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Pecado Original


 

Pecado Original

 

Pedro Santana Lopes acaba de publicar um novo livro sobre o Sistema de Governo Português, onde se combinam a análise académica, fria e distante, com a intervenção política, com opiniões e sugestões de alteração, e ainda com um importante registo biográfico, com revelações e evocações. O que faz dele não só uma referência obrigatória, mas também um contributo importante para a revisão da constituição.

Pedro Santana Lopes
Pecado original. O choque constitucional entre Belém e São Bento

D. Quixote, 2013

por Manuel Braga da Cruz Manuel Braga da Cruz

Ex-reitor e professor da Universidade Católica Portuguesa

Não é a primeira incursão do autor por este tema. Pelo contrário, vem no seguimento de anteriores análises e publicações, desde o projecto de revisão constitucional elaborado a pedido de Sá Carneiro, passando pelo livro escrito em colaboração com Durão Barroso sobre o Sistema de Governo e Sistema Partidário, em 1980, até ao mais recente Os sistemas de governo mistos e o actual sistema português, com a participação de Gonçalo Capitão.

Como o título indica, o autor avalia negativamente o actual sistema, atribuindo as razões da sua disfuncionalidade à matriz originária do sistema. O sistema de governo português é “controverso, gerador de dúvidas e incertezas”, diz a concluir. “Não é de facto um bom sistema”.

Como sabemos, e o livro bem evidencia, o sistema de governo não foi escolhido livremente pelos constituintes de 1976, mas foi antes imposto pelo pacto com os militares do MFA. É um sistema datado – já lá vão quase 40 anos – determinado pelas circunstâncias históricas da transição e, por conseguinte, condicionado.

Foi objecto de uma primeira e importante rectificação na revisão de 1982, que pôs fim ao Conselho da Revolução e à transição constitucionalmente prevista, com a alteração da natureza da responsabilidade do governo perante o Presidente da República que, de política passou a institucional, não podendo o Presidente continuar a demitir o governo apenas por falta de confiança política, mas tão só quando o regular funcionamento das instituições o exigir.

O caracter vago e impreciso do que seja o “regular funcionamento das instituições”, não impediu até hoje que todos os Presidentes tenham dissolvido o parlamento e convocado eleições antecipadas depois da revisão de 1982, o que favorece a pressão sobre o Presidente para a demissão do governo por parte das forças da oposição no decurso das legislaturas, como estamos a assistir neste momento.

O país tem um sério problema de governabilidade. Desde a revolução de 1974, já conhecemos 6 governos provisórios e 19 governos constitucionais, com uma média de menos de 2 anos por governo. Já tivemos 13 primeiros ministros e centenas de governantes. Das 11 legislaturas que já tivemos desde 1976, só 4 chegaram até agora ao seu termo sem mudanças de governo. Basta comparar com a vizinha Espanha, para nos darmos conta do excesso que estes números representam.

O que o autor nos propõe, é que se impõe uma nova alteração, que liberte o sistema de governo da tensão e da instabilidade institucional que o tem marcado. O país tem um sério problema de governação, não só pelo “choque” que a Constituição favorece entre Belém e São Bento, mas também pela ausência de estabilidade governativa, traduzida na intensificação de eleições.

Dois são os factores geradores deste problema: a forma de designação do Presidente da República e a responsabilidade do governo perante o Presidente. Precisamente, as duas características que fazem do nosso sistema de governo um sistema misto: a dupla legitimidade eleitoral directa do parlamento e da presidência e a dupla responsabilidade do governo perante o parlamento e a presidência.

O autor considera difícil alterar a forma de designação do Presidente da República, embora seja de facto a eleição directa e universal do Presidente da República que gera o dualismo de legitimidades, o conflito entre as duas maiorias - a parlamentar e a presidencial -, a tensão e a instabilidade. Prefere por isso limitar o poder de dissolução, que ficou intocado na revisão de 1982, e que tem sido o mais instabilizador de todos os poderes do Presidente: “o Presidente continuará a ser eleito por sufrágio universal e directo, poderá continuar a vetar diplomas e a nomear o Primeiro-Ministro. O que não pode é dissolver o Parlamento quando existe uma maioria estável e coesa”, tal é a sua proposta final”.

No entanto, o autor insiste que “o que não pode acontecer é existirem duas cabeças no poder executivo, a águia bicéfala”. Para que tal se verifique, ou se reduzem os poderes do Presidente, ou se reduz a sua legitimidade.

Reduzir os poderes do Presidente, no caso o poder de dissolução, sem tocar na sua eleição, é aumentar o problema do excesso de legitimidade.

Os inconvenientes e equívocos de uma eleição universal e directa do Presidente são aliás bem apontados pelo Dr. Pedro Santana Lopes: “ninguém anda a fazer campanha eleitoral intensa, com confronto político e, muitas vezes, ideológico, com comícios, discursos, aplausos, tempos de antena, caravanas e outdoors, comissões de honra e apoios partidários para depois se remeter a um papel discreto. (…) Em Portugal o Presidente não governa. Mas a eleição decorre como se ele tivesse essa responsabilidade. Ora se a campanha é com confronto aceso e quem ganha não governa, qual é a consequência? Os Presidentes acabam a pensar, falar e agir sobre assuntos de governação, E não o fazem, normalmente, para defenderem e apoiarem governos”.

A oposição, em vez de se situar no seio do parlamento, tem tentação de se fixar em Belém.

Não é pois de admirar que as oposições pressionem os Presidentes para demitir os governos em exercício. Nem que muitas vezes se queixem do abstencionismo presidencial, apregoando decepções com ele, porque não assume funções executivas que não são suas ou não se constitui como oposição governamental que não deve ser. O Presidente Cavaco Silva fez, no prefácio ao último volume publicado dos seus Roteiros, uma magistral análise das funções presidenciais, que o clarifica muito bem.

O problema de fundo é o da eleição universal e directa do Presidente da República, e da legitimidade dual do sistema. É tão perigoso ter um poder executivo não legitimado eleitoralmente, como uma legitimidade eleitoral sem poder executivo. A solução não está na maior presidencialização do sistema, nem no aumento dos poderes do Presidente, mas na maior parlamentarização. A pessoalização de que o nosso sistema político precisa não é a da liderança do Estado, mas a da escolha dos representantes parlamentares.

Um grupo de grandes cientistas políticos de renome mundial – entre os quais Juan Linz, Giovanni Sartori, Arendt Lijphart, Alfred Stepan – publicou há anos um importante livro sobre A falência do presidencialismo, que redunda facilmente em ditacturas, sobretudo em países que requerem consociatividade.

O parlamentarismo, por seu turno, tem vindo a ser corrigido e racionalizado. Modalidades de sucesso como o governo de gabinete inglês ou o governo de Chanceler, com a sua famosa figura da “moção de censura construtiva” – para citar apenas duas das mais famosas - assentes em sistemas eleitorais que corrigem e limitam a fragmentação partidária, estão aí a demonstrar que o parlamentarismo clássico e puro, que nos vitimou no passado não é recurso também para o futuro.

O país tem um sério problema de governabilidade. Desde a revolução de 1974, já conhecemos 6 governos provisórios e 19 governos constitucionais, com uma média de menos de 2 anos por governo

Pecado OriginalO que quer dizer que a reforma do nosso sistema de governo, a realizar num sentido de reforço do parlamento e do governo, sem prescindir de um Chefe de Estado árbitro, tem que ser acompanhada de uma igual reforma do sistema eleitoral, que reforce, não apenas a proximidade dos cidadãos às instituições, com a uninominalidade, mas também a governabilidade, com a introdução do princípio maioritário, a par da proporcionalidade.

Tal reforma do sistema de governo pede pois uma mais ampla reforma do nosso sistema político, onde a reforma do parlamento não pode ser esquecida. O monocamaralismo, consagrado constitucionalmente apenas em 1982, contrariando aliás uma longa tradição portuguesa, deveria dar lugar a um bicamaralismo. Temos senadores, o que não temos é Senado. Tal como seria bem vindo um reforço do Conselho de Estado, como órgão de aconselhamento do Chefe de Estado.

Este livro de Pedro Santana Lopes é um indispensável e oportuno contributo para uma revisão da Constituição que se impõe cada vez mais, também a outros títulos. Corremos o risco de chegar a um ponto de esgotamento do actual quadro constitucional se não formos capazes de o adaptar às circunstâncias actuais e às exigências do futuro.

E não se diga que a actual crise económico-financeira desaconselha que o país se distraia com uma revisão constitucional, pois como bem chama a atenção Pedro Santana Lopes neste seu livro, a disfuncionalidade do sistema institucional afecta grandemente a eficiência e a justiça social que se exige do sistema económico e financeiro.


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