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Uma diplomacia económica exemplar


Capa do livro Diplomacia em Tempo de Troika

Uma fina e arguta análise dos meandros da governação europeia e alemã, e de uma demonstração como é possível e necessário actuar para servir o interesse nacional no complexo xadrez europeu.

Diplomacia em Tempo de TroikaLuís de Almeida Sampaio
Lisboa, D. Quixote, 2022

Manuel Braga da Cruz

Manuel Braga da Cruz

Professor Catedrático e antigo Reitor (2000-2012) da Universidade Católica Portuguesa. Membro do Conselho Editorial de Nova Cidadania

A actividade diplomática, tradicionalmente mais política, adquiriu, cada vez mais, com a globalização, uma dimensão económica. Dimensão essa que se reveste de maior importância em momentos de crise, como aquela que atingiu Portugal com o excessivo endividamento externo do governo Sócrates e consequente dificuldade de acesso aos mercados financeiros internacionais, que obrigou à intervenção da “troika”: FMI, Comissão Europeia e BCE.

Este livro do Embaixador de Portugal em Berlim, nesse tempo, dá-nos conta do que foram os esforços, seus e do governo de Passos Coelho, para conseguir a compreensão e o apoio da maior potência económica da União Europeia e, por isso mesmo, o mais influente membro dela para as decisões económicas da Comissão relativas a Portugal.

Estas memórias são por isso de grande ajuda para perceber os meandros da crise e a determinação com que Portugal a soube superar, graças à firmeza do Governo e à inteligente e diligente actuação de todos os que o secundaram, entre os quais se destaca o Embaixador de Portugal em Berlim Luis de Almeida Sampaio, a quem agradeço o honroso convite para apresentar este livro na Universidade de Coimbra, em que se formou, e que quis homenagear com esta sessão.

Não se trata de um mero frio relatório, mas de uma fina e arguta análise dos meandros da governação europeia e alemã, e de uma demonstração como é possível e necessário actuar para servir o interesse nacional no complexo xadrez europeu, mobilizando quer a atenção dos decisores comunitários, quer a intervenção dos governantes nacionais, para se aproveitarem as oportunidades e se influenciarem atitudes.

O Embaixador Luis Almeida Sampaio dá-nos conta do muito que fez para mudar a opinião governamental alemã em nosso favor, para suscitar o interesse económico alemão em investimentos em Portugal, para conduzir as autoridades portuguesas nos bastidores alemães das negociações e decisões europeias.

Sendo já importante por si próprio, este livro tem, contudo, a enriquecê-lo um notável prefácio do Dr. Passos Coelho, explicando as decisões que o seu partido e o seu governo tiveram que tomar para salvar Portugal da eminente bancarrota, e que constitui um texto indispensável para a compreensão dos difíceis tempos que vivemos nos primeiros anos da segunda década deste século.

O prefácio de Passos Coelho historia as várias tentativas falhadas do governo Sócrates para suster o aumento da despesa e da dívida pública – os famosos PEC -, de par com projectos de aumento da despesa pública, na convicção de que grandes investimentos públicos ajudariam ao crescimento económico. Relata as tentativas de entendimento da oposição com o governo, através de conversações entre líderes dos principais partidos e dos máximos responsáveis pelas Finanças no governo e na oposição, bem como as exigências formuladas pela oposição do PSD para apoiar os ditos PECs. Dá conta das notações negativas das agências de rating internacionais que dificultaram o financiamento externo do estado português, até ao necessário pedido de intervenção da troika pelo governo Sócrates, depois de recusado o PEC4, por não ser suficiente para satisfazer todas as necessidades de financiamento do Estado em Portugal, e por ausência de meios para executar os seus propósitos.

Passos Coelho relata ainda os pedidos para extensão dos prazos de amortização dos empréstimos europeus, apresentados por Portugal e pela Irlanda, para preparar o regresso aos mercados, dificultados pela excessiva acumulação de amortizações de obrigações. Revela o apoio recebido da Alemanha para esta extensão das maturidades, desde que fossem positivas as avaliações da troika. Sem isso, não haveria extensão das maturidades, tornando necessário um segundo resgate. Refere-se por fim à crise decorrente da substituição do Ministro das Finanças e demissão do Ministro dos Negócios Estrangeiros, resolvida com especial determinação, através de uma rápida remodelação do governo. Estando em Berlim, numa reunião do Conselho Europeu, não sabendo ainda se seria capaz de reconduzir o CDS a participar no governo de coligação, envidou esforços junto de autoridades europeias para que convencessem o líder do PS a apoiar o governo, embora sem sucesso.

Este prefácio desenha, pois, o pano de fundo sobre o qual actuou o nosso Embaixador em Berlim, desde 2012 a 2015.

Luis de Almeida Sampaio começa por nos caracterizar a Alemanha, para entendermos a sua actuação diplomática. Enuncia três aspectos fundamentais que, em sua opinião, definem a mentalidade alemã contemporânea: o sentido de responsabilidade, como exigência da liderança, que eles gostariam de partilhar com a França; a procura incessante de entendimentos e consensos, que garantam a paz social; a identificação da condução política na Alemanha federal com a construção europeia.

Constacta que a Alemanha tem hoje um enorme respeito por Portugal, credibilidade que constitui uma herança do governo de Passos Coelho. Vêem-nos como muito antiga nação europeia, atlântica, ponte para outras sociedades. Os alemães têm por isso maior optimismo sobre o nosso futuro que nós próprios. Percebem a importância estratégica da nossa língua: somos europeus, mas estamos para além da Europa.

Luis de Almeida Sampaio chegou à Alemanha em pleno resgate da troika, quando internamente alguns começaram a contrapor crescimento a austeridade, como se fossem termos antitéticos. A estabilidade financeira e a disciplina orçamental que se procurava, visava obviamente o crescimento e a criação de emprego. Poucos acreditavam na Alemanha e em Portugal, que aquele pacote de resgate fosse o último. Não faltava quem advogasse a saída do euro de Portugal, pois não se acreditava que Portugal fosse capaz de cumprir as exigências do programa de ajustamento. Luis de Almeida Sampaio propõs-se contrariar esse pessimismo, dando conta dos esforços em curso em Portugal. Propõs-se fazer uma conferência em Munique no Instituto de Informação e Investigação Económica daquela Universidade, presidido por um prestigiado professor de Economia, símbolo desse pessimismo. Era preciso deixar clara a mensagem: se Portugal falhasse, a Europa fracassaria.

Estava em curso a batalha para salvar o euro, sob a liderança da Alemanha, corporizada no Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação da União Económica e Monetária, apesar da moeda única coexistir com a descoordenação de políticas económicas, financeiras e fiscais. O relatório dos cinco presidentes defendia um mecanismo único de supervisão e resolução de todos os bancos da zona euro e um sistema de garantia de depósitos, que o Conselho Europeu acolheu. A Chancelaria e o Parlamento europeu aceitavam a solidariedade com condicionalidade. Para as autoridades alemãs, sem uma autoridade de supervisão bancária europeia, e mecanismos de resolução bancária, não poderia haver recapitalização directa dos bancos em dificuldade.

O nosso embaixador empenhou-se em convencer as mais altas instâncias políticas alemãs. Visitou a Chancelaria e o Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Era preciso sublinhar as diferenças entre Portugal e o caso da Grécia, sobre a qual pairavam as maiores dúvidas sobre a capacidade de regeneração. Era preciso fazer convencer que os esforços que Portugal levava a efeito nos diferenciava. Tínhamos que passar a beneficiar da flexibilidade dada a outros.

Entretanto Mario Draghi anunciava que o BCE faria o que fosse necessário para salvar o euro, sublinhando que isso seria suficiente, propondo-se comprar dívida aos países em maior dificuldade. Os juros da dívida portuguesa caíram para quase metade.

Em Portugal, o anúncio da intenção do governo de mexer na TSU, reduzindo a comparticipação das empresas e aumentando a dos trabalhadores, para ajudar financeiramente as empresas, abriu divergências no governo português, entre os parceiros da coligação. Almeida Sampaio avisou o seu Ministro sobre o impacto negativo que teria na Alemanha uma crise política em Portugal, quando o nosso país podia ser a história de sucesso que a União Europeia e a Alemanha precisavam. Em Berlim sublinhava-se a importância de uma ampla base política de apoio ao governo e de um vasto consenso social. Apreciava-se a prudência do governo, a responsabilidade da oposição, a moderação dos comentadores. A imagem de Portugal na Alemanha era de enorme valia estratégica, não podia ser prejudicada. Consideravam-nos o melhor caso de todos. Tínhamos de continuar.

Almeida Sampaio preparou a visita a Berlim dos Ministros portugueses dos Estrangeiros e das Finanças que, em conferências que proferiram, reiteraram o empenho do governo português na realização do programa de resgate. A Alemanha queria evitar novos programas e por isso desejava uma saída em breve. Ambos os Ministros Portas e Gaspar tranquilizaram as apreensões sobre a estabilidade da situação política, e sobre o desejo de regresso rápido aos mercados financeiros para Portugal se financiar. Acolheu o líder da oposição socialista António José Seguro que, em Berlim fez questão de sublinhar que a sua discordância em relação ao governo não era sobre os objectivos mas sobre os meios.

O Embaixador português deu continuidade a esse esforço de convencimento das autoridades alemãs, preparando a visita de Merkel a Lisboa. Era preciso que a Chanceler reconhecesse o esforço português e o empenhamento de Lisboa no processo de integração europeia. A compreensão alemã poderia passar por uma linha de crédito às exportações portuguesas para a Alemanha. Merkel defenderia em Lisboa a criação de um banco de fomento, elogiou Passos Coelho e os seus esforços corajosos, e discutiu as privatizações. A sua visita a Portugal coincidiu com a 6ª avaliação e com os bons resultados da emissão de dívida portuguesa. No regresso a Berlim, o Embaixador Almeida Sampaio quis saber a opinião do líder da oposição social-democrata.

O ano de 2012 tinha sido o começo do virar de página da crise, que fora um teste à solidariedade europeia. O Tratado sobre a Estabilidade, o Pacto Fiscal e o Pacto para o Crescimento e Emprego, haviam contribuído poderosamente para o relançamento do crescimento em bases mais sólidas. O governo português – confessa Almeida Sampaio - não soube aproveitar esta mudança de maré para adoptar um tom mais optimista.

O nosso Embaixador recebeu em Berlim não só Secretários de Estado dos Assuntos Europeus e da Agricultura como também o Presidente da Câmara de Lisboa António Costa, que acompanhou nos seus contactos. Os socialistas pretendiam um abrandamento das medidas de austeridade.

Entretanto Portugal recuperava o pleno acesso aos mercados, apesar das limitações impostas pelo Tribunal Constitucional a medidas do governo. Almeida Sampaio visitou o Ministério das Finanças alemãs, que recomendava a persistência na linha adoptada pelo governo: depois da austeridade virá o crescimento.

Quando se deram as demissões do governo – primeiro do Ministro das Finanças, depois a do Ministro dos Negócios Estrangeiros – pondo em causa a coligação, a Chancelaria perguntou ao nosso Embaixador se havíamos perdido a cabeça. Tal não impediu que Passos Coelho tivesse mantido a sua participação na cimeira do emprego em Berlim, onde ouviu palavras de admiração e de solidariedade, pelo sucesso do programa de ajustamento português e pelo regresso do país aos mercados. É que não havia qualquer possibilidade de renegociação do programa, e arriscávamo-nos a necessitar de outro programa cautelar.

A Alemanha admirava a nossa recuperação. Fora preciso credibilizar o nosso esforço em cumprir os objectivos do programa junto dos interlocutores políticos e económicos, quer públicos quer privados. Almeida Sampaio tinha-o conseguido, fazendo passar a mensagem da nossa história de sucesso, promovendo a penetração de empresas portuguesas no mercado alemão, convidando-as a estar presentes nas feiras internacionais, facilitando reuniões e contactos, favorecendo a sua internacionalização, e fomentando o investimento alemão em Portugal, em suma, desenvolvendo a diplomacia económica, pela qual receberia o prémio Francisco de Mello e Torres, instituído pela Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, premio esse que destinou ao arranque de uma cátedra de diplomacia económica, que se dedicasse às questões e problemas da diplomacia económica. Convidou a Universidade Católica a criar em Lisboa um centro de estudos de diplomacia económica, e a estabelecer uma parceria com o Instituto Kiel para a Economia Mundial, levando professores portugueses da Católica a participar num seminário dedicado a Portugal, insistindo na ideia de que “Portugal não é a Grécia”.

Empenhou-se igualmente o Embaixador Almeida Sampaio na criação de um Banco de Fomento em Portugal, que apoiasse as exportações portuguesas para o mercado alemão, mediante um estreitamento das relações dos bancos portugueses com os alemães. Contactou vários banqueiros alemães, e em particular o KfW, o banco público de fomento alemão, cujo conselho de supervisão é presidido alternadamente pelos Ministros das Finanças e da Economia, que mantinha uma linha de crédito a favor das empresas portuguesas, e procurou apoios para essa ideia junto do Bundestag, alegando que Portugal podia ser a história de sucesso de que a Europa e a Alemanha precisavam, comprovando que as medidas de austeridade eram as correctas. Era preciso reactivar essa linha de crédito de apoio à exportação das empresas portuguesas, e aproveitar nesse sentido a visita de Merkel a Portugal, para que ela sugerisse a criação desse banco público de Fomento no nosso país, como de facto aconteceu. Uma colaboração do KfW poderia ser entendida como sinal de confiança na economia e no sistema financeiro português. Tais esforços não sortiram efeito, mas o Embaixador Almeida Sampaio não desistiu, e insistiu junto do Ministro das Finanças alemão para a negociação de um memorando de entendimento com o KfW, em ordem ao lançamento de uma linha de crédito, cuja assinatura estava prevista para um dia antes da explosão da crise das demissões do governo. Seria adiado para Outubro. No entanto, depois da assinatura, dificuldades surgiram por se achar que o projecto traduzia uma excessiva proximidade de Portugal à Alemanha.

Almeida Sampaio empenhou-se ainda no estreitamento de relações entre as associações empresariais dos dois países. A BDI alemã, que constatara o potencial exportador das PME portuguesas, sugerira a criação de um Fundo Financeiro, em que várias das principais empresas alemãs em Portugal estavam dispostas em participar. Importava estabelecer critérios de elegibilidade das empresas portuguesas, candidatas ao Fundo. Surgiram desinteligências, porém, que inviabilizaram o Fundo.

Outro domínio de intervenção da diplomacia económica do Embaixador Almeida Sampaio foi o das privatizações, nomeadamente da TAP, bem como o das capitalizações da banca, designadamente do Novo Banco, tentando envolver interesses alemães em Portugal. Contactou bancos alemães e as autoridades alemãs, mas sem resultados positivos.

Espaço importante ocupou também a atenção que votou à Auto-Europa, cuja continuidade esteve em causa no tempo da Troika. Visitou a sede da Volkswagen em Wolfsburgo e percebeu que o governo português não tinha ainda correspondido aos incentivos esperados pela Volkswagen, relativos a questões fiscais e custos de mão-de-obra. Deu disso conhecimento ao governo português, que se apressou a dar garantias, que transmitiu à Volkswagen. Convenceu o Ministro da Economia Pires de Lima a visitar a empresa na Alemanha, a quem foi explicada a necessidade de Portugal melhorar as estruturas de entrega e fornecimento, para que um novo modelo fosse atribuído a Palmela. O Embaixador Almeida Sampaio desenvolveu então contactos não só com a Volskswagen mas também com a Chancelaria, tentando envolver Merkel, e conseguindo ter papel relevante na concretização do investimento da Volkswagen em Portugal, o maior dos últimos anos.

Para além disso, estabeleceu contactos com a Leica, para não desistir de Portugal, levando-a a investir. E com o grupo Würth, que apostara no Portugal democrático, e que agora Almeida Sampaio trouxe a Portugal para aqui reinvestir. E ocupou-se também da cooperação em matéria industrial de defesa, procurando promover a reabilitação do Arsenal do Alfeite, visitando os estaleiros em Kiel, para conseguir que as fragatas e submarinos fossem reparados, não ali, mas em Portugal, mediante uma parceria entre a TKMS e o Arsenal do Alfeite, tornando-o complementar de Kiel e de Hamburgo, desde que se desse formação aos trabalhadores. Nesse sentido conseguiu que fosse enviada à Alemanha uma missão portuguesa.

Também no domínio da energia, apoiou a intenção portuguesa de João Pereira Coutinho de uma joint-venture na produção de biodiesel com a Siemens e a Thyssen. Desenvolveu contactos com a administração alemã, para que o projecto fosse analisado e apresentado a empresas alemãs. Convenceu os alemães da seriedade do projecto, mas não encontrou receptividade para a ideia de produzir energia limpa a partir de biomassa e de carvão.

A última parte do livro é dedicado à controvérsia entre a negociação da dívida ou uma saída limpa do resgate, sem recurso a novo programa cautelar. A Chancelaria achava que seria fatal para Portugal uma negociação ou flexibilização da dívida, defendida por alguns sectores portugueses, sobretudo socialistas, quando estávamos próximos de demonstrar capacidade de regressar aos mercados para nos financiarmos. Prova disso era a nossa taxa de crescimento, que fora a maior registada na Europa, em 2013. Em vez de um novo programa cautelar, como o da Grécia, a chancelaria alemã preferia que lançássemos um programa de atracção de investimentos e de privatizações, e uma saída limpa, à maneira da Irlanda. “O pior sinal que podes dar aos mercados é começares a dizer que não vais conseguir cumprir os objectivos do programa”, avisou o interlocutor do nosso Embaixador na Chancelaria, que elogiava a determinação e empenho do Primeiro-Ministro Passos Coelho.

Maria Luis Albuquerque, nova Ministra das Finanças, visitou Berlim no início da primavera de 2014. O crescimento aumentava e as exportações também, mas o endividamento nacional permanecia elevado. O Banco Central Europeu mantinha as suas orientações a respeito do rating do crédito a Portugal. Um programa cautelar era temido por Merkel, indesejado pelo nosso Embaixador, mas defendido por Victor Constâncio, Vice-presidente do BCE. Iria provocar aceso debate interno na Alemanha, merecendo críticas da Chanceler, do Bundestag e do Tribunal Constitucional: um programa cautelar seria sempre um resgate. Maria Luis Albuquerque foi disso avisada e aconselhada a não avançar para um programa cautelar. Por isso, se convenceu Almeida Sampaio que, se optássemos por uma saída limpa, os alemães ficar-nos-iam devedores, podendo nós apresentar em troca algumas pretensões.

Passos Coelho visitou Berlim poucos dias depois, e teve oportunidade de expor à Chanceler Merkel os dados favoráveis da evolução portuguesa: redução do défice, consolidação fiscal, crescimento das exportações e do PIB, aumento da produtividade. Só o FMI insistia na necessidade de um programa cautelar. Permanecia, contudo, o receio pela fiscalização do Tribunal Constitucional de algumas medidas do orçamento para esse ano. Merkel foi compreensiva e elogiosa: “Não é possível pedir mais a um país que já fez tanto” – comentou ela. E comprometeu-se a falar com Lagarde. A saída limpa seria a solução mais apreciada na Alemanha, como explicou Almeida Sampaio a Passos Coelho.

Passos Coelho frisou que seria ele, e mais ninguém, a tomar a decisão. Com a sustentabilidade da dívida pública, precisávamos de atrair investimento estrangeiro, e de para isso baixar o IRC. A saída limpa, sem novo programa, seria anunciada a 17 de Maio de 2014.

Quando o 10 de Junho desse ano foi comemorado em Hamburgo, o clima era de esperança renascida, deixando o nosso Embaixador com um optimismo, que só seria toldado pela resolução do BES em finais de Julho. Conseguíramos reconquistar a confiança e a credibilidade na Alemanha, disse ele a António Costa, ainda na Câmara de Lisboa, em dezembro desse ano de 2014. Já não éramos associados à Grécia, onde aliás, em janeiro de 2015, Tsipras ganhava as eleições. E isso era um capital único, tanto mais que a Alemanha opunha às pretensões de Tsipras de tudo mudar, a intocabilidade do princípio fundamental de que só haveria ajuda financeira em troca de condicionalidades.

Em matéria europeia a Alemanha sustentava que a coordenação reforçada, aprofundando a partilha de soberania e o mercado interno, ou seja, uma coordenação vinculativa do mercado laboral, do mercado dos produtos, e da administração pública, aumentaria a competitividade e a convergência europeia. Já a criação de um Fundo Monetário Europeu, defendido no relatório dos 5 presidentes (Comissão, Conselho, Eurogrupo, BCE e Parlamento Europeu) encontraria resistências, por parte dos países contrários a uma monitorização.

Mário Draghi salvara o euro, anunciando a disposição do BCE de comprar títulos de dívida pública, para criar maior confiança nas economias mais degradadas, combatendo assim a deflação e o desemprego. A Alemanha, pelo contrário, estava convencida que as vulnerabilidades económicas de alguns países se deviam a más políticas que conduziam ao aumento das dívidas. E por isso não cedeu um milímetro à Grécia nas negociações para um novo programa de ajustamento, defendendo a sustentabilidade da dívida e a manutenção do FMI. Tsipras ver-se-ia obrigado a ceder: perdeu o referendo, demitiu-se, voltou a ganhar eleições para pôr em prática o programa que jurara nunca adoptar, um terceiro programa de resgate. A Grécia não conseguira contaminar o resto da zona euro. Ficara provado que não havia alternativa ao programa de reformas. O que reforçava o exemplo de Portugal.

Quando Rui Machete, já Ministro dos Estrangeiros, visitou Berlim, para abordar com o seu homologo alemão o problema dos refugiados que chegavam à Europa e o papel de Ancara, a guerra da Síria e o envolvimento militar russo, a invasão da Crimeia, e o futuro da União Europeia e as reservas alemãs a uma “união de transferências”, era já claro o enorme respeito alemão pelo percurso de Portugal, para o qual muito contribuíra a acção diplomática do Embaixador Almeida Sampaio, por isso mesmo condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Alemão.

Compreende-se assim que termine estas suas memórias comentando a vitória nas eleições de 4 de Outubro de 2015, da coligação com quem colaborara: “Foi uma grande vitória. Depois de tudo por que Portugal passara, depois da austeridade e dos desentendimentos e demissões entre os seus dirigentes, a vitória da coligação, nem que fosse só por um voto, seria sempre uma grande vitória. Confesso que saboreei como se também fosse minha”.

Este livro constitui um precioso contributo para a compreensão dos difíceis anos em que Portugal viveu sob intervenção financeira internacional, depois de ter estado à beira da bancarrota, a que o levara o Governo Sócrates, e para o entendimento do papel crucial que, no âmbito europeu, desempenhou a Alemanha e, por isso mesmo, para a explicação do esforço diplomático português, corporizado pelo Embaixador Almeida Sampaio, antigo aluno desta Universidade de Coimbra, para virar a opinião alemã sobre Portugal, para ajudar o governo de Lisboa a conseguir da Alemanha o apoio económico e financeiro que lhe permitiu sair da crise com brevidade e de forma limpa, e para consagrar, naquele que é hoje o mais importante país da União Europeia, a ideia de Portugal como nação antiga e corajosa, capaz de enfrentar as tormentas e tempestades e de atingir a boa esperança.

Agradeço ao Embaixador Almeida Sampaio a leitura do seu livro, e a oportunidade de o apresentar nesta sua Universidade a que também pertenço “amoris causa”.


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