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Retratos contemporâneos


Capa do Thomaz de Mello Breyner – Relatos de uma Época, do final da Monarquia ao Estado Novo

Este volume tem o mérito de se integrar numa abordagem que valoriza a história como uma narrativa política e humana, versando sobre sujeitos, ações, ideias e vontades.

Manuel Braga da Cruz
Retratos Contemporâneos
Lisboa, Alêtheia Editores, 2019

José Miguel Sardica

José Miguel Sardica

Apresentação pública em Sessão no Grémio Literário, Lisboa, 30 de Setembro de 2019, 18:30h

Muito boa tarde. Gostava de começar por cumprimentar o Prof. Manuel Braga da Cruz e a Dr.ª Zita Seabra, autor e editora, pela Alêtheia, deste livro – Retratos Contemporâneos – agradecendo-lhes o convite muito simpático e honroso para fazer a sua apresentação, saudando também todo o público aqui reunido. É um desafio que não podia recusar, pela estima e consideração que tenho (que todos devemos ter) pelo autor desta obra. O Prof. Manuel Braga da Cruz dispensa apresentações, por ser de há muito uma figura eminente do pensamento, da cultura e da vida académica em Portugal, com uma larga formação humanista e interdisciplinar de filosofia, sociologia, ciência política e história. Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, onde dirigiu a revista Análise Social, foi Reitor da Universidade Católica Portuguesa durante 12 anos, de 2000 a 2012, e é sócio ou membro de diversas e importantes Academias na área das Humanidades. No que a mim toca, e peço licença por esta nota, a ele devo o convite, feito há mais de 25 anos, para ingressar na UCP, onde desde então me tem acompanhado naquilo que fui fazendo e escrevendo, com um interesse e uma amizade que aqui quero assinalar. Apresentar este livro é, portanto, uma forma pessoal de homenagem e de justo reconhecimento.

O volume que temos em mãos reúne 56 textos do Prof. Manuel Braga da Cruz, redigidos ou apresentados oralmente – em sessões de homenagem, em evocações, em lançamentos de livros, em cerimónias e circunstâncias diversas – sobre várias figuras da vida pública nacional e até internacional. O fio condutor desta coletânea está resumido na sua nota introdutória: porque “a história é feita por pessoas” (citei), cada um destes “retratos” (alguns em registo de instantâneos fotográficos, outros com a dimensão de pequenos ensaios), é uma janela, um ponto de mira, para a “compreensão do período” e dos contextos em que os biografados viveram ou vivem ainda, assim resultando, no seu todo (e cito), “um livro de história contemporânea”.

Devo, pois, começar por salientar que este volume tem o mérito de se integrar numa abordagem que valoriza a história como uma narrativa política e humana, versando sobre sujeitos, ações, ideias e vontades. Daqui decorre o interesse do método e da evocação biográficos usados. Fugindo ao saber compartimentado e ao jargão científico demasiado hermético, num registo factual rigoroso, mas que não fica longe do senso comum, a biografia é hoje vista como uma das formas mais naturais, mais imediatas e mais empáticas de escrever e de divulgar a história. Razão tinham já, a este respeito, grandes escritores e políticos do século XIX (quando a boa história era literatura e quando a literatura dava boa forma à história), como Thomas Carlyle, ao afirmar que “History is the essence of inumerable biographies”, Benjamin Disraeli, ao apelar “Read nothing but biography, for that is life without theory”, ou ainda Lytton Strachey, ao lembrar que a biografia era (e é) “the most delicate and human of all the branches of the art of writing”. Cada um dos nomes abordados neste livro sai humaniza- do; e, a partir de cada um deles, é possível ao leitor observar um tema, uma instituição, um tempo e, por junto, um ângulo da sociedade contemporânea, resgatada desta maneira ao domínio vago e impalpável das “forças anónimas” ou das “estruturas”. Cada figura aqui listada é uma “mundividência”, ou seja, uma oportunidade de abertura e de conhecimento para o leitor; e é igualmente, muitas vezes, – ponto a que regressarei mais adiante – uma forma de o próprio autor, o Prof. Manuel Braga da Cruz, nos falar de si, das suas ideias e dos seus valores.

Dos 56 textos que compõem o livro, 6 deles não são sobre figuras individuais, mas sobre instituições (os Combatentes de Portugal, as Forças Armadas Portuguesas, a Fundação Luso-Americana, os Reis de Portugal, a Sé Velha de Coimbra e a Verbo Editora). De entre as 50 figuras invocadas, a maioria já morreu, embora alguns dos desaparecidos ainda tenham podido ler ou ouvir os textos que se lhes referiam (casos de Alexandre Soares dos Santos, Daniel Serrão, Inocêncio Galvão Teles, Maria Barroso ou Sebastião Alves). 20 dos “objetos de estudo” do Prof. Manuel Braga da Cruz estão vivos, e alguns deles, aliás, para nosso gosto, nesta sala. Dos textos aqui reunidos, os mais antigos são de 1994, os mais recentes de 2018. Isto significa que entre os seus muitos afazeres académicos e de investigação e escrita, o autor desta obra tem sido, desde há anos, um observador contínuo e arguto dos muitos notáveis que foram pensando, intervindo e fazendo acontecer nos mais diversos setores da vida pública nacional, e também internacional (em vista dos textos sobre os Papas Paulo VI e João Paulo II aqui inseridos).

Aos olhos do leitor desfilam, numa arrumação impressiva, 12 nomes da política, 11 da academia, 8 da Igreja, 5 da cultura ou das artes, 5 da economia e da vida empresarial, 2 da educação e 1 das ciências da vida. A estes somam-se 6 figuras que, pelo recuo temporal ou pela importância singular, poderemos considerar já históricas: o rei D. Miguel, Francisco José de Sousa Gomes, Alfredo da Silva, Marcelo Caetano e os dois Papas acima citados. É óbvio que estas divisões não são estanques, porque os homens ou mulheres referidos nestas páginas olharam a vida e agiram no mundo a partir de mais do que um ângulo ou afiliação. Cada leitor poderá encontrar outra arrumação e descobrir até várias ligações ou similitudes. Por exemplo: 24 das figuras estudadas ligaram-se de alguma forma à Universidade Católica Portuguesa, um facto que, de passagem, mostra o quanto a UCP foi obra, ou suscitou interesse e apoio de múltiplas vozes da sociedade civil, e não apenas do meio universitário.

O conteúdo do livro e dos seus textos não é facilmente sumarizável. Dir-se-ia que estamos diante de um verdadeiro “Quem é Quem” de notabilidades, muitas delas, senão todas, merecedoras do epíteto de “senadores” da pátria. Em vez de as nomear uma a uma, farei um exercício de leitura diferente. Existem hoje softwares de análise de texto de cujas varreduras saem as palavras ou as ideias mais recorrentemente utilizadas. Não cometi a heresia de escalpelizar estas vidas – e vidas ilustres – sujeitando-as à vacuidade de um simples algoritmo. Ainda assim, à medida que fui, que vamos lendo o livro, saltam aos olhos as virtudes que distinguiram os muitos nomes referidos, convertendo toda a obra numa narrativa ética e de exemplos. A fragmentação do todo em pequenas biografias não impede a unidade do que, consciente ou inconscientemente (o Prof. Manuel Braga da Cruz nos dirá), o autor quis salientar. E assim, numa lista não exaustiva e sem hierarquização, as palavras leitmotiv deste livro são: abnegação, acutilância, conciliação, coragem, dedicação, determinação, empenhamento, esforço, exemplo, expansão, firmeza, honestidade, humanidade, inconformismo, independência, iniciativa, inovação, inteireza, inteligência, intervenção, lucidez, mérito, moderação, personalidade, resistência, responsabilidade, serviço, solidariedade, sucesso ou vida. Todas estas características de ser e de agir da meia centena de recenseados deram corpo a outras tantas vozes defensoras ou representantes de um ideal de sociedade e de Polis política assente na fé e no catolicismo, na paz e na justiça, na família e no bem comum, na verdade e na evangelização pela cultura e pela ciência, na liberdade e na vitalidade da esfera civil e numa verdadeira democracia, de que o Estado deve ser um mecanismo auxiliar e a dignidade da pessoa humana o fim último.

Referi há pouco achar que o autor também nos fala de si nas páginas deste livro; isto porque o Prof. Manuel Braga da Cruz coligiu “retratos contemporâneos” ao mesmo tempo que se revela, a pouco e pouco, num autorretrato que será importante levar em linha de conta quando um dia se escrever um livro sobre o autor deste livro. Há nos textos notas de registo pessoal e recordações autobiográficas, desde os tempos de estudante do Prof. Manuel Braga da Cruz, em Roma, até aos bastidores de atos ou cargos mais atuais por si desempenhados. Conheceu e foi amigo de muitos daqueles de quem fala – circunstância que, saliente-se, nunca converte estas biografias em panegíricos, porque nelas nunca se confunde o elogio com a lisonja. A independência, a franqueza e a honestidade levam-no, até, a discordar de quem homenageia – como acontece em relação a Manuel de Lucena, acerca das interpretações historiográficas sobre a natureza político-ideológica do Estado Novo, ou com Manuela Silva, acerca do peso e mecanismos estatais na economia.

Este livro é um estudo polifacetado das elites portuguesas ao longo das décadas mais recentes, ao mesmo tempo que está longe de ser um repositório de elitismos.

No todo – e era isso que eu gostaria de salientar – o Prof. Manuel Braga da Cruz vai decantando e afirmando a sua mundivisão pessoal à medida que passa em revista vidas alheias, e que com elas “dialoga”, comentando escritos ou ideias dos que refere. Se o leitor ler com atenção, por exemplo (a seleção é minha) os textos sobre António Ramalho Eanes, Diogo Freitas do Amaral, José Miguel Júdice ou Pedro Santana Lopes, fica a conhecer o que o próprio autor pensa acerca da democracia portuguesa pós-1974, dos seus desafios, méritos ou imperfeições, e dos caminhos legais e institucionais para a reforma e melhoramento do sistema político vigente. Se ler o texto sobre D. Miguel, lá encontra um certo entendimento sobre as raízes sentimentais da contemporaneidade lusa, bem como a tese, que ajuda a explicar a debilidade histórica da sociedade civil portuguesa, segundo a qual (e cito), “o liberalismo foi, [em Portugal] como noutros países latinos, um elitismo”. Se ler os textos sobre São João Paulo II, D. José Policarpo, o Pe. João Seabra ou Mário Pinto, ali vislumbra a denúncia do relativismo ético, do individualismo hedonista, do laicismo agressivo, e a defesa dos valores religiosos, bem como da família e da escola (por esta ordem) como elementos fundacionais de uma educação aberta, única maneira de formar os mais novos num (cito) “entendimento evangélico da liberdade”. Se ler o texto sobre o Pe. Manuel Antunes – um autêntico diálogo de convergência entre o biógrafo e o biografado – ali recolherá a visão, que é tanto de um como de outro, de uma sociedade que deve ser livre, forte, dinâmica e inovadora, face a um Estado que tem sido demasiado centralizador e asfixiante, e que urge ser redimensionado numa lógica de subsidiariedade e de supletividade, como um instrumento da sociedade civil, deixando de existir como um fim em si mesmo, politicamente autista, financeiramente autofágico e moralmente invasivo. Só um Estado ao serviço do bem comum – ou seja, citando o Prof. Manuel Braga da Cruz (e não o Pe. Manuel Antunes), “um Estado de todos e não apenas de alguns, tendo a verdade como fundamento, a justiça como regra, o amor como motor e a liberdade como ambiente” – servirá bem a “democracia”, a qual, nas palavras do biógrafo (em sintonia com as ideias do biografado), deve “desburocratizar, desideologizar, desclientelizar e descentralizar” a vida pública. Desnecessário será enfatizar o quanto tudo isto adivinha a influência da chamada Doutrina Social da Igreja, o quanto tudo isto exige uma efetiva liberdade de ensino e de educação, e o quanto tudo isto, se assegurado, dinamizaria uma sociedade civil robustecida, consciente e empreendedora, no civismo, no conhecimento, na economia ou no bem-estar. Finalmente, se o leitor ler o ensaio sobre Mons. José Galamba de Oliveira intuirá como qualquer análise dos impasses que subsistem em Portugal e dos caminhos de reforma que urge acelerar tem de partir da história – da história do século XX, que o Prof. Manuel Braga da Cruz ali resume como um “século vertiginoso de mudanças” que continuam a condicionar o hoje e o amanhã.

Estes Retratos Contemporâneos não são apenas um “livro de história”, feito de uma série de folhas esparsas e aqui reunidas em 2019, mas também um espelho, ricamente diverso e humano, do país, da sociedade, da identidade que fomos sendo desde há mais de cem anos. É uma obra de autor, em que o autor se revela, ao mesmo tempo que vai falando sobre outros. E esses outros – os 50 nomes aqui reunidos, mais as pessoas que fizeram as 6 entidades coletivas evocadas nestas páginas – formam um conjunto de exceção. Foram, e são, gente ilustre, oriunda dos mais diversos setores de uma sociedade civil tantas vezes negligenciada na história ou na política e nos media atuais. Foram, e são, gente que soube estar – que soube estar na vida, nas relações de amizade, nas instituições e nos cargos, sem alardeio ou ruído, antes com a base ética, a cultura humanista e a abnegação de serviço que fez, de todos, exemplos de liberdade, de independência e de elevação.

Por isso – e assim concluo – este livro é um estudo polifacetado das elites portuguesas ao longo das décadas mais recentes, ao mesmo tempo que está longe de ser um repositório de elitismos. Passa em revista pessoas e obras que têm, cada uma, alguma coisa a ensinar aos leitores de hoje e aos vindouros. Folheia-se como uma revista – quase como uma revista de Homens Livres, para citar o célebre título que uniu seareiros e integralistas contra o falido status quo nacional no ocaso da República, na década de 1920. E, por tudo isto, é uma obra que vale a pena ler. Muito obrigado ao seu autor e à editora que no-lo disponibilizam e, por mim, faço apenas votos de que gostem tanto destas páginas, redigidas com assinalável rigor académico, sobriedade estilística e empatia humana, como eu pessoalmente gostei.


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