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Dois Mundos


 

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A história económica, como qualquer área científica, tem os seus problemas e as suas questões científicas.

A Farewell to Alms. A Brief Economic History of the World
Gregory Clark

Princeton University Press, 2007

POR MIGUEL MORGADO

DOCENTE DO INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA 

Mas para a história económica não há mistério mais sedutor do que a chamada Revolução Industrial. Por outras palavras, se há questão que, em larga medida, justifica a existência da história económica como disciplina científica, esse grande ponto de interrogação pontua as hipotéticas causas ou razões que conduziram à maior transformação material global a que o mundo jamais assistiu. Por que é que desde a revolução Neolítica até ao final do século XVIII, isto é, por que é que ao longo de milhares de anos de sociedades humanas reconhecíveis o mundo económico esteve espartilhado pelas inflexíveis e implacáveis restrições malthusianas, que anulavam os mais tímidos progressos no rendimento per capita com crescimento populacional? E, por que é que, por volta da viragem do século XVIII para o XIX, o Ocidente encetou uma trajectória absolutamente sem precedentes de crescimento económico e prosperidade material que parece não dar sinais de abrandar, desta feita abarcando todas as regiões do mundo, talvez com a dolorosa excepção africana? Dentro desse grande mistério – “o que mudou?” e principalmente “por que mudou?” – inserem-se dois outros enigmas: primeiro, porquê o período 1760-1860 (e não outro anterior ou posterior)?; segundo, por que foi a Inglaterra o centro geográfico desta dita revolução?

Na história económica, mais do que em qualquer outro domínio da história, é possível dizer que há um “antes” e um “depois”. Antes da grande transformação, a história económica do mundo é relativamente monótona. Este mundo malthusiano, regulado ferreamente pela demografia, caracterizava-se pela carência material e, sobretudo, pela ausência de um horizonte futuro de superação dessa carência. Assim, entre o período dos caçadores-recolectores e o século dito das “Luzes” houve oscilações nos níveis de vida, de consumo e dos salários reais, mas nunca se registou qualquer tendência de melhoria consistente dos mesmos indicadores. A cada período de relativa prosperidade material sucedia necessariamente um período de deterioração das condições de vida. A expressão “progresso económico” ainda não fazia sentido.

A consciência de que estamos perante um grande mistério já é antiga. A transformação material do mundo foi tão profunda que obrigou os homens a investigarem as suas origens e as suas regras. E não se pode dizer que a história económica das últimas décadas não tem feito progressos. Hoje, sabemos mais do que no passado, em grande parte graças à chamada Nova História Económica, a escola que aproximou a disciplina histórica dos métodos quantitativos e económicos, e que na sua galeria de notáveis conta com os nomes de Robert Fogel, Douglass North (ambos galardoados com o Prémio Nobel da Economia em 1993), Robert Townsend ou Peter Temin. A história económica ancorada na teoria económica, nos seus métodos, teoremas e resultados, pode ter perdido em beleza literária, mas não há como duvidar de que ganhou em frutos.

Este preâmbulo serve para introduzir o último título, da autoria de Gregory Clark, que se acrescentou à prestigiadíssima colecção “Princeton Economic History of the Western World”. Clark, com uma ambição científica que só pode recomendá- lo – “compreender a história da Humanidade” –, confronta todos estes mistérios e enigmas com algumas propostas antigas e outras novas. Também Clark se sente fascinado pelo facto de o mundo anterior ao século XIX ter sido regulado pelo fatalismo de Malthus, que tirava as ilações imediatas de a produção alimentar crescer de acordo com uma proporção aritmética, ao passo que a expansão demográfica procede ao ritmo de uma proporção geométrica. E sente-se sobretudo fascinado por o mundo, a dado momento, ter deixado para trás a estagnação e a pobreza inevitável rumo ao crescimento incessante da prosperidade material, com repercussões espectaculares sobre a esperança média de vida, o nível de conforto das classes mais pobres e libertação generalizada do homem face à carência. O título do livro procura deliberadamente a associação ao romance de Hemingway, mas talvez fosse mais rigoroso se fosse reformulado para “Um Adeus à Carência”.

Não é preciso dizer que existe um consenso quanto aos indicadores básicos desta transformação económica crucial. Os exemplos mais evidentes são a intensificação do progresso tecnológico, a disseminação temporal e espacial desse progresso tecnológico ou a diminuição da fertilidade humana. Mas a questão fundamental reside ainda nas causas deste novo equilíbrio dinâmico. A explicação de Clark, que ainda deixa por esclarecer alguns pontos essenciais, incide na combinação de uma forma peculiar de darwinismo social (e, por vezes, biológico), de atenção à importância da estabilidade e eficiência institucional, e de ênfase na adopção de um conjunto específico de valores e atitudes. Na verdade, segundo Clark, a adopção generalizada dos valores do trabalho, da paciência, frugalidade, da disciplina, da procura da inovação, da educação, enfim, das qualidades necessárias à geração societal de riqueza, é consequência do primeiro processo de cariz darwinista. Naquela que talvez será a sua tese mais controversa, Clark avança a ideia de que a sociedade inglesa a partir do século XIV exibia, não só uma relativa estabilidade e segurança institucional, mas também um índice relativamente elevado de mobilidade social descendente. Por outras palavras, em Inglaterra, as classes mais ricas, possidentes, ou mesmo nobres, deixavam cair para os escalões económicos e sociais inferiores muitos dos seus filhos, criando-se assim um mecanismo de transmissão de certos valores e atitudes que se adquiriam no topo da pirâmide, mas que gradualmente deslizavam para os estratos menos favorecidos pela estrutura social e política. A demografia ajudou, pois as classes altas tinham um sucesso reprodutivo muito maior, reforçando o processo. Este é apenas um dos muitos raciocínios surpreendentes que enriquecem A Farewell to Alms, e, nas páginas desta obra, o aparente paradoxo de que a mobilidade social ascendente das economias de mercado contemporâneas teve de ser precedida por uma sociedade marcada pela mobilidade social descendente torna- se perfeitamente plausível.

Uma das conclusões que teremos obrigatoriamente de extrair das teses de Clark é talvez superficial, mas não menos ilustrativa. O resultado “revolucionário” da transformação económica do mundo não resultou de uma “Revolução” Industrial, mas de um processo evolutivo de mudanças graduais e, em larga medida, imperceptíveis para os seus contemporâneos. Também se poderia acrescentar que a ruptura económica decisiva não foi puramente “industrial”, mas afectou o sector agrícola de forma decisiva. As designações genéricas têm sempre os seus defeitos, uns mais sérios do que outros.

Claro que sempre se pode dizer que os limites do livro de Clark são, em grande medida, os limites da abordagem da chamada Nova História Económica. Como salientou já há muito tempo um dos seus fundadores, Douglass North, a metodologia económica e quantitativa gerou resultados inestimáveis, mas impõe uma rigidez metodológica excessiva. Foi extremamente útil na destruição de alguns mitos associados à revolução industrial e que já eram uma espécie de mobília da consciência histórica ocidental. Mas a tendencial exclusão de outros domínios como o político ou o intelectual que marca algumas das obras mais emblemáticas desta abordagem deixa no paladar o gosto daquilo que é unilateral. As explicações exógenas ao funcionamento do sistema económico são muitas vezes desvalorizadas, o que não ajuda a tornar credíveis os resultados da investigação. Porém, é preciso reconhecer que Clark procura tomar em conta algumas das objecções habituais à abordagem da Nova História Económica. E não deixa de criticar aqui e ali o trabalho dos fundadores da escola. Neste sentido, é digna de nota as dificuldades identificadas por Clark relativamente à insistência dos seus colegas em elevar os incentivos sistémicos à categoria de causa explicativa primordial.

Seja como for, Clark escreveu um magnífico livro que não esgotou o seu tema. De resto, pode-se dizer que o tema ainda não é assunto que possa legitimamente ser reclamado pelos historiadores como seu monopólio. Como atestam as frequentes referências do livro aos problemas que enfrentamos na era da globalização, a Revolução Industrial é constitutiva do nosso mundo actual. Por essa razão, nunca é demais repetir o aviso de Fritz Stern, segundo o qual este assunto “é demasiado sério para ser entregue exclusivamente ao historiador económico”. Porém, na parte que cabe ao historiador económico, Clark deu um extraordinário contributo para o enriquecimento do debate intelectual. Isso vale para o debate entre historiadores, mas também para o debate mais alargado, e que está em curso, sobre o nosso destino colectivo.

Foram precisamente os trabalhadores menos qualificados que mais beneficiaram da industrialização do mundo

Como muitos dos seus críticos se apressam a apontar foi, de facto, a Revolução industrial que iniciou o grande processo económico que produziu a desigualdade económica entre as nações, processo conhecido como a “grande divergência”. Mas o que não é tão frequentemente assinalado, e que Clark demonstra de forma irrefutável, é que o mesmo processo económico reservou os seus maiores benefícios para os mais pobres, isto é, para os trabalhadores sem habilitações, nem qualificações especiais. É verdade que hoje assistimos a uma dinâmica económico-tecnológica que recomenda a situação particularmente precária de quem não tem essas habilitações ou qualificações especiais. Mas se olharmos para todos os países que nos últimos 200 anos partilharam desta vaga de crescimento económico, aprendemos – e contra todas as nossas primeiras intuições – que foram precisamente os trabalhadores menos qualificados que mais beneficiaram da industrialização do mundo, não obstante os periódicos episódios de revolta anti-tecnológica que ocorreram um pouco por toda a Europa do Norte no século XIX. Não quer isto dizer que os proprietários da terra ou do capital, ou os que eram particularmente dotados de qualificações especiais, não ganharam muitíssimo com o processo posto em marcha pela Revolução Industrial. Quer antes confirmar algo em que Schumpeter sempre insistiu, a saber, que os ricos, por assim dizer, sempre foram ricos, sempre gozaram dos confortos da vida. O que é verdadeiramente inédito é se proporcionar nas nossas sociedades à camada mais desfavorecida da população que goze de acesso a bens e serviços que outrora nem sequer estavam ao dispor das classes superiores. Com a óbvia excepção da miséria mais abjecta, ser pobre hoje não é o mesmo que ser pobre há algumas dezenas de anos. Reconheçamos que isso não é grande consolo para as grandes massas em África, algumas regiões da América Latina e Ásia do Sul, que nos nossos dias têm um nível de rendimento e conforto individual inferior ao de um camponês da Baviera no século XVII. Mas reconheçamos igualmente que o movimento de superação dessas condições de miséria depende em absoluto, e mais do que qualquer outra coisa, da propagação do mesmo processo de crescimento económico que proporcionou ao camponês da Baviera (ou do Sussex, ou do Languedoc, ou do Alentejo) automóveis, vacinas, casas confortáveis, calorias, 80 anos de esperança média de vida e, salvo infelicidades fortuitas, não ter de assistir à morte prematura dos filhos ou netos.

A reflexão histórica sobre as causas, o significado, o alcance e as consequências da Revolução Industrial manterá a sua tremenda actualidade enquanto os homens quiserem melhorar a sua condição e lutar contra a carência. Esses homens somos nós.

 


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