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A Vida do Ilustre X


A Vida do Ilustre X

“Ignorar a vida dos homens mais ilustres equivale a continuar irremediavelmente na infância.”

John Lewis Gaddis
George F. Kennan: An American Life

The Penguin, 2011

Lívia Franco

Professora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade católica Portuguesa

A Vida do Ilustre XJohn Lewis Gaddis não pode concordar mais com esta afirmação de Plutarco, o cronista intemporal dos grandes gregos e romanos. Gaddis, reputado Professor de História na Universidade de Yale, publicou finalmente a biografia daquele que é indiscutivelmente um dos mais ilustres diplomatas e intelectuais americanos do século XX: George F. Kennan, o pai da famosa «doutrina da contenção ». A obra, longa de quase 800 páginas, demorou 30 anos a ser redigida e resultou da minuciosa investigação de uma vida de 101 anos através de incontáveis documentos, diários, cartas, notas, e outras tantas entrevistas ao próprio e aos seus próximos. Tendo saído à estampa há cerca de 6 meses, a obra já conquistou milhares de leitores e uma série de prémios como o American History Book Prize, o National Book Critics Circle Award e, com maior destaque, o Pulitzer 2012 na categoria de Biografia. George F. Kennan: An American Life é um colosso em extensão e folego, constituindo não apenas a crónica definitiva da vida de Kennan, como ainda uma crónica indispensável do século passado. Na esteira de nomes célebres e tão díspares como o referido Plutarco ou Santo Agostinho, Shakespeare, Rousseau, Carlyle, Freud ou Virginia Woolf, o historiador de Yale trabalha sobre a convicção de que a biografia é um meio por excelência para a compreensão da natureza humana, da evolução das sociedades e, especialmente, dos dilemas intemporais que se vão colocando aos homens. É precisamente por estas razões que, a par das suas concorridas cadeiras sobre a guerra fria, John Lewis Gaddis lecciona igualmente uma disciplina sobre biografia. Nesta, explica aos seus alunos que “o problema do futuro é que este não é tão claro como o passado” e que olhar para a frente implica, antes de mais, olhar para trás e saber o mais que se puder sobre o passado. E, aqui, aproxima-se de outro americano, o ensaísta Ralph Waldo Emerson, que afirmara que “na verdade, não existe história, apenas biografia.” Mas, mais ainda, Gaddis ensina aos estudantes que o biógrafo tem a obrigação de colocar o sujeito da sua investigação no contexto em que este viveu para poder com justeza responder à seguinte questão fundamental: sabendo o que ele sabia naquele momento teria eu agido de modo diferente? É que, afinal de contas, as biografias tratam de vidas reais e, consequentemente, de reputações.

George F Kennan nasceu em Fevereiro de 1904 em Milwaukee e morreu em 2005 em Princeton, tendo, portanto, vivido literalmente todo o século XX e os seus mais marcantes acontecimentos. Depois de completar os estudos na Universidade de Princeton, inicia em 1925 a carreira diplomática num Foreign Service ainda incipiente. Tem como primeira colocação Genebra que era então sede da SDN, daí seguindo para Riga capital de uma Letónia recém-independente e, depois, para a distante Moscovo, tratar do atribulado estabelecimento das relações americano-soviéticas e, consequentemente, da abertura da primeira embaixada dos EUA naquele país. Aí, apaixonou-se irremediavelmente pela cultura, a língua e a história russas e iniciou aquele que acabou por ser considerado o seu maior legado: a análise e a compreensão da natureza e do alcance da experiência soviética. Kennan passa ainda por Berlim onde se apercebe dos limites da república de Weimar e, em 1938, por Praga, aquando da Conferência de Munique que permite a anexação dos Sudetas pelo III Reich. Estando novamente em Berlim na altura em que os EUA entram na guerra, é enviado para um campo de internamento nazi onde permanece 6 meses. Finalmente, do cativeiro parte para Lisboa onde, depois de desobedecer aos seus hierárquicos superiores mais directos e de se encontrar com Salazar (“com quem conversei várias horas”), inicia os contactos oficiais que culminarão no estabelecimento da base militar norte-americana nos Açores. Estes primeiros anos de carreira foram, na opinião de John Lewis Gaddis, cruciais na definição para a vida dos traços geralmente apontados como sendo os mais característicos de Kennan: um enorme profissionalismo, um forte pessimismo cultural e uma constante angústia pessoal sobre as suas escolhas existenciais (A sua saúde aguentaria os rigores da vida no estrangeiro? Não deveria experimentar outra profissão? Seria suficientemente patriota?)

Moscovo, Fevereiro de 1946. Doente e de cama, Kennan recebe a indicação de que o State Department espera a sua análise do discurso que Estaline acabara de proferir ao Soviete Supremo e no qual se congratulava a si próprio, ao exército, ao partido e aos soviéticos pela vitória na guerra. Fazendo apenas referências marginais à aliança com as potências ocidentais, o grande líder criava assim um novo mito para consumo interno: a segunda guerra mundial passa a ser a grande guerra patriótica da URSS que, afinal, é a pátria do socialismo mundial. A imprensa internacional, presente no Bolshoi onde a cerimónia decorria, rapidamente faz eco da mensagem, e os governos ocidentais, perplexos, querem saber mais. Kennan nem hesita em cumprir a sua função e, mantendo-se de cama, dita à sua secretária o mais longo telegrama que jamais um diplomata em serviço enviara para Washington: dividido em 5 partes, com mais de 5 mil palavras, o texto é imediatamente elogiado – Magnífico! Esplêndida análise! Kennan fica surpreendido pois, apesar de tudo, nada afirmara que não estivesse já em relatórios anteriores. Não obstante, o presente é agora e o envio daquele telegrama consistiu inegavelmente no primeiro grande momento definidor da sua carreira como grande protagonista público. Compreende então que o timing é tudo, aprendizagem que reconfirmará vinte anos mais tarde. A sua reputação começa a adensar-se.

 

Gaddis, reputado Professor de História na Universidade de Yale, publicou finalmente a biografia daquele que é indiscutivelmente um dos mais ilustres diplomatas e intelectuais americanos do século XX: George F. Kennan, o pai da famosa «doutrina da contenção»

“Interesse pela ideologia. Um certo tipo de intelectualismo. Ideias. Profundo interesse e constante reflexão sobre as atitudes, as ideias, as tradições consideradas como especificidades culturais dos países, modos de vida. Não da jogada seguida de outra jogada, não do xadrez. Não apenas dos factos contidos num documento que indicam ambições sobre o norte da Bulgária ou o sudeste da Grécia. Mas também as mentalidades”. É deste modo sucinto que Isaiah Berlin, destacado em Moscovo como primeiro secretário da Embaixada britânica, descreve o tipo de análise desenvolvida por Kennan. É precisamente isto que o longo telegrama contém: a verdadeira perspetiva soviética. Esta vê o mundo dividido em dois centros antagónicos, um socialista, o outro capitalista, sendo que este último enferma de conflitos internos insanáveis. A longo prazo a vitória será inelutavelmente do campo socialista que, todavia, deve explorar e aprofundar essa tensão intra-capitalista. Mas o mais preocupante é o modo dualista como a sua política externa é executada: primeiro, ao nível governamental, bem visível, através das clássicas formalidades e procedimentos diplomáticos que sempre caracterizaram as relações inter-estaduais; segundo, ao nível dos partidos comunistas de todo o mundo, numa dimensão mais encoberta e informal, altamente debilitante para o Ocidente. Como conviver com uma potência que vê o mundo assim? Como responder a estas políticas? Que ameaças elas nos colocam? “Reagir a este adversário constitui a maior tarefa com que a nossa diplomacia alguma vez foi confrontada”, conclui Kennan.

E tinha razão. Era necessário decidir que política prosseguir face aos desafios emergentes. Os termos do debate sobre que orientação de política externa deveria ser seguida tinham-se alterado totalmente. A tradicional postura isolacionista dos EUA, baseada na famosa advertência de George Washington de que “a Europa tem um conjunto de interesses elementares sem relação com os nossos senão muito remotamente” e formalizada na Doutrina Monroe, esvaziava-se de conteúdo perante o novo contexto político e estratégico. Face à cortina de ferro que acabava de cair sobre a Europa colocavam-se duas alternativas clássicas: o apaziguamento e a guerra. Contudo, ambas significavam a repetição do passado recente com custos terríveis e, mais importante, ambas deixavam de fora o elemento radicalmente novo da equação mundial: a arma atómica. Cabe precisamente a George Kennan a formulação da terceira alternativa: uma estratégia firme e vigilante de contenção a longo prazo da URSS nos pontos geográficos e políticos fundamentais ao interesse norte-americano e através de apoios selectivos com base nas capacidades concretas dos EUA. Acabara de nascer a Doutrina da Contenção.

A nova estratégia recebe tratamento mais sistematizado num artigo publicado na Foreign Affairs em Junho de 1947.

A Vida do Ilustre X A obra de John Lewis Gaddis é magistral. Nela se trata da vida de um grande americano do século passado, com toda a complexidade e todas as nuances que essa vida e esse século merecem. Mas trata igualmente da política, da sua formulação, da sua prática e dos seus custos. Especialmente dos efeitos perversos da política enquanto “criação mecânica e científica do homem moderno”

De regresso a Washington a convite de George Marshall para criar o Office of Policy Planning (e finalmente abandonar as minundências aborrecedoras de um médio funcionário público, para se dedicar à grande reflexão estratégica), Kennan surpreende-se mais uma vez com o impacto do seu texto num público cada vez mais vasto e generalista. O seu nome não aparece no artigo, que está assinado simplesmente por X, mas a sua identidade é descoberta quase de imediato. E agora? As coisas não correm como esperado. Como explica John Lewis Gaddis, “por mais distintos que possam ser os olhares do passado e do futuro, as conclusões a que chegam coexistem no presente, interligam-se e frequentemente surpreendem.” Foi o que aconteceu com Kennan: apesar do estrondosso sucesso da sua análise, desde então nunca mais pode aceitar como sendo sua uma doutrina que todos afirmavam ser da sua autoria, mas que afinal e em bom rigor (o rigor que ele prezava acima de tudo) acabou por não o ser. Quando a 12 de Março Harry Truman se dirigira ao Congresso solicitando uma autorização para apoio económico e militar aos governos da Grécia e da Turquia, justifica-a nos seguintes termos: “Os EUA devem ter como política o apoio aos povos livres decididos a resistir às tentativas de subordinação exercidas por minorias internas armadas ou apoiadas por pressões externas.” E ao fazê-lo deste modo estava simultaneamente a proceder a uma profunda transformação do sentido original que Kennan atribuíra à estratégia de contenção. Na acepção de Truman, os EUA, por um lado, estavam afinal a responder defensivamente à expansão do comunismo e, por outro, a criar um precedente irreversível com o apoio concedido pelo Congresso que tornava o auxílio norte-americano num cheque em branco de apoio económico, militar e ideológico. Evidentemente esta foi a versão que encontrou maior eco junto da classe política em pânico com o avanço da ameaça vermelha e da opinião pública que precisava de um racional simples para se ajustar à nova orientação intervencionista. Kennan procura desfazer a confusão e reorientar correctamente a política que entretanto fica conhecida por Doutrina Truman. Tarefa impossível. Dois anos depois demite-se.

A oportunidade para esclarecer publicamente a diferença substantiva entre as duas interpretações surge somente duas décadas mais tarde. Em pleno desenvolvimento de uma segunda carreira por que tanto ansiara – sempre se viu a si próprio essencialmente como um professor –, George Kennan é exortado pelo senador J. William Fulbright a testemunhar perante o Comité sobre as Relações Externas do Senado contra a intervenção norte-americana no Vietname. As suas palavras ponderadas mas incisivas surtem enorme impacto porque transmitidas pela televisão. Começando por afirmar que os EUA não podiam continuar a “pular de um lado para o outro” como “um elefante assustado por uma mosca”, cita John Quincy Adams para clarificar o padrão que devia aplicar-se à política externa do país: “Simpatizar com a liberdade em qualquer sítio; lutar por ela apenas onde isso é exequível; não partir para o exterior em busca de monstros a destruir”. A sua estratégia de contenção consistia tão só na escolha do mal menor entre dois maiores e nunca na prossecução da perfeição. Ainda assim não é bem compreendido e passa ser visto por muitos como anti-guerra, anti-patriótico e, no pior dos registos, como se tendo finalmente deixado seduzir pelo comunismo. A sua reputação complica-se. A amargura marcará o resto da sua vida.

A obra de John Lewis Gaddis é magistral. Nela se trata da vida de um grande americano do século passado, com toda a complexidade e todas as nuances que essa vida e esse século merecem. Mas trata igualmente da política, da sua formulação, da sua prática e dos seus custos. Especialmente dos efeitos perversos da política enquanto “criação mecânica e científica do homem moderno” que, como um dia escreveu o próprio Kennan, “tende a esconder-lhe a natureza da sua própria humanidade e a encorajá-lo com todo o tipo de ambições e ilusões prometeicas”. Kennan nunca seguiu esse caminho e Gaddis comprova-o irrefutavelmente, repondo com esta biografia a justa reputação de protagonista ilustre do século XX de que Kennan é merecedor.


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