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Relativismo Breve périplo pelas motivações de um estudo


Relativismo Breve périplo pelas motivações de um estudo

Versão revista do texto apresentado por ocasião da apresentação do livro Maritain e Bento XVI Sobre a Modernidade e o Relativismo, em Julho de 2014, no IEP-UCP

Diogo Madureira
Maritain e Bento XVI sobre a Modernidade e o Relativismo

Editorial Cáritas, 2014

por Diogo Madureira Diogo Madureira

Aluno de Doutoramento do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

Ainda tinha eu idade de liceu quando um momento inesperado acabou por me inclinar definitivamente para a opção por uma vida universitária dedicada à filosofia política. Em certa ocasião, num bar onde costumava encontrar-me com os meus amigos, uma amiga acusou-me de machismo por lhe ter dado o lugar onde estava sentado. A cena pode parecer prosaica mas para mim foi tudo menos irrelevante. Pude compreendê-la melhor por coincidir no tempo com um encontro que, no meu caso como em tantos outros, costuma dar-se nesse tempo de encontros que a adolescência é: o encontro com o marxismo.

Só mais adiante haveria de aprofundar o conhecimento do olhar “anti- -patriarcal” a partir dos contributos da escola de Frankfurt, da “desconstrucção” de Derrida, da crítica pós-estruturalista de Foucault ou do chamado pós-feminismo de género de Judith Butler. Não obstante, naquela altura podia notar que o enfoque marxista era incontornável para poder enquadrar aquela reacção num modo de pensar onde todas as instituições tradicionais e convenções culturais representam, na melhor das hipóteses, criações absurdas e, na pior, sofisticados instrumentos de controlo psico-social ao serviço das relações de poder dominantes. Este prisma interpretativo aplica-se transversalmente a todo o acto de conhecer, ou seja, quer tratemos de perceber os comportamentos que definem a consideração ou o respeito pelo próximo, quer queiramos compreender realidades socio-políticas como a família ou a ideia de pátria, por exemplo. Em termos genéricos, revela uma voracidade iconoclasta que, no limite, encara a noção de civilização como corrupção e princípio de todos os males e a natureza como produto subjectivo que é possível moldar sempre que se apresentar como obstáculo à vontade - antes uma vontade autoritária exercida em nome do colectivo, agora uma vontade exclusivamente individual.

A realidade que se oferece à apreensão do sujeito cognoscente através da razão não é, assim, portadora de sentido nem oferece indicações sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado. É apenas uma construção cultural; mero phenoumena de um tempo e de um espaço histórico concretos sem qualquer valor vinculativo para além desse contexto. Esta é a tese central do historicismo que Marx foi buscar a Hegel e articulou com o materialismo de Feuerbach para no fim explicar que toda a “super-estrutura” da cultura, do pensamento e da política é produto da “infra-estrutura” económica, ou, por outras palavras, que as ideias não são mais do que um produto da matéria. Gramsci agarrou nesta mesma tese para, em pleno século XX, operar uma pequena nuance no marxismo e incitar os seus correlegionários a começar a revolução por cima - pela cultura e pela educação; pelo controlo dos meios de formação, informação e comunicação - e não por baixo - pela matéria; pelo controlo dos meios de produção.

Não há dúvida que esta perspectiva é, em parte, verdadeira, porque todos somos sempre filhos do nosso tempo. Existe no entanto algo em nós que permite sermos mais do que simplesmente reflexo do contexto social ou caixa de ressonância das opiniões gerais. Só a partir desta consciência é que se pode combater a ideia da total subjectividade dos valores, por mais difícil que pareça demonstrar de modo objectivo que existe uma razão comum a todos os homens capaz de ajudar a perceber a difereça entre o bom e o mau, o certo e o errado.

Com o andar dos anos, esta inquietação foi-me sempre acompanhando até que, pela mão de Joseph Ratzinger, o Papa emérito Bento XVI, percebi que a convicção segundo a qual todos os princípios são relativos, não só não era consensual como não era nova. Pelo contrário, sempre fora foco de muita controvérsia na história das ideias e a filosofia contemporânea dera-lhe direito a um “ismo” quase óbvio: o relativismo. Decidi por isso estudar o problema mais a fundo quando chegou a altura de escolher o tema para a tese de mestrado e o objectivo era não apenas localizar as origens do relativismo na história do pensamento político mas também explorar as suas consequências quer para a filosofia e o conhecimento quer para a política.

DITADURA DO RELATIVISMO

A primeira das razões que me trouxe a este assunto tem a ver com o facto muito típico dos nossos dias de o relativismo se ter imposto como a filosofia dominante na cultura ocidental. Devemos ao Papa Bento XVI a definição desse fenómeno como a “ditadura do relativismo”.

como a “ditadura do relativismo”. Esta ditadura consiste numa espécie de constrangimento psicológico e social movido contra todos aqueles que contestam a convicção relativista de que a única verdade tolerável é a de que a verdade não existe e, pelo contrário, acreditam na existência de uma razão comum a todos os homens que, em diálogo com a fé, lhes permite conceber a verdade de determinadas concepções da vida e do mundo e alcançar princípios de bem e de justiça partilháveis por todos, aqui ou na China, no século XXI, no século IV ou no século XXXIV.

Em grande medida, a ditadura do relativismo é uma variante da tirania da maioria que Tocqueville apontava como um perigo típico da era democrática e perfeitamente capaz de retirar a qualquer democracia o direito ao próprio nome. Servindo-se da empatia que quase instintivamente se estabelece com palavras como tolerância, abertura, progresso ou diálogo intercultural, a ditadura do relativismo ostraciza para o canto lúgubre do obscurantismo e do extremismo todos os que se recusam a aceitar a total subjectividade dos valores e a elevação da vontade do homem ao estatuto de fonte exclusiva de direitos.

Relativismo Breve périplo pelas motivações de um estudo A partir deste pequeno retrato podemos perceber que, em termos procedimentais, digamos assim, a ditadura do relativismo é parecida às ditaduras tradicionais. No entanto, para além de ser certamente menos violenta, ou pelo menos ser de uma violência mais latente que manifesta, há uma diferença fundamental que distingue a ditadura do relativismo das outras. Essa diferença reside no facto de ela justificar a sua legitimidade na base da suposta neutralidade moral e política da relaposição relativista. Ou seja, enquanto as ditaduras tradicionais identificam um desígnio a realizar e se fecham sobre um sistema ideológico de pensamento e acção para o qual mobilizam a comunidade, a ditadura do relativismo procura afirmar -se através da presunção de neutralidade e tenta dissimular o facto de ela própria carregar uma certeza sobre a existência que, como não pode deixar de ser, é sempre uma leitura parcial do todo e não pode confundir-se com a verdade do todo.

Neste sentido, poderíamos dizer que a ditadura do relativismo é tanto mais sofisticada e eficaz quanto mais ela conseguir disfarçar a sua parcialidade e convencer- nos de que é neutra. Desmascarar esse exercício e confrontar a suposta neutralidade da abordagem relativista é um autêntico desafio intelectual e beneficia do atractivo psicológico que é possível exprimentar quando remamos contra a maré do conformismo intelectual ou do politicamente correcto. Como dizia Chesterton, os corpos mortos vão sempre na corrente mas só os corpos vivos podem lutar contra ela e essa foi, em suma, a primeira razão que me motivou a fazer a tese que é a base deste livro.

AS CONSEQUÊNCIAS DO RELATIVISMO PARA A FILOSOFIA E A POLÍTICA

A segunda razão tem a ver com as tais consequências do relativismo para a filosofia e a política, consequências essas que pude sempre pressentir mas que mesmo hoje, dada a complexidade do tivo - ou se leva o raciocínio até ao fim e se reconhece que tal como todas as outras formulações de verdade, também a certeza relativista é uma ilusão cuja validade é indemonstrável e limitada à sua própria contingência histórica ou material. Ambas as soluções se concretizaram em modelos políticos específicos e tentei descrever esse processo no livro recorrendo o mais possível a exemplos históricos mas seria impossível debruçar- me sobre isso agora sem me alongar demasiado. Concentro-me, portanto, naquilo que me parece essencial: é que seja qual for a solução escolhida, em última análise a contradição intrínseca do relativismo conduz necessariamente à atrofia irremediável de todo o conhecimento, à inutilidade de todo o acto de pensar e, portanto, à impossibilidade do próprio amor ao saber (philos sofia).

Em suma, independentemente da variedade dos caminhos, o destino lógico do relativismo é o niilismo onde nada vale. Acontece que onde, se e quando nada vale, vale tudo

Em suma, independentemente da variedade dos caminhos, o destino lógico do relativismo é o niilismo onde nada vale. Acontece que onde, se e quando nada vale, vale tudo. E supondo que resta vida num cenário em que vale tudo, o certo é que a única coisa que sobrevive à razia niilista é, inevitavelmente, a vontade. Como dizia Nietzsche em Assim Falava Zaratustra,

‘Só se vive a experiência de si mesmo. (...) O eu que cria, que quer, que estabelece valores e que é a medida e o valor de todas as coisas. (...) O ser vivo avalia muitas coisas mais alto do que a própria vida mas, mesmo através da avaliação, o que fala é a vontade de poder! (...) Em verdade eu vos digo: um bem e um mal que fossem imperecíveis – isso não existe!” (Nitzsche, Assim Falava Zaratustra, “Do Superar a Si Mesmo”)

As consequências políticas do relativismo deduzem-se directamente deste modo de pensar e ajudam a acabar de descrever a segunda razão do meu interesse pelo tema. O triunfo do relativismo cria o vazio ideal ao florescimento da lógica meramente subjectivista que afirma o primado da vontade arbitrária e sem medida. O século XX mostrou à saciedade a desgraça que isto significa e os totalitarismos nazi e comunista, não sendo a única, são talvez a prova mais abrumadora de que uma cultura dominada pela crença na subjectividade absoluta de todo o conhecimento e de toda a verdade, abre as portas a uma política que se rege por uma lógica utilitária perversa onde em vez de a moralidade ser condição da utilidade é a utilidade que se torna condição da moralidade.

Dado que a saída lógica do relativismo é o niilismo e perante o facto reconhecido de que tanto o totalitarismo nazi como o comunista não fizeram mais do que aproveitar o vazio moral e espiritual em que o triunfo do relativismo tinha transformado a cultura contemporânea, seria de esperar que essa mesma cultura confrontasse o relativismo com a autêntica tragédia que foram as consequências políticas da sua inconsequência filosófica.

A ESTRANHA SOBREVIVÊNCIA DO RELATIVISMO NO NOSSO TEMPO

Acontece que não foi nada disso que aconteceu e isto introduz-nos à terceira razão que encontro para que o relativismo se tenha tornado um problema tão inquietante para a filosofia política. Trata-se, enfim, dessa extraordinária e intrigante capacidade que o relativismo mostrou para sobreviver tanto à queda do nazismo em 1945 como à queda do comunismo em 1989.

Começo por dizer que essa sobrevivência se manifesta, em certa medida, naquilo de que falava há pouco a propósito da ditadura do relativismo, nomeadamente no hábito típico da cultura e da opinião pública do nosso tempo que consiste em proibir a referência à verdade em política e, no geral, a qualquer mente que se queira progressista, aberta e tolerante. Mas para perceber melhor porque é que é inquietante o modo como o relativismo se adaptou à era democrática em que vivemos, talvez não seja preciso ir mais longe e limitar-me à pergunta que Maritain fazia já nos anos 70: “Como é que podemos falar em direitos se não acreditamos em valores?”

De facto, por estranho que possa parecer, depois da II Guerra Mundial mas sobretudo a partir dos anos 60, o relativismo foi sendo erguido a fundamento da liberdade e apresentado como a melhor defesa da democracia, do pluralismo e dos direitos humanos. Em vez de admitir a falácia do relativismo e o perigo que representa, muito do intelectualismo ocidental interpretou a tragédia das ideologias totalitárias como a prova de que uma explicação da vida e do mundo a partir da razão não é possível.

Ultrapassada a era das ideologias, chegava então o momento de reconhecer que todas as mundivisões com aspirações de racionalidade e aceitação universal, independentemente de terem uma inspiração religiosa, positivista ou ateia, não passam de “metanarrativas”. Quanto muito, essas “metanarrativas” são passíveis de uma leitura analítica e descritiva pelas ciências sociais, pois trata-se de factos observáveis mas o seu valor para o conhecimento acaba aí. Podem dizer muito sobre um contexto mas não revestem qualquer transcendência enquanto fonte universal de saber. Em suma, na impossibilidade de descobrir e eliminar as diferenças entre o que é aparente e o que é real, toda a realidade deve ser sempre apreendida enquanto aparência, nunca como essência.

O predomínio desta matriz de pensamento na cultura ocidental moderna, determinou que o vetusto conceito filosófico de anamnese de que nos falara Platão não passa, afinal, de uma ilusão. Por conseguinte, a melhor forma de proteger a democracia e os direitos humanos é resguardá-la do choque de verdades que se dá na cidade e promover a neutralidade do Estado.

Este foi o balanço que muitas teorias políticas do pluralismo e da democracia anunciaram ao mundo como sendo a inauguração de uma nova era e de uma nova condição para o homem: “a condição pós-moderna” que diz ser fruto de um modo de pensar anti-ideológico ou, mais propriamente, pós-ideológico. Independentemente de o assumirem mais ou menos abertamente, as teorias políticas pluralistas tributárias da pós-modernidade, propõem uma solução para o convívio em liberdade das várias crenças que, em termos genéricos, é resumida por Richard Rorty, um dos mais proeminentes representantes daquelas teorias, da seguinte forma: “A democracia precede a filosofia”.

O DESENCANTO E A DEPRESSÃO DA ESPERANÇA PÓS-MODERNA

À luz do que tive oportunidade de dizer, sublinharia que a natureza anti- -ideológica e, sobretudo, pós-ideológica das teorias políticas pós -modernas sobre a liberdade e a democracia é muito discutível. É, pelo menos, tão discutível quanto o corte que essas teorias dizem ter feito com a modernidade. Do meu ponto de vista, esse corte é desmentido por um terreno essencial de contacto que a condição do homem pós-moderno partilha com a do homem moderno. Em defesa deste meu argumento podia referir que para a cultura relativista do nosso tempo concorre o contributo certamente inesperado de correntes políticas aparentemente inconciliáveis, como a do pensamento liberal e individualista e a do pensamento marxista, revolucionário e colectivista. Com a ajuda de Bento XVI, tentei descrever no livro as várias modalidades em que, por exemplo, o marxismo e o individualismo liberal, ou melhor, libertário, se acabaram por misturar na dita era pós-moderna que, segundo parece, é a nossa. Não posso repetir esse exercício aqui, por isso permito-me, mais uma vez, salientar apenas o essencial e o essencial é que o denominador comum a ambas as perspectivas é o materialismo e o relativismo. Seja qual for a inclinação, a solução pós-moderna para o eterno problema político da conciliação entre liberdade e verdade, entre pluralidade e unidade, herda dos séculos anteriores um cepticismo radical acerca da existência de uma realidade objectiva que o sujeito possa conhecer para ascender à verdade sobre aquilo que é sempre bom ou mau, justo ou injusto, edificante ou degradante. Por outras palavras, e voltando a Platão, o escárnio pós - moderno da anamnese representa a negação da própria ascese no conhecimento.

Relativismo Breve périplo pelas motivações de um estudo À luz destas conclusões, concordo com Maritain quando diz que para uma filosofia saudável, todo o progresso é mudança mas nem toda a mudança é progresso

Podemos, portanto, concluir que, por detrás da exaltação romântica da liberdade e da vontade individual que caracteriza as teorias políticas pós- -modernas da democracia e dos direitos humanos, se esconde um depressivo pessimismo. Gritos semelhantes ao célebre “é proibido proibir” do Maio de 68, por exemplo, são reveladores sédisso mesmo, porque mostram a falta de esperança que necessariamente denota um olhar inebriado, confuso e evasivo para o qual vale tudo.

Se, por um lado, o discurso instituído sobre a democracia e os direitos humanos nos fala constantemente de multiculturalismo, tolerância, liberdade e esperança, por outro, exige ao Estado uma neutralidade moral que é impossível e perigosa porque veda o espaço político ao debate filosófico sobre o que são, de onde vêm, do que precisam ou como se hierarquizam os direitos humanos. Entre outros efeitos, o elogio pós-moderno da vontade a par do desprezo pela razão, acaba por acantonar a consciência religiosa no domínio privado, transformando uma experiência íntima de liberdade numa experiência de delinquência.

Se por um lado, se faz sistematicamente o elogio da diferença, por outro, encaram-se todas as culturas como equivalentes e, em última instância, ignoram-se indiscriminadamente os respectivos ensinamentos como irrelevantes. Por isso é que o relativismo não consiste em dizer que as culturas são todas diferentes mas, mais propriamente, em dizer que são todas iguais. Iguais na insignificância porque, para o relativista, aquilo que as diferencia é tão indiferente como o que as une.

Se, por um lado, há na pós-modernidade um idealismo que elogia a vontade e a potência criadora do homem, por outro há também a exigência, como defende Rorty, de que a democracia preceda a filosofia, um sinal claro do medo que sente pela aspiração de verdade que estrutura toda a filosofia mas também sintomático duma percepção enviesada sobre a responsabilidade do filósofo na cidade - uma percepção, aliás, muito típica do carácter que normalmente se associa ao pseudo-intelectual.

No fundo, a depressão do liberalismo pós- moderno revela-se na desconfiança acerca de uma intuição racional comum que permite às culturas partilhar um mesmo substracto moral na diversidade dos seus costumes. Na exacta medida em que idealiza o homem e a sua pureza original, recusa-se a encarar a natureza e a tradição histórica como portos seguros ou fontes de conhecimento onde o homem possa encontrar indicações de sentido que ajudam a experiência da liberdade e a consciência sobre o bem e o mal. Pelo contrário, vê-as à como uma barreira contra a autonomia individual e as aspirações da vontade. Neste ponto - como em muitos outros, aliás... - é útil mas, sobretudo, são voltar a Chesterton:

A moderna liberdade tem o medo por raíz. Não é que sejamos tão rebeldes que não possamos respeitar leis. Somos é demasiado medrosos para assumir responsabilidades. Muitos arrepiam -se particularmente com a terrível e ancestral responsabilidade de afirmar a verdade da nossa tradição humana e de a transmitir com autoridade e firmeza. É esta a única educação, de sempre e para sempre: ter certeza bastante para saber que é verdade o que se ousa dizer a uma criança. É deste dever altamente audacioso que os modernos se estão a escapar por todos os meios e a única desculpa que têm é as suas filosofias serem tão hipotéticas e pouco amadurecidas que não conseguem convencê-los o suficiente para poderem sequer convencer os seus filhos. (...) É óbvio que quanto mais novas são as crianças, mais antigas deveriam ser as coisas a ensinar- se-lhes; verdades seguras e experimentadas. Mas, hoje em dia, nas escolas, as crianças têm de se submeter a sistemas que são mais novos do que elas. Uma criança de 4 anos tem hoje mais experiência e sabe mais do mundo do que o dogma a que a submetem”

O PROGRESSO É A VERDADE

Esta aversão de princípio pela autoridade da natureza e pela racionalidade das convenções e das instituições tradicionais traduz-se, aliás, num hábito curioso do discurso político dito progressista: a invocação do progresso parece variar na razão inversa da invocação da verdade. Por outras palavras, o progresso tornou-se a verdade, só que, paradoxalmente, as correntes mais empenhadas numa linguagem que gravita em torno do campo lexical do progresso tendem a ver a referência à verdade da natureza e da tradição histórica como um preconceito e um anátema.

Acontece que na metafísica tal como na física, sem pontos de referência seguros que nos permitam definir uma origem e um destino, é impossível saber se avançamos ou recuamos, se progredimos ou retrocedemos. O que vemos como orientação baseia-se, então, na nossa própria decisão, protegida da avaliação e do juízo dos outros pela indisponibilidade recíproca e geral para diferenciar o objectivo do subjectivo. Em última análise, como diz Bento XVI, a nossa decisão baseia-se exclusivamente no critério da utilidade.

À luz destas conclusões, concordo com Maritain quando diz que para uma filosofia saudável, todo o progresso é mudança mas nem toda a mudança é progresso. Em ligação estreita com esta perspectiva, está uma definição de felicidade de Tolstoi que, por sua vez, também nos encaminha para a metafísica cristã sobre o papel da consciência. Diz ele: a felicidade autêntica não consiste em fazer o que se quer mas em querer o que se faz.

Bento XVI ajuda a reforçar esta posição de princípio ao sublinhar o seguinte: deixar o progresso nas mãos de uma racionalidade puramente instrumental que, quanto muito, só aceita como verdadeiras as conclusões observáveis da ciência, é confundir conhecimento e sabedoria ou, respectivamente, epistemologia e gnosiologia. Em consequência, reduz-se a defesa do progresso bem como a da democracia e dos direitos humanos a uma proclamação estéril que os converte em algo difuso, indeterminado e contraditório.

A única coisa que resta num tal contexto de hostilidade da razão para com o conhecimento acumulado pelo diálogo de séculos com a fé é uma ética consequencialista em que, como diz Bento XVI, cada um determina os seus próprios critérios e, na subjectividade comummente aceite, ninguém pode servir de ajuda ao outro ou apresentar- lhe orientações. Em termos práticos, por seu lado, a liberdade e a democracia tornam-se reféns do critério maioritário e da moda do momento. Como a alegada neutralidade do Estado não aceita outra autoridade que a da vontade individual, este fica completamente sem recursos quando a força da justiça se torna a justiça do mais forte e ameaça a sobrevivência da própria democracia.

CONCLUSÃO

Com este livro procurei, ao fim e ao cabo, duas coisas. Em primeiro lugar, mostrar que as luzes do Evangelho não só são compatíveis como fundamentais para o respeito da pessoa e a vitalidade da democracia. Nesse sentido, tentei promover tão bem quanto soube o ideal cristão da relação entre razão e fé, entre Igreja e Estado, entre filosofia, teologia e política. Ao entregar-me a esse esforço de análise da coisa política inspirado na Revelação cristã, quis alcançar um segundo objectivo: recuperar um lugar apropriado para a vida filosófica no nosso tempo e ajudar a filosofia política a cumprir a sua missão, a bem da paz na cidade.

A missão primordial da filosofia política, como nos diz o entendimento forjado no eixo Atenas-Roma-Jerusalém, é ambivalente: esclarecer o político da razão de não poder ser o filósofo e vice-versa. A ambos explica a dignidade do que não é política e das vidas não filosóficas, prestando um serviço inestimável ao progresso e para o qual convoca, naturalmente, a ajuda da fé e da teologia cristã.

Em suma, como sinal de gratidão a Maritain e Bento XVI, gostava que este livro honrasse o espírito anti-relativista do ensinamento de Sócrates a Fédon que o Papa emérito evocou na magistral lição da Universidade de Ratisbona em 2006:

‘Seria facilmente compreensível que alguém, irritado por causa de tantas coisas erradas, detestasse pelo resto da sua vida todo e qualquer discurso sobre o ser ou o denegrisse. Mas, desta forma, perderia a verdade do ser e sofreria um grande dano.’

 


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