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Como Colocar o Capitalismo Numa Questão - Sem o Pôr em Questão


Why Capitalism

Numa primeira abordagem a este texto, o que chama a atenção é a formulação peculiar do seu título. Como questão é difícil de traduzir. «Porquê capitalismo?» ou «Por que razão o capitalismo?»

Allan H. Meltzer
Why Capitalism?

Oxford University Press,  2012

por Hugo CheloHugo Chelo

Vice-Director para Assuntos Académicos do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

Como categoria gramatical, «Why» opera como advérbio interrogativo. Mas não ficamos a perceber se se lança na busca de uma definição adequada deste sistema económico ou na sua respectiva fundamentação e justificação. Intuitivamente, lemos «Porquê, o capitalismo?» e as primeiras páginas corroboram esta percepção: trata-se de uma apologia enfática do capitalismo enquanto sistema económico. Porém, o elogio ao sistema capitalista não se vê correspondido por uma definição apurada do termo que emprega. Mesmo descontando que a obra não pretende ser uma dissertação académica e que se inscreve num estilo polémico, tomando como alvos principais o saudosismo, a ingenuidade e o optimismo deslocado de muitos dos críticos do capitalismo, a verdade é que uma definição mais detalhada seria de grande auxílio.

Como Colocar o Capitalismo Numa Questão - Sem o Pôr em Questão A definição permanece demasiado aberta porque, segundo o autor, não existe um sistema capitalista. Existem vários sistemas capitalistas e estes não são rígidos, nem iguais. Mais ainda, a especificidade do capitalismo consiste no enorme poder de adaptação a diferentes culturas, sociedades e instituições, por isso, capitalismos. O denominador comum em todos os sistemas capitalistas reside na detenção dos meios de produção por parte dos indivíduos, que permanecem relativamente livres a respeito das actividades que desejam exercer, que decidem o que querem fazer, comprar ou vender. Ao limite, o capitalismo é aquilo que faz com que todos os sistemas económicos funcionem, adaptando-se a diversas culturas, através do crescimento económico e do incremento da liberdade individual. Como uma das principais explicações deste sucesso encontra-se a sua associação ao Estado de direito e à respectiva protecção dos direitos de propriedade, bem como a tendência inerente a recompensar a criação de valor através do trabalho, inovação e competição. O autor chega mesmo a assumir um certo consenso alargado sobre os benefícios do(s) sistema(s). Mas então para quê um livro de apologia enfática do capitalismo?

Uma certa hostilidade intelectual latente e uma permanente percepção deslocada sobre as verdadeiras alternativas disponíveis explicam a sua razão de ser. Esta hostilidade de inúmeros críticos do capitalismo recebeu um estímulo adicional com a recente crise financeira e mais uma vez se pressagiou o fim do capitalismo. O autor contesta. Esta é apenas uma crise recorrente e intrínseca a um sistema que veio para ficar, que continuará a difundir-se e a adaptar-se a diversas culturas e instituições, pelo menos, enquanto as pessoas continuarem a estimar o crescimento económico e a liberdade. E os vícios do sistema? O sistema não tem vícios. As pessoas têm vícios. Estes tendem a manifestar-se em todos os sistemas. Em alternativa, os sistemas colectivistas presumem resolver o problema atribuindo competências a uma autoridade pública centralizada que goza de uma espécie de superioridade moral que justifica todas as intervenções e correcções da liberdade dos agentes económicos. O problema é que a coarctação da liberdade não resulta no aperfeiçoamento moral dos agentes, nem elimina o crime, os conflitos de interesses, a ganância ou a corrupção.

Deste modo, o autor desconfia de todas as visões utópicas. Especialmente porque se apresentam como soluções derradeiras para os problemas económicos e políticos que assaltam a humanidade. Mas em questão não estão apenas as experiências trágicas dos vários totalitarismos do século XX. A solução redistribuicionista de um Estado de bem-estar é lida como uma espécie de visão utópica que deposita uma enorme quantidade de fé na benevolência dos actores políticos e das agências de regulamentação. Curiosamente, o autor escolhe Kant, enquanto voz de eleição, para contrariar esta confiança deslocada. Mas o leitor não se entusiasme. Trata-se apenas da referência ao dito kantiano do “lenho retorcido” que ascende ao estatuto de ilustração exemplar de uma percepção realista acerca da fraqueza humana, contra todas a soluções acabadas que presumem demasiado acerca das faculdades morais no homem. Ao longo do livro, o emprego deste dito torna-se irritante e até obsessivamente inexplicável. Convinha explicar ao autor que, pelas nossas bandas, a noção de Estado de bem-estar se configura cada vez mais como uma ideia reguladora da razão pública. E o alcance prático desta compreensão, de raiz kantiana, que procura acomodar realismo (Estado de bem-estar inviável) e idealismo (Estado de bem-estar, ideal em relação a qual nos devemos aproximar), tem vindo a suscitar muitas dúvidas aos que comungam da perspectiva de Meltzer.

A solução redistribuicionista de um Estado de bem-estar é lida como uma espécie de visão utópica que deposita uma enorme quantidade de fé na benevolência dos actores políticos e das agências de regulamentação

Mas se as visões utópicas não levaram de vencida o capitalismo, então a melhor forma de o domesticar passa por qualificálo. Aqui chegamos à noção de capitalismo democrático: um sistema misto, económico e político, que se nutre da percepção de que os mecanismos de mercado são inadequados para uma justa distribuição de recursos e rendimentos. Como tal, sustenta que a acção colectiva é o método preferencial para a alocação de recursos e rendimentos. Nas mãos dos eleitores encontra-se a decisão entre o partido que apoia o crescimento económico através da redução da taxa de impostos e afrouxamento da regulação estatal e o partido que apoia políticas redistributivas e de aumento do peso do Estado. O autor parece assumir que a noção de capitalismo democrático reúne um consenso mais alargado ainda, quase universal, sobre um sistema económico que fomenta em ampla medida o crescimento económico e a liberdade individual, mas que deve ser fortemente regulamentado de forma a impedir a sua tendência congénita para a criação da desigualdade económica.

Ora bem, uma parte substancial do esforço deste livro é canalizada para a emissão de um alerta sobre os efeitos nefastos de uma política que confia em demasia na acção reguladora e interventiva sobre o mercado. É interessante notar que o nosso autor não anatematiza a noção de capitalismo democrático, nem a regulamentação enquanto tal. Esta pode ser eficiente ou ineficiente. Contudo, os proponentes de regulação como forma de correcção dos excessos do sistema capitalista esquecem-se que os agentes por ela afectados aprendem muito rapidamente a contorná-la e que os seus resultados finais são frequentemente distintos dos objectivos e propósitos da regulação.

Ao longo das suas páginas, o livro brinda-nos ainda com dezenas de maus exemplos. Como seria de esperar as críticas fazem justiça ao curriculum do autor e como alvos de eleição encontram-se as políticas de empréstimos e de resgates da Reserva Federal Norte-Americana ou do Fundo Monetário Internacional. Na leitura de Meltzer, a actuação recorrente destas instituições ilustra perfeitamente como as consequências não previstas da acção reguladora resultam em graves perdas de eficiência económica, em sérias distorções de informação no mercado e, não raramente, na manutenção de privilégios injustificados, promoção de decisões arbitrárias e fomento da corrupção.


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