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A Arte de Traduzir Montesquieu e o Difícil Desafio da Síntese


 

 

 

A Arte de Traduzir Montesquieu e o Difícil Desafio da Síntese

Genebra, 1748, sai à estampa de autor desconhecido livro extenso com o curioso título Do Espírito da Leis ou da relação que as leis devem ter com a constituição de cada governo, com os costumes, com o clima, com a religião, com o comércio, etc. A obra torna-se num imediato sucesso de vendas e o seu criador é rapidamente descoberto.

Montesquieu
Do Espírito das Leis
Tradução e Notas de Miguel Morgado

Edições 70, 2011

Lívia Franco

Professora auxiliar do Instituto de estudos Políticos da Universidade católica Portuguesa

Montesquieu Do Espírito das Leis A obra torna-se num imediato sucesso de vendas e o seu criador é rapidamente descoberto. Tratava-se, afinal, de Charles-Louis de Secondat, Barão de la Brède e de Montesquieu, o já então famoso autor de As Cartas Persas, pequena produção literária do género epistolar que, desde 1721, vinha divertindo e provocando os leitores com o seu estilo irreverente, os seus argumentos brilhantes e o seu tom quase escandaloso. Desde então, o grande senhor de Bordéus passara a ser presença assídua nos mais apreciados salões de Paris e a sua reputação estendera-se pelas capitais europeias. Apesar desta fama, é francamente menor o êxito que obtém em 1734 com Considerações sobre as Causas da Grandeza dos Romanos e da sua Decadência, o que talvez se explique – parafraseando as palavras de um dos seus mais reputado tradutores modernos – porque contemplar o “espectáculo das coisas humanas” que resulta no declínio da “cidade eterna” deixa no leitor a impressão geral de uma forte melancolia, de tom essencialmente académico e apartada da prática política. (Lowenthal, 1965: 18). O sucesso editorial regressa e consolida-se definitivamente 14 anos mais tarde com aquela que será considerada a sua obra-prima: Do Espírito das Leis tem doze edições em sete meses. Em 1751 o livro é adicionado ao Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica, enquanto inúmeras contendas se ateavam à volta do seu «verdadeiro» significado e alcance. Nas palavras de um seu profundo conhecedor, essas controvérsias “reflectem o facto de Do Espírito das Leis ser uma obra de amplitude assustadora e de subtileza exigente, animada por dramáticas tensões internas, que vibra de detalhes provocantes e que fervilha de complexidades.” (Thomas Pangle, 2009) Tudo, de louvor e de censura, vai ser dito sobre ela. Grandes pensadores, historiadores e estadistas leram-na, citaram-na ou nela se inspiraram: Voltaire, Condorcet, Catarina II da Rússia, Burke, Kant, Rousseau, Paine, Jefferson, Madison, Napoleão, Macaulay, Constant e Tocqueville, são apenas alguns que vale a pena referir. A sua publicação tratou-se, portanto, de uma grande acontecimento literário que o passar das décadas apenas reforçou e cuja propagação se tornou evidente com a sua sucessiva tradução nas mais diversas línguas.

Infelizmente, foi preciso esperar até este ano para se assistir à publicação da primeira tradução integral em português (de Portugal) da obra. Surpreendente? Talvez não. Várias razões podem ser encontradas. Por um lado, nos séculos XVIII e XIX, o público natural desse tipo de literatura era em Portugal perfeitamente fluente em francês. O que não impediu, contudo, que comentários à obra como o de Destutt de Tracy fosse traduzido e publicado no nosso país (Comentários do Conde de Tracy ao espírito das leis de Montesquieu seguidos d’uma memória sobre a questão, 1841, Lisboa, tradutor desconhecido). Por outro lado, esse mesmo mercado natural de leitores era francamente reduzido o que, tendo em vista a extensão da obra – cerca de 900 páginas – tornava a sua produção editorial um negócio arriscado. Mas, mais importante, o estilo profundamente original, as inúmeras locuções latinas, os epigramas, as referências históricas complexas ou exóticas, a vastidão dos assuntos nela tratados, constituem as razões principais porque até aos dias de hoje ainda ninguém se tinha abalançado no nosso país a uma tarefa que, pelo menos de aparência, se apresentava como hercúlea. E, por conseguinte, a progressiva democratização do ensino e da cultura e o crescente número de leitores interessados numa obra tão celebrada, acabaram por fazer com que gerações de portugueses se tivessem de contentar em fazer recurso às traduções editadas no Brasil, especialmente as das editoras Universidade de Brasília (de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins) e Martins Fontes (realizada por Cristina Murachco), que estão longe de ser perfeitas. Consequentemente, a publicação, no passado mês de Março, pelas edições 70, de Do Espírito das Leis com tradução, introdução e notas de Miguel Morgado deve constituir motivo de forte regozijo.

Traduzir é uma tarefa complexa e morosa que coloca inúmeros desafios e dilemas a quem a deve cumprir e que se torna ainda mais delicada quando o objecto da tradução é uma obra grande do património literário e cultural. Nem sempre isso é evidente para o público geral que depois se vai deleitar ou usufruir da tradução. É o próprio Montesquieu quem, numa deliciosa passagem de As Cartas Persas, melhor ilustra essa opinião depreciativa algo generalizada:

“[Rica relata a Usbek o seguinte encontro que testemunhou em Paris]
Tenho uma grande novidade a contar-lhe: acabo de trazer Horácio a público!
- Como! Disse o geómetra, há mais de dois mil anos que ele existe.
- O senhor não me está a compreender, retorquiu o outro: trata-se de uma tradução desse antigo autor que acabo de dar à luz; há vinte anos que me dedico a fazer traduções.
- O quê! Senhor, disse o geómetra, há mais de vinte anos que o senhor não pensa? Que o senhor fala pelos outros, e eles pensam pelo senhor?” (LP, carta CXXVIII)

É evidente que o aristocrata de Bordéus ironizava, até sobre ele próprio, na medida em que fingia nessa obra ser o tradutor daquela relação epistolar (tal como em O Templo de Gnide). Ao invés, com um tom sério e escolar, Ortega y Gasset escreve num ensaio intitulado La Miseria y el esplendor de la traducción (Buenos Aires, 1937), que entre todas as empreitadas intelectuais, nenhuma é tão humilde quanto a “modesta tarefa conhecida por traduzir. E, contudo, trata-se de uma tarefa excessivamente exigente.” A humildade deve notar-se nos limites do tradutor: este tem por função traduzir e não melhorar invocando por exemplo, uma alegada inteligibilidade do autor. Já a exigência deve resultar do objectivo principal: reproduzir na nova língua o significado e a fluência do texto o mais fielmente possível. Afinal, trata-se de proporcionar ao leitor da tradução a mesma imagem e o mesmo prazer que ele teria se fosse capaz de ler o original. Nem mais, nem menos. O que constitui um difícil equilíbrio. Claro está que as diversas edições, principalmente as estrangeiras, podem e devem ser enriquecidas relativamente às da língua original, contendo introduções de especialistas, notas de esclarecimento e contextualização, cronologia do autor, lista das suas principais obras, leituras de comentário recomendadas. Em certas edições, como por exemplo as escolares, a maioria destes elementos são mesmo requeridos. A edição que aqui celebramos é, precisamente, uma edição escolar integrada na colecção Textos Filosóficos que inclui, entre outras, obras clássicas de Descartes, Kant, Nietzsche, Stuart Mill, Santo Agostinho, Locke e Bacon (do mesmo tradutor), Hegel e Hume. Vocação escolar que parece constituir, aliás, a única justificação para o mau gosto da capa (tons modernos? irreverentes?) e da fragilidade da lombada e da encadernação (permite um preço mais acessível?).

O texto em questão foi traduzido daquele publicado nas Oeuvres Complètes da Bibliothèque de la Pléaide das edições Gallimard – preparado e anotado entre 1951 e 1956 por Roger Caillois (1913-1978), conhecido sociólogo francês formado pela ENA e membro da Academia Francesa – e corresponde à versão póstuma de 1757 da responsabilidade de Jean-Baptiste de Sécondat, o filho do autor, e que apesar de algum debate continua a ser considerada a mais autorizada (como nos confirma com mestria Catherine Volpilhac-Auger, 2001). À semelhança da edição francesa, também o tradutor português apenas escolheu fazer ligeiras alterações com vista à actualização da pontuação e, principalmente, manter as notas do autor, numerando-as, acrescentando-lhe algumas do próprio Caillois (devidamente identificadas) e muitas outras da sua autoria. Foram boas opções, que permitem uma leitura em português que discorre com fluência, fluidez e um bom enquadramento de suporte. Naturalmente, várias das opções feitas pelo tradutor são discutíveis ou, pelo menos, passíveis de alternativas equivalentes. Assim, por exemplo, a sua preferência em traduzir ressort por «mola» – para acentuar a sugestão de efeito mecânico de força ou pulsão – no trecho da Advertência do Autor onde este escreve “aquilo a que chamo a virtude na república é o amor à pátria […] é a mola que faz mover o governo republicano, tal como a honra é a mola que faz mover a monarquia”, parece-me ter alternativa melhor: o termo «energia» não somente é mais literário, como remete para “ciências mais abstractas” abordadas na obra em questão. Além disso, é uma alternativa que permite seguir um conselho que o próprio Montesquieu oferece já como autor consagrado:

“As ciências tocam-se mutuamente; as mais abstractas são contíguas às que o são menos e todo o corpo científico aspira às belles-lettres. Ora, as ciências ganham muito ao serem tratadas de modo inventivo e delicado; é dessa maneira que as despojamos da sua aridez, que evitamos o aborrecimento e que as tornamos acessíveis a todos os entendimentos.” (Discurso sobre os Motivos que nos devem incentivar à Ciência, 1725).

Do Espírito das LeisAquele que tira prazer em examinar detalhadamente Do Espírito das Leis, deve ser considerado como tendo melhorado grandemente no estudo da política e da jurisprudência

Para além da tradução do texto original, a edição portuguesa traz consigo dois elementos adicionais que a enriquecem inegavelmente: uma introdução substancial de mais de uma centena de páginas e inúmeras notas explicativas polvilhadas pela obra inteira. Ambos são da autoria de Miguel Morgado. Comecemos pelas notas que são francamente úteis e foram certamente elaboradas a pensar nos universitários para quem o estudo da obra é obrigatório. Estas revelam sobretudo um cuidadoso trabalho de investigação, um sentido apropriado do que faz falta acrescentar neste tipo de obras, mas, igualmente, uma erudição que já rareia. As notas acrescentadas não apenas explicam muitas da opções tomadas a nível da tradução propriamente dita, como fazem constante referência aos mesmos temas em outros autores e obras da história do pensamento político, para além dos restantes escritos de Montesquieu. E, consequentemente, parecem actualizar a seguinte afirmação de Thomas Nugent, o primeiro tradutor inglês da obra: “Aquele que tira prazer em examinar detalhadamente Do Espírito das Leis, deve ser considerado como tendo melhorado grandemente no estudo da política e da jurisprudência.” (The Translator to the Reader, 1752).

Quanto à introdução, o seu valor é misto. Fazendo uma boa apresentação biográfica do autor, da sua obra geral no contexto intelectual e histórico, das características da sua escrita e do seu pensamento, o longo texto de Miguel Morgado é muitíssimo informativo, porém desigual quer do ponto de vista mais formal daquilo que nos deve oferecer um texto introdutório de um livro de colecção universitária, quer no respeitante à sua análise dos argumentos mais substantivos contidos em Do Espírito das Leis. Comecemos pelo nível mais formal, onde logo se sente a ausência de uma análise da estrutura organizativa da obra, isto é, do seu esqueleto. A sua divisão em partes, livros e capítulos não é objecto de exame e menos ainda o modo como estes vão contribuindo para a apresentação do argumento geral, que fica assim bastante diluído. E é pena, porque trata-se de um elemento relevante para a índole didáctica da edição. Inversamente, os leitores estudantes e académicos encontrarão nesta Introdução constantes referências aos melhores textos de comentário sobre a obra em análise, o que torna a consulta desta edição portuguesa bem mais rica, por exemplo, do que a da popular edição da Cambridge University Press. Quanto ao nível substantivo, e começando pelo lado mais positivo, merece indubitável destaque o excelente tratamento dado a certos temas complexos e por vezes ignorados do pensamento de Montesquieu que, todavia, lhe são estruturantes. É o caso do tema que Pierre Manent sintetiza no adágio “tornar-se moderno, viver na história” (1994: 18). Se há transformação que o texto de 1748 opera no pensamento político é precisamente o da introdução do “ponto de vista histórico” em simultâneo com “a consciência do que é ser moderno”. Daí a sua constante polaridade entre o antigo e o moderno, entre o republicanismo virtuoso das cidades-estado gregas e a liberdade moderada da Inglaterra comercial, tão bem expressa nesta conhecida passagem: “os políticos gregos que viviam no governo popular não reconheciam outra força que os pudesse sustentar além da virtude. Os de hoje só nos falam de manufacturas, de comércio, de finanças, de riqueza e até de luxo” (EL, III: 3). Ora, como bem explica o tradutor português, ao trabalhar desse modo, Montesquieu está a afirmar a estreita relação entre a política e a história e, mais especificamente, que

“se cada sociedade tinha de ser entendida na sua particularidade, então não havia como contornar a dimensão histórica da experiência dos povos. Compreender a política era, antes de mais nada, compreender a inscrição da política na história e que tinha na temporalidade o seu princípio constitutivo fundamental.” (65)

Apesar da mestria com que argumentos como o que acabámos de referir são discorridos e analisados por Miguel Morgado, algumas vezes eles surgem incompletos. Assim, por exemplo, não está suficientemente clara nesta Introdução das edições 70 a segunda parte da premissa em análise: que a consciência de ser moderno traz também em Montesquieu a afirmação da superioridade dessa condição face à anterior, isto é, à de ser antigo. Como réplica poder-se-á argumentar que a detalhada abordagem que é feita à(s) teoria(s) de Montesquieu sobre tipologia dos regimes políticos e seus respectivos princípios é, por si só, suficiente para confirmar tal superioridade. Ou, adicionalmente, que essa confirmação está bem patente na discussão sobre a liberdade ou na reflexão acerca da Inglaterra, ambas bem apresentadas por Miguel Morgado. Mas isso não é suficiente. Por uma razão substancial: porque a confirmação inequívoca da superioridade da liberdade moderna sobre a virtude antiga, que é central à teoria de Montesquieu, exige um raciocínio de síntese acerca do argumento transversal de Do Espírito das Leis e, infelizmente, não é isso que encontramos nesta Introdução.

Todavia, apesar do desinteresse pela demanda filosófica do governo perfeito, isso não quer dizer que este grande pensador considera como sendo equivalentes todos os regimes políticos. Bem pelo contrário: para si eles são diferentes do ponto de vista do exercício da liberdade

O autor do texto introdutório invoca no seu início a extrema abrangência da obra em análise, para explicar porque “todas as introduções ao pensamento de Montesquieu [são] necessariamente incompletas” (14). Não obstante, esse não é o ponto que aqui se quer estabelecer. Ou seja, o problema não é o da incompletude do texto introdutório face aos inúmeros temas que se encontram em Do Espírito das Leis. Tal tarefa, que já de si constituiria um enorme desafio para uma monografia, é impossível para um texto desta natureza. Antes, o ponto em que se insiste é o de que a Introdução não oferece um argumento geral de síntese sobre a obra, mas, ao invés um exame sistemático das inúmeras – mas necessariamente incompletas – questões e tópicos abordados no grande livro de 1748. Essa sistematização funciona em detrimento de uma leitura autónoma e inequívoca daquele que é o seu grande legado, que tão bem nos é indicado, novamente, por Manent:

“O primeiro propósito de Do Espírito das Leis é, portanto, o de enfraquecer decisivamente a autoridade dos Antigos, a ideia do «melhor regime», a ideia da virtude, substituindo-as pela autoridade do momento presente, da experiência moderna resumida nas noções de «comércio» e de «liberdade».” (Manent, 1994: 23)

Mais ainda. Se, por vezes, a Introdução se alonga desnecessariamente, ou de modo quase repetitivo, no tratamento de certos tópicos é precisamente porque dá prioridade à sistematização sobre a síntese. E isso é particularmente evidente da secção XII em diante, quando começam a ser tratadas sucessivamente a questão do comércio, as relações entre os regimes políticos e os tipos económicos, a querela do luxo, as repúblicas comerciais e o pensamento «assistencialista» em gérmen. Claro que todos estes assuntos são centrais no argumento do pensador do século XVIII – como fica comprovado quando ele procede no Livro XX à única invocação que faz em toda obra às musas. Mas, novamente, não é esse o ponto que se quer aqui fazer, pois é evidente que são variados os temas que lhe são caros – que de resto é o que leva Aron a afirmar que para Montesquieu o dado histórico se apresenta “sob a forma de uma diversidade quase infinita de costumes, hábitos, ideias, leis instituições” e que o ponto de partida da sua investigação é “esta diversidade na aparência incoerente.” (1994:32). Antes, o ponto que se pretende estabelecer é o que decorre da perplexidade do leitor da Introdução quando, depois de seguir longamente os intricados e ricos raciocínios decorrentes das questões já enunciadas, se confronta subitamente com o término do texto, sem conclusão nem epílogo.

Em suma, a Introdução não dá resposta directa à interrogação capital, «porque é importante ler Montesquieu na actualidade?» Pode-se sempre contrapor a esta apreciação as famosas palavras de Montesquieu – que coloca, aliás, em epígrafe no texto introdutório – “Não se trata de fazer ler, mas de fazer pensar” (EL, XI, 10). O que nos levaria, enfim, a retorquir com a seguinte afirmação contida na Defesa de o Espírito das Leis: “Nos livros de raciocínio [e diferentemente dos livros de entretenimento], nada compreendemos senão compreendermos todo o encadeamento.” (1956 (1750): 1161)

Do Espírito das Leis tem uma clara vocação pedagógica: “Serve-nos de modelo sobre como pensar acerca da política e sobre que tipos de questões devemos colocar” (Shklar, 1987: 125). A descrição do republicanismo antigo que aí encontramos pretende fazer o contraste – não muito abonatório para as próprias repúblicas antigas, como qualquer leitor moderno facilmente perceberá – entre os tempos longínquos que passaram e que já não fazem sentido e a Europa de meados do século XVIII, centrada no progresso e na fruição. Da análise das pequenas repúblicas da Antiguidade, Montesquieu extrai duas lições: a primeira, que a procura da virtude republicana tenderá a levar ao fanatismo e à imoderação e, consequentemente, que mesmo a virtude necessita de limites. A segunda, que o facto de aí o poder residir no povo não significa que o poder seja exercido de modo livre. Aliás, o pensador francês sabe bem, porque a experiência histórica o demonstra, que todo o detentor do poder tem tendência a abusar desse mesmo poder. Além disso, verifica que a confusão entre soberania popular e liberdade política é igualmente um erro recorrente e perigoso nessas experiências republicanas: “É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste em absoluto em se fazer o que se quer.” (EL, XI, 2) E, assim conclui que, para a liberdade política moderna, o republicanismo daquele tipo não só é desadequado, como perigoso. Precisamente, este foi o ensinamento que Rousseau e muitos dos revolucionários de 1789 não souberam ou não quiseram aprender: “Os partidários da liberdade antiga ficaram furiosos porque os modernos não quiseram ser livres seguindo o seu método. Aumentaram as vexações, o povo duplicou a resistência e os crimes seguiram-se aos erros.” (Constant, De l’Usurpation,1815)

Para o mestre de Bordéus, um governo não é livre por causa da sua origem, da sua natureza popular ou do carácter dos seus políticos ou cidadãos, mas pela sua prática limitada. Isto é, o governo livre não é teoria ou legitimidade original, mas antes opinião sobre uma determinada prática política concreta capaz de garantir a segurança e a tranquilidade de cada cidadão: “A liberdade política de cada cidadão é essa tranquilidade de espírito que provem da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que haja essa liberdade é necessário que o governo faça de modo que nenhum cidadão possa temer outro cidadão.” (EL, XI, 6) Consequentemente, em vez de partir da análise do direito enquanto fundamento da liberdade, parte da análise do poder enquanto ameaça dessa mesma liberdade. Não admira, portanto, que não se interesse especialmente pela questão da origem do poder político, preferindo antes estudar as experiências políticas históricas concretas e analisar os resultados efectivos de cada uma delas. Por outras palavras, Montesquieu vai preferir questionar os poderes políticos, e a sua legitimidade, tendo em vista principalmente os seus efeitos, sendo aqui que se encontra o âmago do seu pensamento político: a questão da oposição entre o exercício do poder e a manutenção da liberdade.

Todavia, apesar do desinteresse pela demanda filosófica do governo perfeito, isso não quer dizer que este grande pensador considera como sendo equivalentes todos os regimes políticos. Bem pelo contrário: para si eles são diferentes do ponto de vista do exercício da liberdade. E esta é a perspectiva que considera essencial e que privilegia: certos regimes políticos concretos são bons – ou moderados, para usar a linguagem que consagra –, outros são maus ou imoderados. Na Europa essencialmente monárquica do século XVIII, existe para ele uma forma política que é melhor que todas as outras: a de Inglaterra, “a única nação no mundo cujo objecto directo da sua constituição é a liberdade política.” (EL, XI, 5) O governo desse país assenta na consagração dos princípios da separação e equilíbrio dos poderes e da representação política. É um governo que não tem ambições utópicas, que não procura directamente a felicidade dos cidadãos, mas que garante a segurança de cada um deles através da lei e da disposição institucional – de modo a que o poder trave o poder – e não por meio do medo ou da virtude. Mas Montesquieu vai mais longe. Compreendeu igualmente que as formas de governo e que as instituições políticas são apenas, por elas próprias, insuficientes para assegurar um regime político de liberdade. Tal como o que define um indivíduo não é só o seu corpo, mas também a sua alma, à forma do governo é necessário juntar algo de mais dinâmico: as paixões, as convicções, os sentimentos que perpassam pela cidade, o ethos dominante que enforma as suas leis, as suas políticas, os seus costumes e hábitos. Assim, o regime de liberdade dos ingleses não deriva somente da sua constituição política. É no famoso capítulo 27 do Livro XIX de Do Espírito das Leis que nos fala do espírito geral dos ingleses, afirmando que o princípio que faz mover aqueles cidadãos é a ambição generalizada. As leis e os costumes ingleses não preparam os seus cidadãos para uma vida de virtude, mas antes para a liberdade. Evidentemente, já não se trata da questão da natureza, extensão e proporcionalidade das leis, tal como aparece enunciada no Livro XII – “É portanto da bondade das leis criminais que depende principalmente a liberdade do cidadão”. Trata-se precisamente da questão da liberdade para além das instituições e das leis. Ser livre em Inglaterra é compatível quer com a realização de certos desejos ou apetites pessoais como a riqueza e o prestígio, quer com certos vícios como a inveja e o ódio. Os ingleses dão preferência ao comércio e assentam essa sua escolha não no dever, mas no interesse. Naquele país, o interesse pessoal de cada homem, e não a virtude, é a base do patriotismo e do amor pela liberdade. E, todavia, a moderação mantém-se e a liberdade política está assegurada.

É por tudo isto que a leitura da obra-prima de Montesquieu, finalmente traduzida para português, constitui leitura indispensável a todo o leitor moderno.


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