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De Portugal abrange-se o mundo


De Portugal abrange-se o mundo

«Na Senda de Fernão Mendes – Percursos Portugueses no Mundo» é um relato de viagens, a partir das iniciativas do Centro Nacional de Cultura do ciclo «Os Portugueses ao Encontro da Sua História». Publicamos o capítulo que respeita ao lugar de partida e de chegada – Portugal, território de diversas facetas base de uma aventura universal. Depois de ir pelo mundo, não podemos esquecer a Terra-mãe.

Guilherme d'Oliveira Martins Na Senda de Fernão Mendes
Percursos Portugueses no Mundo

Gradiva, 2014

por Guilherme d’Oliveira Martins Guilherme d’Oliveira Martins

Presidente do Tribunal de contas. Membro do conselho editorial de Nova Cidadania

De norte para sul, começa por se fixar no Reino Maravilhoso - «do meu Marão nativo abrange-se Portugal; e de Portugal abrange-se o mundo». E sentimos que sempre houve e haverá reinos maravilhosos e sofremos o calafrio do assombro. «Para cá do Marão… ». Portugal é para Miguel Torga um totem, uma referência altiva e permanente. Foi daqui que partiu o escritor para ver o mundo - «Terra Quente e Terra Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas». Assim se entende o homem de extremos que Torga foi, doce e implacável. E assim se entende que o verde acolhedor do Minho o não satisfaça, apesar da alegria e da lhaneza. «Em Portugal, há duas coisas grandes, pela força e pelo tamanho: Trás- -os-Montes e o Alentejo. Trás-os-Montes é o ímpeto, a convulsão; o Alentejo, o fôlego, a extensão do alento». São, no fundo, províncias irmãs que tocam profundamente o coração do escritor. Depois vem o Doiro, «rio e região», certamente «a realidade mais séria que temos» - e «é, no mapa da pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo». E o Porto de que Torga gostava? «A velha e livre cidade do Porto, onde há pouco tempo ainda só se podia entrar a tremer sobre pontes, com licença paga, por um túnel, ou revistado de cima abaixo…». A mesma cidade cujos forais não permitiam a fidalgo, nem poderoso, nem abade bento, o poisar nela mais que três dias… «Ah! Eu gosto do Porto!» - a primeira cidade do Portugal peninsular. E a Beira? “Como aquelas divindades ciosas, que não consentem adoração a mais nenhum poder, só fascinado por ela o peregrino é capaz de caminhar e perceber. Beira quer já de si dizer beira da serra. (…) Alta, imensa, enigmática, a sua presença física é logo uma obsessão». E a verdade é que a serra da Estrela não separa, une e concentra. E andando se chega a Coimbra. «Tanto o sol como a lua se esforçam por mantê-la numa irrealidade poética, feita do alvoroço das sementeiras e da melancolia das desfolhadas», mas Torga é o primeiro a pôr-nos de sobreaviso contra a irrealidade e a ilusão, que leva à confusão entre «um pedaço da natureza e da pátria com uma oleogravura de bordel». Linda cidade, é certo, mas há que ter consciência de “uma modesta mediania risonha». O Litoral é a pátria ribeirinha, a Estremadura, coutada do nosso lirismo, as fantasmagóricas Berlengas, o Ribatejo da transição e da festa brava («a vida é um desempate permanente, e o que é preciso é jogar com limpeza e formosura em cada número da caprichosa roleta»). E temos Lisboa, bonita, capital política, cosmopolita, provinciana e acomodada, simbolizada pelo «Velho do Restelo da epopeia, o melhor símbolo até hoje concebido do Portugal de courelas e ovelhas», que vive ainda «na pele do homem que nos nossos dias desce da Estrela, do Marão e da Peneda, pernoita na Mouraria, e amanhece com um travo a carne cosmopolita e venal, a fado, a volúpia de maresia de Oriente». Mas a nação não morre de amores pela capital, e esta paga-lhe na mesma moeda… Afinal, «o país não é o Terreiro do Paço!» E este é o dito simétrico do outro que usam as gentes do Marão. Para Torga, na senda de Herculano, Portugal não nasceu feito, faz parte das nações que se fizeram, «contra todos e contra tudo, e nunca teve sossego nas fronteiras». Um dia, conta-nos no «Diário», em viagem na linha no norte, ao ver «a paisagem a fugir dos olhos a cem à hora, o prato a dançar sobre a mesa e o caldo a saber a bedum», perguntava: «quem é que se identifica com a courela inamovível onde nasceu». E a resposta tem a ver com a aversão a um qualquer movimento descontrolado: «As pátrias não se mexem do sítio, nem consentem que a gente mexa também». Esta foi sempre a atitude de Torga para com Portugal, encarado como lugar referencial, como realidade multifacetada, cadinho de mil perspetivas e atitudes. Longe das abstrações, Portugal é uma composição de elementos diferentes e contraditórios, que se projeta na impossibilidade de simplificar para entender a terra e as gentes, num esforço necessário para procurar linhas de força e de fraqueza. «Microcosmo variegado, ora montanhoso, ora ondulado e plano, de cada miradouro é inédito e diverso. Árido aqui, verdejante ali, terroso acolá, passeá-lo é conhecer em miniatura as feições aráveis da Terra. Sulcado por rios líricos ou dramáticos, consoante o leito, espelha-se neles ao natural o perfil da paisagem» (Diário XV). Terra de extremos e de meias tintas, permite entender bem que «a ideia de nação, embora historicamente se justifique, pelo menos cá neste Ocidente, não é de certeza a última palavra em matéria de arrumação do mundo» (Diário VII), certo é que «no decorrer dos séculos, este povo pacífico, que sempre se soube defender e nunca soube agredir, aparentemente parado no tempo, foi a própria encarnação do espírito renovador, na tolerância, na curiosidade, na inventiva». Se há deslumbramentos, no amor da terra mítica, não são de esquecer as acusações sem piedade. «Fundadora de novas pátrias, esta pequena pátria» tem uma «inquietação dispersiva que faz o português um peregrino das sete partidas, um cidadão do mundo». Mas os contrastes são evidentes – de um lado, «o Portugal telúrico e arcaico, ainda não desfigurado na alma»; de outro, o país «contemporâneo do presente, cosmopolita e cultivado, que tem pergaminhos nas artes, nas letras, na política e na religião». Porém, o Portugal eterno é «o do arado e do remo», país «anónimo e humilde» (Diário XV). Como costumava dizer, «cada qual procura- se onde se sente perdido. Eu perdi- -me em Portugal e procuro-me nele».

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De Portugal abrange-se o mundoPortugal é um território que, ao longo dos séculos, foi ponto de chegada e de partida, «onde a terra se acaba e o mar começa» (Lusíadas, III, 20). A hospitalidade que tantas vezes é referida como característica da atitude portuguesa tem a ver com essa dualidade – que as dificuldades económicas condicionam. Estamos perante uma cultura de diálogo, de encontro, mas igualmente de confrontos e de paradoxos. Eduardo Lourenço parte daí na sua psicanálise mítica do destino português, publicada no fim dos anos setenta em «Raiz e Utopia». A tradição e a modernidade coexistem, ora como resistência à mudança, ora como visionarismo imposto pela sobrevivência – a lembrança de glórias passadas procura compensar as medianias presentes. O caso do ambíguo sucesso de Fernando Pessoa no século XX é bem ilustrativo dessa tensão. O poeta tornou-se, nos dias de hoje, um símbolo do Portugal moderno, mas quando «Orpheu» apareceu, em 1915, muitos dos comentários ouvidos na opinião publicada da altura consideravam, no mínimo, que se estava perante um grupo marcado pela loucura. Anos volvidos, os heterónimos de Pessoa facilitam uma interpretação suficientemente ampla das suas ideias de modo a simbolizarem a unidade e a heterogeneidade de uma cultura capaz de mimetizar a modernidade.

Como território aberto à circulação do mundo, Portugal é um espaço que se enriquece pelas contradições e complementaridades. Orlando Ribeiro teve a suprema virtude de proceder à consideração das questões geográficas, limpando-as de fantasias e erros. Foi, assim, o melhor intérprete do diálogo entre a terra e as gentes, citando a autoridade de Pierre Birot para caracterizar a individualidade portuguesa: «Assim puderam longamente amadurecer, ao abrigo de fronteiras que são as mais velhas da Europa, os traços próprios da alma portuguesa e que a individualizam tão nitidamente em relação aos seus vizinhos peninsulares. De um lado, um povo orgulhoso e exaltado, pronto para todos os sacrifícios e para todas as violências que lhe inspirará a preocupação da dignidade; de outro lado, mais melancolia e mais indecisão, mais sensibilidade ao encanto das mulheres e das crianças, uma humanidade verdadeira onde se reconhece um dos tesouros mais preciosos do património da nossa velha Europa ocidental». O ocidente da Península Ibérica tornou-se diferente, autónomo e dotado de uma personalidade própria graças à história do Estado que precedeu a nação – e assim a geografia, a vontade das gentes e a frente marítima atlântica completaram esse fator decisivo. A Europa marca-nos porque somos cabo dela, o Atlântico dá-nos o espaço da descoberta e do desconhecido e o Mediterrâneo liga-nos às raízes antigas, centrípetas e centrífugas.

É sempre difícil e perigoso fazer simplificações. Andando de norte para sul, de leste para oeste em Portugal, partindo para as ilhas atlânticas, topamos, a cada passo, grandes diferenças, mas há um fundo comum de movimentos internos, que levam um minhoto e um algarvio a encontrar-se naturalmente, do mesmo modo que um alentejano mais ensimesmado ou um beirão voluntarioso depressa se tornam familiares próximos por muito que façam um esforço para encontrar as suas diferenças. A mesma língua, o mesmo Estado, a velha conscrição militar, a ânsia por um lugar no funcionalismo público – tudo isso constituiu uma forte rede que congregou duravelmente os portugueses. Foram tentadas várias explicações para justificar a individualidade de Portugal – ora românticas ora positivistas. Historiadores influentes, como Herculano e Oliveira Martins, disseram que Portugal é uma «nação inteiramente moderna », reconhecendo, contudo, as suas «raízes antigas». Na análise de Vasco Pulido Valente para os dois últimos séculos encontra-se uma homogeneidade político-cultural centrada no Estado- -nação, que explica, em regra, que as lutas sociais não tenham assumido em Portugal «um elevado grau de virulência, nem durassem muito tempo». Tendo o Estado gerado a Nação, o centralismo desfavoreceu o autogoverno de comunidades locais ou regionais organizadas. Um Estado forte, atuante em momentos decisivos (formação da nacionalidade, descobrimentos, Restauração, reconstrução no terramoto) foi capaz de subordinar a sociedade aos seus objetivos estratégicos, o que permitiu a um país pouco povoado e com óbvias debilidades económicas construir um império universal pioneiro no contexto europeu. O centralismo do Estado favoreceu, ao longo do tempo, o paradoxo da estabilidade e da vulnerabilidade aos pronunciamentos militares (muito nítida no liberalismo do século XIX). A ausência de tensões étnicas ou linguísticas, impediu, todavia, a criação de um Estado tirânico ou sacralizado. E, ainda segundo a síntese correta de Pulido Valente: «a específica tragédia do destino português está em que ele não refletiu essencialmente a dinâmica própria de uma sociedade (sem independência perante o Estado), mas antes de mais a simples capacidade de assaltar e ocupar a máquina deste último» («Tentar Perceber », INCM, 1983, p. 358).

A mesma língua, o mesmo Estado, a velha conscrição militar, a ânsia por um lugar no funcionalismo público – tudo isso constituiu uma forte rede que congregou duravelmente os portugueses

A dimensão reduzida do território português suscita a proliferação de hibridismos geográficos e sociais. A mobilidade das populações e as influências entre regiões diferenciadas conduzem a que as explicações unívocas se tornem sempre imperfeitas e incompletas. Lembremo-nos, por exemplo, da intuição de António Sérgio sobre a importância do sal e das atividades marítimas, completada e corrigida por Virgínia Rau, deixando nítida a exigência da ponderação da complexidade das explicações. Uma pista de investigação, por muito sedutora que seja, obriga sempre à prova, que é tanto mais difícil quanto maior for o número de variáveis. Por isso, Orlando Ribeiro demonstrou que estão «entrelaçadas as condições geográficas e a formação de um corpo político de expressão original». Se é verdade que Herculano, Oliveira Martins, Alberto Sampaio, António Sérgio, Jaime Cortesão ou António José Saraiva deram realce a certos aspetos sociais e económicos, a verdade é que a moderna investigação centrada na complexidade, e voltando a dar atenção à história política, tem avançado no sentido da pluralidade dos fatores e das explicações. Somos porque queremos, mas também porque soubemos jogar com diversos elementos – e esse continua a ser o desafio difícil para combater a mediocridade e a irrelevância. Se um certo providencialismo resulta da omnipresença do Estado, da inexistência de divergências étnicas ou religiosas e da fragilidade da sociedade civil e da falta de um autogoverno local, a verdade é que somos chamados a mobilizar o melhor que temos, certos de que sem ilusões temos de ser muito mais exigentes na qualidade da organização, na educação, na cultura e na ciência, como europeus e como repartidos pelo mundo, sabendo assumir o humanismo universalista com inteligência.


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