Burke e Tocqueville para esse efeito, e assinalei as diferenças entre a con- cepção prudencial da política e a concepção técnica rival, que podemos também remontar a Maquiavel.

De acordo com Harvey Mansfield, Burke distinguia entre uma prudência menor e uma prudência maior. A primeira corresponde à virtude «presumível» e ao sentido comum dos gentlemen. Toma como critério a «pres- crição», o precedente provado e proveitoso, segundo as chamadas «regras da prudência». Ao contrário, a grande prudência não tem regras: é para o uso dos poucos dotados de virtude real (e não apenas «presumível») – os estadistas – capazes de perceber que o que funcionou no passado pode não funcionar no presente; capazes de ver para além das aparências; ou de ver mais longe. As inter- venções da prudência maior são irregulares, erráticas e imprevisíveis, ocorrendo – e só se revelando – em ocasiões extraordinárias.

Esta distinção recoloca o problema da competência política. Devemos esperar e desejar grandes estadistas? A verdade é que, a priori não sabemos de que formas essa qualidade se reveste, nem onde ela se encontra, uma vez que eles são teoricamente intratáveis. Provavelmente, só a posteriori é que podemos reconhecê-la. Como lidar com a esperança de Alexandre, a sorte de César ou a estrela de Napoleão? Como suscitar a vocação do estadista trágico de Weber, ou a presciência do político de Ortega y Gasset?

Uma comunidade política livre não é, não pode ser, nem deve tomar como ideal, quer uma república de anjos governada por anjos, quer uma república de demónios dirigida por anjos, quer uma república de anjos liderada por demónios

Enfim, podemos questionar se os nossos problemas políticos advêm da ausência de grandes estadistas ou sobretudo da escassez de gentlemen honrados, experientes, livres, com ideias próprias, sensatos, corajosos e razoavelmente competentes: pessoas normais, dispostos a assumir as suas responsabili- dades, e que aprenderam a governar-se a si próprios, como na tradição dos Espelhos dos príncipes.

OS PARTIDOS, OS MEDIA E A EMERGÊNCIA DE VIRTUDE POLÍTICA
O sistema de partidos afecta obviamente a qualidade da representação política e do governo: deles depende, em parte, a possibilidade prática da emergência dos gentlemen honrados acima referidos. Quanto aos media, sabemos que têm um papel insubstituível num regime livre, favorecendo o escrutínio público e a con- tenção do poder. No entanto, sabemos também que a mediatização extrema e avassaladora da opinião pública funciona como contrapeso das formas constitucio- nais que foram concebidas, precisamente, para permitir a deliberação ponderada e paciente, e para resistir à pressão dos re- sultados imediatos, fáceis e provavelmente ilusórios. Embora não necessariamente, a parafernália mediática – exacerbada agora pelos social media – potencia a demagogia, a abdicação do argumento e do discurso a favor da emoção superficial e, finalmente, a “pós-verdade”.

Virtude Política Até aqui, nada de particularmente original. A questão é que o sistema de partidos e a mediatização da política, em conjunto, parecem conduzir, actualmente, a um quadro em que as qualidades exigidas a um político para ser eleito (i.e., para ser um bom candidato) – p.e., a telegenia, as competências de adulação, manipula- ção comicieira e gestão de clientelas, as capacidades histriónicas... – não só são muito diferentes das qualidades necessá- rias para ser um bom governante, como podem até ser opostas: o que tornaria esse político um formidável candidato seria precisamente o mesmo que faria dele um mau governante.

Será assim? E o que se pode fazer entre- tanto? Purificar a vida associativa interna dos partidos? Optar por sistemas eleitorais de tipo uninominal? Alargar o prazo dos mandatos, diminuindo a periodicidade dos actos eleito- rais? Melhorar a regulação da comunicação social e das campanhas eleitorais? Mesmo que tudo isso fosse desejável e possível (e algo será), não parece ser bastante.

O problema parece estar a montante da política. Com efeito, a higiene interna dos partidos e a auto-moderação dos media remetem ainda para as fibras éticas da sociedade. Burke recordou que:

os homens são capazes da liberdade civil na proporção exacta da sua disposição para colocar as exigências morais acima dos seus apetites (...). Nenhuma sociedade pode subsistir se não for estabelecido algures um poder disciplinador sobre a vontade e sobre o apetite e, quanto menor for o controlo a partir de dentro, maior terá que ser o con- trolo externo. 12

Ora, a democracia liberal – em nome do princípio do governo limitado e da separação entre o Estado e a sociedade – tem uma compreensível relutância em ministrar esse «controlo externo». O liberalismo espera e deseja que os cidadãos sejam (minimamente) virtuosos, mas não pode forçar nem formar directamente o seu carácter. A solução deste problema está fora do seu alcance.

Evocando os famosos dicta de Kant, Burke e Madison sobre o angelismo po- lítico, poderia concluir recordando que uma comunidade política livre não é, não pode ser, nem deve tomar como ideal, quer uma república de anjos governada por anjos, quer uma república de demónios dirigida por anjos, quer uma república de anjos liderada por demónios. Mas não será também uma república de demónios governada por demónios, dependendo apenas da perfeição da sua Constituição. Em apoio da primeira asserção vale o pensamento de Pascal: «O homem não é anjo nem besta, e o problema é que aquele que pretende ser como anjo acaba por fazer de besta». 13 Se a política igno- rar a imperfeição congénita da condição humana, não favorecerá a justiça, nem a segurança, nem a liberdade, nem sequer a virtude. Mas, por outro lado, se a política ignorar a razoabilidade e perfectibilidade humanas (conquanto limitadas) a par da sua falibilidade e fragilidade, a segunda parte da fórmula de Pascal poderia rezar assim: «aquele que pretende ser como besta acaba mesmo por sê-lo». Se concebermos as nossas instituições políticas na hipótese de que os homens são umas bestas, eles convertem-se nisso mesmo, e esse pressuposto antropológico torna-se uma self-fulfilling prophecy que frustrará o funcionamento daquelas instituições.

Virtude Política

Em qualquer caso, tudo isto nos recorda, mais uma vez, que a solução do proble- ma político (sempre frágil e imperfeita, aliás), se não dispensa obviamente as salvaguardas constitucionais, também não é inteiramente política.


1 Cf. Harold D. Lasswell, Politics: Who Gets What, When, How, New York, London: Whittlesey House, McGraw-Hill Book Co., 1936.

2 Cf. Catherine H. Zuckert, “Twentieh Century Revivals of Ancient Political Thought: Hannah Arendt and Leo Strauss”, in Ryan K. Balot (Ed.), A Companion to Greek and Roman Political Thought, Chichester, West Sussex: Blackwell Publishing, 2009, p. 554.

3 Cf. The Economist, “What’s gone wrong with democracy”, March 1 2014, p. 46.

4 Ver Daniel Innerarity, A Transformação da Política, Lisboa: Editorial Teorema, 2005, p. 7.

5 Cf. Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk “The Danger of Deconsolidation: The Democratic Disconnect”, Journal of Democracy, Vol.27, No 3, Julho de 2016.

6 Cf. Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, Cascais: Principia, 2001, II 4.7, p. 848.

7 Cf. Harvey Mansfield, Taming the Prince: The Ambivalence of Modern Executive Power, New York: The Free Press, 1989. p. 297.

8 Cf. Denis William Brogan, “Preface”, in Bertrand de Jouvenel, On Power. Its Nature and the History of Its Growth [Du Pouvoir, 1945], Translation by J. F. Huntington, Boston: Boston Beacon Press, 1962, p. xvi.

9 Cf. Edmund Burke, “Letters on a Regicide Peace” [1795], Select Works of Edmund Burke, Vol. 3, A New Imprint of the Payne Edition, Indianapolis: Liberty Fund, 1999, p. 68.

10 Cf. Edmund Burke, “Letter to Sheriffs of Bristol on the Affairs of America” [1777], The Works of the Right Hon. Edmund Burke, Vol. 1, London: Holdsworth and Ball, 1834, p. 216.

11 Cf. Aristóteles, Política, 1277b.

12 Cf. Edmund Burke, “Letter to a Member of the National Assembly” [1791], in Further Reflections on the Revolution in France, Daniel E. Ritchie (Ed.), Indianapolis: Liberty Fund, 1992,

13 Cf. Blaise Pascal, Pensées, in L. Lafuma (Ed.), Œuvres Complètes, Paris, Seuil, 1963, frag. 678. p. 69.


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