Uma reflexão, em voz alta, sobre alguns problemas do nosso mundo e algumas tendências do pensamento político contemporâneo |
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Caminhar sobre a Água - Fé, Razão e Política |
Professor, IEP-UCP
O livro colige e unifica uma série de ensaios escritos nos últimos três anos que recolhem uma reflexão, em voz alta, sobre alguns problemas do nosso mundo e algumas tendências do pensamento político contemporâneo. Trata-se uma exploração que convoca, de modo recorrente, a articulação entre três elementos, dos quais depende – entre outros – o bom andamento de uma sociedade decente: i) os arranjos institucionais e as leis; ii) o capital moral e social (ideias, costumes e valores, as fibras éticas dos cidadãos e suas solidariedades básicas); e iii) as qualidades e carácter da classe política. Neste momento, limitar-me-ei a aflorar dois dos tópicos abordados no livro: o alcance político da confusão actual sobre o que significa ser humano; e as implicações políticas da conjugação de um certo cientismo com um ambiente social receptivo a formas de segurança tecnológica, vigilância biométrica e marcação digital.
Para esse efeito, recuemos um pouco no tempo. Em 1949, na ressaca da guerra e da vitória dos Aliados sobre a Alemanha nazi, Leo Strauss, nas Walgreen Lectures1, referindo-se ao pensamento filosófico e político de então, lembrava que «não seria a primeira vez que uma nação derrotada no campo de batalha e, por assim dizer, aniquilada como entidade política, privou o vencedor do fruto mais sublime da vitória, ao impor-lhe o jugo do seu próprio pensamento». Strauss aludia ao que ele via como sendo o triunfo ideológico do “pensamento alemão” – do historicismo e do niilismo – sobre uma forma de pensamento que ele considerava ter animado positivamente, apesar de tudo, o humanismo ocidental: uma visão associada à fundamentação racional e natural da dignidade humana e, de algum modo, convergente com a sua fundamentação sacral. Cerca de uma geração atrás, dizia ainda Strauss, «a Europa Ocidental e os Estados Unidos ainda atribuíam importância decisiva ao direito natural, enquanto na Alemanha os próprios termos “direito natural” e “humanidade” seriam quase incompreensíveis e teriam perdido completamente a sua vida e cor originais. O que era uma descrição razoavelmente precisa do pensamento alemão vinte e sete anos antes parecia agora ser verdade para o pensamento ocidental em geral». 2 Encontramos uma convicção semelhante, ainda que com matizes diversos, em autores como Harry Jaffa, Allan Bloom, Harvey Mansfield ou Pierre Manent.
Esta dissolução da ideia de pessoa humana está na raiz dos mais ardentes focos de conflito político e social na actualidade
Anos depois, Roger Scruton – na edição de Fools, Frauds and Firebrands posterior colapso da União Soviética – fazia notar que, depois desse colapso, durante um breve período de tempo, ainda parecia possível esperar um pedido de desculpas contrito por parte daqueles que tinham dedicado os seus esforços intelectuais e políticos ao branqueamento do comunismo, patente que era então o seu legado de horror e terror, durante tantas décadas: um rasto sanguinolento de atrocidade, miséria e mentira, vampirização da individualidade, profanação da dignidade humana, etc.3 Contudo, dizia Scruton, essa esperança desvaneceu-se depressa: rapidamente, academia e media contra-atacaram, reagrupando-se contra o neoliberalismo, como se ele (o dito neoliberalismo) tivesse sido sempre o problema, afinal. Scruton sugere portanto que aconteceu algo paralelo ao que Strauss antes referia: tal como os derrotados da II Guerra Mundial impuseram ao vencedor o jugo do seu próprio pensamento, também os derrotados guerra fria terão feito o mesmo. E, assim, neocomunistas, filocomunistas e compagnons de route não arrependidos pontificaram no debate cultural e as suas ideias foram generosamente acolhidas no arco da governação e da respeitabilidade política (ao contrário do que foi reservado ao extremo oposto do espectro político…). Claro que o guião agora é outro, mas o fundo seria ainda o mesmo: uma ideologia negativa de “emancipação”, ressentimento e desconstrução; de rancor contra a propriedade privada, economia de mercado, responsabilidade pessoal e subsidiariedade; contra o cristianismo, amor à pátria e liberdades comuns das pessoas comuns (como fumar…); de revolta contra a dualidade sexual, maternidade e paternidade (i.e., contra a família chamada tradicional); de hostilidade frente aos “pequenos pelotões” independentes do Estado – instituições, tradições, convenções, clubes, corporações, igrejas e associações várias (vistos como e pilares da “ordem burguesa” e “estruturas de dominação”) e, enfim, face a todo o sistema de valores e normas de convivência que vivificaram a sociedade ocidental e limitaram os seus defeitos.
Em suma, para Strauss, Nietzsche teria vencido; para Scruton, Sartre teria vingado. E, com ambos (Nietzsche e Sartre) – conquanto em termos muito diferentes, banalizados e ideologizados – teria triunfado uma certa ideia de pessoa humana completamente “gasosa”, sem qualquer estrutura espiritual e corpórea identificante, produto de uma autocriação arbitrária, sem profundidade ou transcendência, reduzida a uma liberdade desencarnada (e também “desalmada”): uma liberdade desumana, afirmação de uma vontade “autónoma” nua de razões, que se auto-projecta sem padrão, sentido ou valores objectivos (excepto a própria subjectividade e autenticidade, conquanto informe e vazia). A recusa, subversão e manipulação da própria humanidade, agora despojada de qualquer mensagem moral, seria a derradeira emancipação e superação da humanidade.
Ora esta dissolução da ideia de pessoa humana está na raiz dos mais ardentes focos de conflito político e social na actualidade. É verdade que existe uma distinção real entre natureza e identidade: entre humanidade e personalidade, entre o que somos como seres humanos e quem somos como indivíduos, capazes de intencionalidade e escolha. Mas distinção não é independência. A identidade, a pessoalidade de cada um de nós, está vinculada a uma natureza humana universal, com uns certos limites, uma certa estrutura moral, alguns objetivos comuns e uma certa gama de interesses naturais. Todavia, a pergunta “o que é um ser humano?” – e, mais ainda, a pergunta “what is a woman?”, a vexata quaestio que assombra os campi universitários e os tribunais, um pouco por todo o lado – é agora considerada imoral, politicamente inaceitável e – para os pós-humanistas – irrelevante. Mas, sem responder à pergunta “o que somos?”, como podemos responder à pergunta “quem somos?” de maneira significativa e operacional, em termos políticos? E nesse caso, como podemos construir uma sociedade estável ou coerente?4 Com efeito, os nossos deveres e os nossos direitos dependem do reconhecimento dos outros como seres humanos, iguais a nós, com a mesma dignidade (humana). Como se poderá discutir razoavelmente aquilo a que tem direito uma pessoa (o que lhe é devido, como pessoa humana) e qual é o seu dever, se não há um entendimento mínimo sobre o que é um ser humano, ou se a concepção de natureza humana – a nossa comum humanidade – for esvaziada de qualquer implicação moral? E, nesse caso, como se pode conversar sobre o valor da vida (humana), ou sobre a cidadania, liberdade, igualdade e justiça? E como se pode debater a relevância pública do casamento e da família (que constitui um dos pilares de uma sociedade decente), se não se assenta sobre o que é um homem e o que é uma mulher, ou se não se distingue entre os dois? As discordâncias presentes afectam os próprios fundamentos da comunidade política e privam a sociedade de um centro que possa sustentá-la. Böckenförde afirmava o Estado liberal secular vive de recursos morais e antropológicos que não pode criar ou garantir por si próprio; necessita de pressupostos normativos não contratuais e pré-políticos, que não são fruto do processo de deliberação democrática mas que o tornam possível. Sem esses requisitos – ou contra eles – as formas do constitucionalismo liberal perdem a alma, convertem-se em “ossos ressequidos”. Sem esse pano de fundo, os “valores europeus” – na prosápia de Emmanuel Macron ou Ursula von Leyden, por exemplo – não querem dizer quase nada (a não ser que se refiram ao “direito” ao aborto, ou à eutanásia, ou ao “casamento” entre pessoas do mesmo…)?5 E sem esses recursos – ou contra eles – como pode o The Economist censurar (com toda a razão) a República Popular da China ou a Federação Russa por espezinhar “direitos humanos universais”?
Voltemos novamente um pouco atrás e mais ao fundo. O argumento a favor de uma sociedade “constitucional” – liberal (em sentido clássico) e democrática – é multidimensional. Por um lado, envolve razões de tipo político-moral, associadas ao valor da liberdade e da responsabilidade individual, da equidade e da justiça, como elementos constituintes do bem comum. A participação e consentimento popular e os dispositivos de separação, limitação e repartição de poderes, por exemplo, são expressão desses valores (embora sejam, também, expressões de prudência política). Preferimos a democracia liberal porque – apesar das suas falhas – parece ser a fórmula mais compatível com a igual dignidade de todas as pessoas. Por outro lado, a justificação de uma sociedade “aberta” convoca também razões de tipo político-funcional (relacionadas com aquelas), entre as quais as de índole heurística e epistemológica, associadas às virtualidades do pluralismo e concorrência de ideias no espaço público, da liberdade de crítica, da representação e deliberação parlamentar através de “conjecturas e refutações”, etc.
A meu ver, actualmente, estas duas linhas de argumentação estão a ser desafiadas. A de natureza político-moral está a ser minada pelas razões já referidas acima. Por sua vez, as considerações de tipo político-funcional prendem-se com o segundo ponto anunciado no início deste ensaio: o das implicações da conjugação do impacto social dos big data associado a um certo positivismo político. Com efeito, a tecnologia digital e a consolidação de uma infraestrutura de comunicações global parecem poder tornar apetecíveis e realizáveis os mais velhos sonhos, visões e tentações de despotismo iluminado e paternalismo autoritário, de feição tecnocrática: o sonho de um sistema globalizado e supranacional, regido de cima para baixo, com gestão digital das populações, baseado em mecanismos de controlo e vigilância electrónica de banda larga (aliás, total...), dirigido por “peritos” e influencers bem posicionados nos fora e instituições políticas e económicas;6 o sonho de um mundo panopticónico de “informatização instantânea”, com a proliferação ubíqua de todo o tipo de sensores e dispositivos digitais, permitindo o controlo e registo online de deslocações, imagens e transacções, transporte e entrega de mercadorias, quantidades e preços, etc., fornecendo aos governos e bancos centrais um manancial de dados, em tempo real, sem precedentes (mesmo sem falar das eventuais Central Bank Digital Currencies).
No âmbito da política económica, é verdade que isso pode permitir melhores decisões por parte das autoridades – decisões mais precisas, focadas e atempadas –, mas tem também os seus riscos, o menor dos quais não será a miragem da posse de uma cyber.bola-de-cristal, a hybris da presunção de omnisciência capaz da planificação da economia por direcção central digital (o sonho da China…), a ilusão de poder superar a “austríaca” ordem espontânea, dispensando a “mão invisível”; e, no campo político, a ilusão de poder erradicar finalmente as velhas disputas politicas por via da autoridade dos peritos, através do apelo a processos supostamente científicos e não ideológicos. Embora epistocracia e tecnocracia não sejam a mesma coisa, vale a pena recordar a distinção (de Hannah Arendt) entre acting e making (conceitos próximos da praxis e poiesis aristotélicas, respectivamente), a partir da qual Arendt confronta os limites e perigos da tecnocracia. Na execução da sua tarefa, o maker actua num paradigma de durabilidade, solidez, fiabilidade e previsibilidade físicas, cuja aplicação à política constituiria uma tentativa desaustinada e vã de eludir a fragilidade inerente aos assuntos humanos, com a sua comitiva de liberdade, risco, abertura e irreversibilidade.7 Daí que a tendência para extensão do paradigma tecnicista (e cientista) ao âmbito político não possa senão agravar muitos dos traços mais negativos do pensamento “progressista” – centralização, maior controlo e intervenção do Estado, homogeneização, maniqueísmo, utopia, impaciência, repressão e “cancelamento” dos inconformistas, vanguardismo tecnocrático, supranacionalismo não democrático… Num contexto assim, a sociedade fica completamente à mercê do Estado (com o seu Ministério da Verdade), e nações independentes, sufrágio popular, liberdade de expressão e limitação de poderes não podem deixar de ser vistos como irritantes empecilhos. Neste cenário, «o sistema de contrapesos num governo é uma ideia funesta» (como julgava já Quesnay, citado por Tocqueville), uma vez que «é preciso que o Estado governe segundo as regras da ordem essencial e, quando assim for, deve ser todo-poderoso» (como julgava já Mercier de la Rivière); O modelo de governo para estes homens, diz Tocqueville, é o da China de então, esse «governo imbecil e bárbaro».8
Este “sonho” é actualmente um pesadelo verosímil: evoca, mais do que nunca, o espectro daquele «poder imenso e tutelar» – «um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e suave» – que toma «cada um dos indivíduos nas suas poderosas mãos», modelando-os «a seu jeito», tratando «sozinho da organização dos seus prazeres e de velar pelo seu destino», e poupando-lhes até «o trabalho de pensar e a dor de viver». O nome que Tocqueville dá a isto é: «servidão, ordenada, calma e amena».9 Seria o fim da liberdade, da democracia e da própria política. No entanto, a verdade é que «poucos governos (…) tiveram grande dificuldade em fazer com que os seus súbditos queiram aquilo que o governo quer».10 Tudo isto, se acontecer, será feito em nome da segurança, saúde, eficiência, “sustentabilidade” e felicidade. Afinal, «o triunfo do despotismo é conseguir que os escravos declarem que são livres».11
É melhor estarmos preparados para resistir…
Notas
1 Cf. J. A. Colen & Anthony Vecchio, “The First Walgreen Lectures by Leo Strauss (1949)”, Interpretation, Winter 2021, Volume 47 Issue 2, pp. 255-354.
2 Contudo, Strauss faz notar que a necessidade de um direito natural não implica que tal necessidade possa ser satisfeita: «Ao provar que certa visão é indispensável para viver bem, prova-se apenas que a visão em questão é muito desejável; ninguém prova que é verdade»: poderia ser um mito salutar, uma “nobre mentira”. Aliás, alguns straussianos – e o próprio Leo Strauss – foram suspeito de agnosticismo face a essa visão.
3 Cf. Roger Scruton, “What is Left”, em Fools, Frauds and Firebrands: Thinkers of the New Left, London: Bloomsbury, 2006, pp. 2-3.
4 Ver Carl R. Trueman, “Apocalyptic Politics: Christianity and the New World Order”, The Public Discourse, January 4, 2023. Disponível em: https://www.thepublicdiscourse.com/2023/01/86632/ (2023-03-16).
5 Ver Roger Scruton, Pierre Manent, Robert Spaemann, Janne Haaland Matlary, Rémi Brague et al., “Declaração de Paris. Uma Europa na qual podemos crer”. Disponível em: https://thetrueeurope.eu/a-declaracao-de-paris/ (2023-05-14).
6 Ver Lukasz Wordliczek, “The Rise of the Digital Technocracy Conference”, H-Net: Humanities & Social Sciences Online, March 13, 2023. Disponível em: https://networks.h-net.org/node/73374/announcements/12516291/rise-digital-technocracy-conference (2023-05-30).
7 Cf. Hannah Arendt, The Human Condition, Chicago: The University of Chicago Press, 1958, pp. 175 ss., 195, 220-230.
8 Cf. Alexis de Tocqueville, Oeuvres Complètes, Vol. 4, L’Ancien Régime et la Révolution, Paris: Michel Lévy Frères, Libraires Éditeurs, 1866, pp. 233-241.
9 Cf. Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América [De la Démocratie en Amérique, 1848], Cascais: Principia, 2001, II-IV.vi, pp. 837-838.
10 Cf. Isaiah Berlin, The Proper Study of Mankind: An Anthology of Essays, Random House, 2012, p. 236.
11 Ibidem.
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