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O que faz um bom líder?


Uma Jóia em África

Não sendo uma ciência, a liderança pode contudo transformar-se numa disciplina válida ao ser objecto de estudo e, principalmente, de crítica e avaliação. Nas palavras do próprio autor, “a liderança não é uma ciência, é uma arte, mas mesmo a arte beneficia com a crítica”.

The Powers to Lead
Joseph Nye

  Oxford University Press, 2008

POR LÍVIA FRANCO

The Powers to Lead 

Um recente mas já famoso vídeo da agência Reuters intitulado O Estilo de Liderança de Obama afirma de modo enfático que o novo presidente eleito é um bom ouvinte, um grande organizador, um excelente gestor, um homem de acção e um conciliador capaz de estabelecer consensos.

Apesar da sua curta experiência política, as funções desempenhadas como organizador comunal nos problemáticos bairros do Sul de Chicago e, principalmente, a condução de uma das mais bem sucedidas campanhas eleitorais de toda a história da democracia americana, são suficientes para a referida agência noticiosa concluir entusiasticamente que “estamos perante um novo tipo de liderança, uma liderança para o século XXI”. Isto não pode deixar de constituir uma excelente notícia para os cidadãos daquele país que desde 2005 – segundo um estudo sobre os índices de confiança na liderança actual publicado pelo Center for Public Leadership da Universidade de Harvard – viviam precisamente uma profunda crise relativa aos seus líders: mais de metade dos inquiridos, quando interrogada sobre o grau de confiança que deposita nos seus dirigentes responde “pouco” ou “nenhum”, enquanto 79% estão convencidos que, na ausência de líderes mais capazes, os EUA continuarão em declínio. Note-se que estes dados não se reportam apenas ao domínio político, mas ao fenómeno da liderança em geral, em sectores tão díspares como a religião, os negócios, a educação e, especialmente, os meios de comunicação.

É neste contexto generalizado de descrédito da liderança e do aproximar das eleições presidenciais norte-americanas que Joseph Nye, o reputado académico, politólogo e antigo director da Kennedy School f Government de Harvard, se interroga: “mas para onde foram todos os bons líderes?” A resposta a esta questão passa primeiro pela solução para uma outra questão, mais antiga e sucessivamente levantada ao longo da História por todo o tipo de pensadores: “o que faz um bom líder?” Em The Powers to Lead, Nye conta-nos que na sua larga investigação e na sua experiência – incluindo nas Administrações Carter e Clinton – se deparou com abundante bibliografia sobre o tema, mas que quase toda era ou pouco esclarecedora ou muito fraca do ponto de vista analítico. A sua intenção com este pequeno livro publicado em meados de 2008 pela Oxford University Press é, assim, dupla: por um lado, oferecer um enquadramento analítico sério e sucinto sobre o intemporal fenómeno da liderança, e por outro, um instrumento rigoroso que permita aos cidadãos avaliar os seus líderes, tanto passados como presentes, públicos ou privados. O fenómeno da liderança mais não é do que “a capacidade para orientar e mobilizar as pessoas para um determinado propósito” e os líderes (políticos, empresariais, religiosos, etc.) são todos aqueles capazes de ajudar um determinado grupo a criar e a realizar objectivos comuns. Não sendo uma ciência, a liderança pode contudo transformar-se numa disciplina válida ao ser objecto de estudo e, principalmente, de crítica e avaliação. Nas palavras do próprio autor, “a liderança não é uma ciência, é uma arte, mas mesmo a arte beneficia com a crítica”.

Dividido em 5 capítulos escorreitos, o livro tem uma clara intenção pedagógica: clarifi cação de conceitos, análise histórica, distinção de correntes e escolas, tipifi cação de líderes. No fim encontramos um pequeno apêndice com uma síntese do argumento em 12 pontos muito úteis aos estudantes e aos leitores que procuram conselhos. Entre os vários tópicos tratados, um destaca-se claramente: o da relação entre o poder e a liderança. No entendimento convencional, o poder signifi ca a capacidade de atingir os objectivos ou fi ns propostos. Todavia, nas duas últimas décadas, o próprio Joseph Nye tem sido responsável, juntamente com o seu colega e amigo Robert Keohane (Woodrow Wilson School, Universidade de Princeton), por uma profunda revisão deste conceito, sobretudo quando aplicado às relações internacionais. Com a publicação no final da década de 70 de Power and Interdependence, os dois autores introduziram na linguagem da disciplina a noção de soft power, hoje em dia incontornável. Num contexto de crescente interdependência global, a autonomia dos actores internacionais, principalmente dos Estados, vê-se reduzida. A distribuição dos custos e benefícios das políticas desenvolvidas continua assimétrica, mas os seus efeitos recíprocos acentuam-se, criando um maior potencial de dependência mútua. Este facto vai ser fundamental na medida em que, num sistema caracterizado por uma interdependência geral, ser menos dependente do que os outros e conseguir manipular as assimetrias dessa interdependência em benefício próprio representa uma importante fonte de poder. O poder continua a ser essencial no mundo moderno, mas assume uma nova natureza. O soft power, entendido como faculdade de influenciar ou persuadir um determinado resultado, distingue-se cada vez mais do hard power como capacidade de coagir ou usar a força para atingir esse mesmo resultado. Esta constatação de uma dupla natureza do poder implica, obviamente, uma revisão da avaliação do próprio exercício do poder, mas, igualmente, das aptidões que os bons líderes deverão deter. Acontece que tradicionalmente, e especialmente no domínio político, os estudos sobre liderança concentraram-se (quase) exclusivamente sobre os elementos coercivos do poder do líder. Agora já não pode ser assim.

Segundo Nye, os líderes de sucesso do século XXI terão necessariamente de possuir pelo menos seis competências. Três dessas competências pertencem ao domínio do soft power: a inteligência emocional, uma visão abrangente e atractiva que possa ser partilhada por outros e uma grande destreza na comunicação (verbal e não verbal). Quanto ao hard power, destacam-se a facilidade organizativa e de gestão e uma forte capacidade de imposição. Finalmente, a sexta e mais importante das competências, a «inteligência contextual», isto é, conseguir estabelecer a melhor ligação entre as anteriores competências, combinando-as na estratégia certa para os propósitos pretendidos. Por outras palavras, a liderança não diz apenas respeito às aptidões dos líderes per se, mas igualmente ao modo (como e quando) eles usam essas aptidões. Nye compara metaforicamente a «inteligência contextual» com a habilidade dos bons surfistas – ter a capacidade de conseguir compreender o contexto envolvente com vista à capitalização das tendências do momento. Neste sentido, a inteligência contextual (noção que não é original do politólogo) traduz-se numa capacidade intuitiva de diagnóstico que permite ao líder delinear a estratégia mais adequada a cada tipo de situação, tal como o surfi sta talentoso sabe interpretar as correntes e a formação das ondas para tirar o maior proveito do seu desporto num mar que é cada dia diferente. Num mundo em constante mutação, esta é uma competência cada vez mais crucial: saber como e quando agir em cada momento. O que é o mesmo que dizer que são necessários diferentes tipos de liderança consoante as circunstâncias que se vão desenhando. Ensinamento que, aliás, já se encontrava em O Príncipe de Maquiavel: por vezes os líderes terão de imitar o leão (a sua força física) e por outras a raposa (a sua manha). Esta flexibilidade, entendida principalmente como a capacidade de fazer a síntese do hard power da coerção com o soft power da atracção e da infl uência numa estratégia de sucesso, constitui um novo tipo de poder imprescindível aos novos líderes – o smart power.

Nye compara metaforicamente a «inteligência contextual» com a habilidade dos bons surfistas – ter a capacidade de conseguir compreender o contexto envolvente com vista à capitalização das tendências do momento.

No dealbar de uma nova era internacional, a liderança tornou-se novamente o assunto do dia. Só que o líder já não pode ser entendido como aquele que se encontra no topo da hierarquia, mas antes como aquele que está no centro da rede complexa que caracteriza todos os relacionamentos da actualidade contemporânea. O académico de Harvard contanos que em meados dos anos 90 do século passado, Bill Clinton afirmara: “Os americanos sempre darão prioridade a alguém poderoso mesmo que errado, do que a alguém correcto mas fraco.” Uma década volvida, nada poderá estar mais incorrecto. Não só na América, como no resto do Mundo. E o mais irónico é que os americanos foram aqueles que mais sofreram com as transformações entretanto operadas sobre a liderança. Apesar do poder material desse país não ter rival no mundo actual, nos últimos dez anos a sua imagem e infl uência entraram em declínio substancial e constante, inclusive nos países tradicionalmente aliados. As suas políticas unilaterais são geralmente interpretadas como tiques de uma arrogância desmedida, as suas acções limitadas como sinal de uma profunda ineficácia. Trata-se de um velho dilema, mais uma vez celebremente tratado pelo pensador florentino – O que é melhor para o Príncipe: ser amado ou temido? (Cap. XVII) A resposta de Maquiavel é a de que apesar do medo e o amor não serem verdadeiramente opostos é muito difícil ser amado e temido ao mesmo tempo, até porque os homens não são de confiar. Assim, os laços de obediência, respeito e fidelidade manter-se-ão melhor através do medo (controlável) do que do amor (incontrolável). Ao príncipe/líder não deve interessar sobretudo conseguir a amizade do povo, mas antes evitar a sua inimizade. Só que essa inimizade não depende apenas exclusivamente do real exercício do poder cruel, mas também da fama que é atribuída a esse mesmo poder. Por outras palavras, o sucesso do príncipe não depende apenas do seu poder material, mas também da sua reputação.

No actual contexto, onde todos os processos sociais sofreram o impacto da revolução tecnológica aplicada à informação e à comunicação, a relação entre o poder e a imagem tornou-se mais fundamental do que nunca no domínio da liderança. Sendo o poder cada vez mais imaterial e difuso e a informação mais célere e acessível, as componentes imagem e reputação tornaram-se determinantes. Não admira, portanto, que a própria campanha presidencial de Barack Obama tenha desde o início assumido como mote principal a «Mudança» ao nível do tipo de liderança. Ainda como candidato à nomeação pelo Partido Democrata, Obama publica no Verão de 2007 um artigo na Foreign Affairs com o incontornável título «Renovando a Liderança Americana». Neste, propõe que a nova liderança americana no mundo assente num propósito comum positivo para a comunidade internacional (a prosperidade e a estabilidade) e não no medo de uma ameaça comum (o terrorismo). Para tal é indispensável restabelecer o respeito mútuo (crítico) entre os aliados e a capacidade de dissuadir os inimigos. Nye, apoiante declarado de Obama, não pode deixar de considerar que esta é uma boa estratégia de smart power.

A parte mais substantiva da obra em análise encontra-se, contudo, no último capítulo que tenta explicar, afinal, o que é um «bom» líder: o líder que é eficaz (tem sucesso na prossecução dos objectivos) ou o líder que é moral (porque realiza o bem)? Mais uma vez a resposta implica uma nova interrogação: os líderes estão submetidos aos mesmos padrões morais que as pessoas comuns? O que é o mesmo que perguntar, existe uma moral pública que se diferencia da moral privada? No entender do autor, os líderes devem estar sujeitos a ambos os tipos de obrigações morais, o que não deixa no entanto de ser complicado tendo em vista que muitas vezes elas colidem. Que fazer então? Para Nye não existe uma resposta única. E à laia de justificação cita Isaiah Berlin: “Os fins dos homens são variados, e nem todos eles são em princípio compatíveis entre si, o que torna impossível eliminar definitivamente o conflito – e a tragédia – da vida humana, pessoal ou social.” (Two Concepts of Liberty) Todavia, o professor de Harvard sublinha igualmente que em democracia os princípios importam muito e certos bens – simultaneamente públicos e privados – não devem nunca ser postos em causa. Por isso, os líderes democráticos são aconselhados a procurar recorrer tendencialmente aos instrumentos do soft power e a ter em consideração também os preceitos da moral. O que não quer dizer que o próprio soft power seja intrinsecamente mais moral. Tal como o hard power, ele pode ser usado para fins bons ou maus e ter consequências positivas ou nefastas. Por exemplo, os terroristas suicidas que levaram avante os ataques do 11 de Setembro foram manipulados e não coagidos por Osama Bin Laden. A razão principal do conselho de Nye encontra-se antes na distribuição do próprio poder: convém que os líderes estejam cientes que nunca como agora os seus seguidores – eleitores ou subordinados – possuiram tanto poder.

O mérito deste pequeno livro reside sobretudo nos vários exemplos e episódios que conta e na linguagem acessível e directa com que trata um tema tantas vezes mistificado na actualidade obcecada com a cientifização de todo o conhecimento. Mas o seu ensinamento principal não é original. Pelo contrário, é velho como a própria humanidades: os bons líderes são aqueles que em épocas diferentes e sob condições variadas sempre mostraram o melhor discernimento.

The Powers to Lead


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