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Será a Meritocracia Justa?


Capa do Livro A Tirania do Mérito

Sandel afirma que o ressentimento populista tem raízes e é justificado pelo falhanço das elites democráticas.
Tradução Maria Cortesão Monteiro

Michael J. Sandel
A Tirania do Mérito: O Que Aconteceu ao Bem Comum?
New York: Farrar, Straus and Giroux, 2020

Marc Plattner

Marc Plattner

Chairman IEP; International Advisory Board; Fundador and co-editor, Journal of Democracy

Este livro, escrito de forma inteligente e astuta pelo teórico político Michael Sandel, junta análise sociopolítica com teoria política académica. É enquadrado por um argumento que é agora comum, de que o Brexit e a eleição de Donald Trump foram resultado de uma reacção populista entre os perdedores da globalização. Embora deplore o nativismo, a misoginia, e o racismo que frequentemente acompanham o populismo, Sandel afirma que o ressentimento populista tem raízes e é justificado pelo falhanço das elites democráticas. Ele culpa essas elites em particular por promoverem um ethos que leva os bem sucedidos a acreditar que merecem o seu sucesso, dando assim espaço à emergência daquilo a que ele chama de “tirania do mérito.”

Sandel sugere que esta exaltação do mérito é um fenómeno relativamente novo — um produto das últimas quatro décadas, iniciado pelas políticas de mercado livre de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Mas não são apenas os conservadores que são culpados por esta tendência. Há uma dura crítica a Bill Clinton, Tony Blair, e Barack Obama, pela sua ênfase da igualdade de oportunidades e pela sua confiança na “retórica da ascensão” (p. 59), de promessa aos cidadãos sucesso se eles “trabalharem muito e cumprirem as regras” (p. 67).

Sandel descreve as décadas pós-1945 como um período idílico de solidariedade civil. De acordo com a sua narrativa, só os últimos 40 anos é que trouxeram o triunfo da “húbris meritocrática” (um epíteto que provavelmente se repete neste volume com mais frequência do que “aurora de dedos rosados” na Odisseia de Homero). Os mais prósperos, que pensam agora que conquistaram — e portanto merecem — o seu sucesso, adoptaram uma atitude condescendente face aos seus concidadãos mais pobres. Isto, por sua vez, incita os ressentimentos que alimentam as chamas do populismo.

Sandel está certo em levar a sério a situação da classe trabalhadora branca nas democracias avançadas. Nos Estados Unidos, os trabalhos de manufactura têm desaparecido por causa da globalização, e os brancos da classe-trabalhadora têm se saído mal em termos de ganhos salariais e em vários outros indicadores (especialmente “mortes por desespero” devido a suicídio, toxicodependência, e alcoolismo). No entanto, a emergência do populismo tem sido um fenómeno global, atingindo países como a Polónia, Perú, e as Filipinas, onde o seu crescimento não pode ser atribuído à globalização ou à perda de trabalhos de manufactura. As causas mais profundas da insatisfação populista que são indubitavelmente uma combinação de factores económicos, sociológicos, e culturais, não são fáceis de compreender.

Além disso, pelo menos nos Estados Unidos, a disjunção entre a era pós 2ª Guerra Mundial e as décadas mais recentes não é de todo tão acentuada como Sandel faz parecer. A Prova A no caso de Sandel — o tema com que o livro se inicia e que reaparece várias vezes — é a competição crescente para a entrada em universidades de elite. A percentagem de candidatos rejeitados destas instituições tem, de facto, aumentado, mas a competição para admissão em universidades de topo já era intensa no início dos anos 60. No fundo, lutar por sucesso material é algo que está profundamente enraizado nos Estados Unidos, tal como já foi reconhecido tanto por literatura séria como pela cultura popular. Basta citar o julgamento feito por Alexis de Tocqueville na década de 1830: “Não conheço nenhum país…em que o amor pelo dinheiro tenha ganho mais força nos afectos do homem, ou onde tenha expressão mais profundo desdém pela teoria da permanente igualdade de propriedade.”

Será a Meritocracia Justa?Sendo assim, porque é que esta duradoura predisposição americana subitamente deu azo à “húbris meritocrática”? Sandel nunca clarifica isto muito bem. No entanto, tendo em conta que regressa repetidamente à arena da educação superior, o centro da sua preocupação parece ser avaliação e selecção nas escolas. Há até um capítulo entitulado “Credencialismo: O Último Preconceito Aceitável.” Embora seja verdade que as mortes por desespero são prevalentes maioritariamente entre aqueles que não têm diplomas, isto não quer dizer que a intensa competição entre crianças da classes média-alta para entra- rem nas universidades mais prestigiosas seja a causa dos males da classe trabalhadora.

O seu argumento faz pontaria não apenas à tirania da meritocracia mas ao mérito em si

Sandel tenta criar essa ligação, argumentando que uma sociedade que aceite o mérito como padrão acaba inevitavelmente por gerar nos que se encontram no topo uma atitude cruel e condescendente face àqueles que têm menos sucesso, bem como uma insuficiente consideração pelo bem comum. O seu argumento faz pontaria não apenas à tirania da meritocracia mas ao mérito em si. De acordo com a sua visão, aqueles que colhem mais frutos (ou que são aceites nas universidades de elite) normalmente acreditam que o seu sucesso se deve à sua própria capacidade e trabalho, mas isso não significa que mereçam essas recompensas. E isso não acontece porque o azar pode intervir e negar às pessoas a recompensa que a sua capacidade e esforço poderia noutros casos ter alcançado, ou porque a sorte pode premiar quem seja menos habilidoso ou se tenha esforçado menos. É porque a noção de que capacidade superior ou trabalho mais duro merecem maior recompensa está errada.

Será a Meritocracia Justa?Porquê? Aqui Sandel recorre ao argumento do reconhecido teórico político do século XX, John Rawls, que defende que as capacidades com que as pessoas nascem dependem da sorte na lotaria genética e, portanto, não conferem qualquer tipo de pretensão justa ao usufruto dos seus frutos. Além disto, Rawls defende que o mesmo se aplica às qualidades que levam algumas pessoas a trabalhar mais que outras. Nas palavras de Rawls: “A afirmação de que um homem merece o carácter superior que lhe permite fazer o esforço de cultivar as suas habilidades é igualmente problemática; pois o seu carácter depende em grande parte de uma família afortunada e de circunstâncias sociais pelas quais ele não pode reivindicar qualquer crédito. A noção de merecimento parece não se aplicar nestes casos” (p. 130).

Tendo em conta que a distribuição tanto do talento como do esforço é “arbitrária de um ponto de vista moral”, aqueles que as possuem em maior quantidade não têm qualquer reivindicação moral aos benefícios suplementares que eles trazem (p. 130). Sendo este o caso, Rawls pode construir uma visão da sociedade justa em que “as desigualdades sociais e económicas devem ser geridos de forma a trazerem o maior benefício aos mais desfavorecidos.” Tendo em conta que os indivíduos não merecem os seus talentos naturais, este podem ser colectivizados através da redistribuição de rendimentos e usados para melhorar a situação dos pobres.

Sandel reconhece que, apesar de haver entre académicos um crescente consenso que nega a justiça das recompensas baseadas no mérito, os filósofos não foram bem sucedidos em desmontar “a convicção amplamente aceite de que aquilo que as pessoas ganham deve reflectir aquilo que elas merecem” (p. 134). Esta visão é particularmente forte nos Estados Unidos (Sandel cita uma sondagem em que os americanos esmagadoramente escolhem trabalho árduo como factor mais importante para subir ou ir longe na vida). Mas esta visão parece também prevalecer no resto do mundo. Sandel nota que, por exemplo, entre os estudantes a quem deu aulas na China na última década, “a noção de aqueles que prosperam merece o dinheiro que ganham está profundamente enraizada” - um ponto de vista que ele atribui à “sociedade de mercado hiper competitiva” do país (p.62).

Sandel lamenta que a maioria das pessoas se objectem a recompensar o mérito apenas se virem a competição como injusta - isto é, se não houver igualdade de oportunidades real. Talvez por esta razão, a sua apresentação muitas vezes decorre de uma forma curiosa, de dois passos. Primeiro, o autor descreve uma arena competitiv manchada de injustiça. Por exemplo, começa o livro com uma discussão do escândalo de Março de 2019, em que foi descoberto que vários pais abastados tinham pago subornos para assegurar a admissão dos seus filhos nas principais universidades americanas. Sandel, evidentemente, considera esta fraude deplorável, e seguidamente cataloga outras formas em que a competição para admissão nas universidades é injusta, incluindo as vantagens dadas a atletas ou a filhos de alumni ou de grandes dadores. O passo seguinte, no entanto, é concluir que o problema mais profundo da meritocracia não se encontra no falhanço em nivelar o campo de jogo mas no padrão de mérito em si mesmo e na cultura de “esforço” e “classificação” que este fomenta. De forma semelhante, ele oferece-nos uma análise que demonstra que os americanos pobres beneficiam muito pouco da mobilidade social, mas depois conclui que mesmo que oportunidade genuinamente igual pudesse ser atingida, um sistema que aloca retornos financeiros tendo por base talento e esforço seria na mesma injusto.

Apesar da crença profunda dos americanos de que o seu país oferece mobilidade ascendente aos talentosos e trabalhadores, a ideia de que os filhos dos ricos têm uma vantagem injusta na busca pelo sucesso é também um tema frequente na cultura americana. Um oponente político do Presidente George H. W. Bush, descendente de uma família rica e politicamente proeminente, gracejou: “Ele nasceu na terceira base mas achou que tinha batido um triplo.” No entanto, de acordo com a perspectiva de Sandel, esta graça teria de ser reformulada para algo como: “Ele bateu um triplo e achou que merecia estar na terceira base.” É improvável que esta versão faça sentido à maioria dos americanos, que pensam que alguém que bateu um triplo têm o direito absoluto a estar na terceira base.

O que é mais distintivo da crítica de Sandel à meritocracia é que este se foca menos na injustiça do que nos seus feitos psicológicos alegadamente danosos. A distribuição das recompensas de acordo com o mérito gera “atitudes morais desagradáveis”, diz o autor, - “arrogância entre os vencedores e humilhação entre os perdedores” (p. 150). Ao permitir que os vencedores pensei que são responsáveis pelas suas próprias conquistas, fomenta vaidade. Pois “quanto mais pensarmos em nós próprios como self-made e auto-suficientes, mais difícil é aprender gratidão e humildade” (p. 14). Simultaneamente, os menos bem sucedidos sentem-se denegridos. Os trabalhadores sentem que as suas contribuições não são apreciadas, “erodindo a sua posição e estima sociais” (p. 29). Sandel receia que, se uma sociedade for verdadeiramente meritocrática, os seus cidadãos em pior condição sejam esmagados pelo sentimento de que não têm mais ninguém para culpar a não ser eles mesmos.

No entanto, em qualquer sociedade moderna, os bem sucedidos (especialmente se forem ricos e self-made) são susceptíveis de ter noções inflacionadas dos seus próprios méritos, e os mais pobres mais prováveis de se sentirem desprezados. A menos que imponhamos rendimentos iguais para todos, é difícil ver como pode isto ser evitado. Mas isto não implica necessariamente que os bem sucedidos sejam insensíveis em relação aos desfavorecidos. Tal como o próprio Sandel escreve, o facto de os seus estudantes de Harvard serem “meritocratas convictos” não faz deles “egoístas ou pouco generosos.” Muitos dedicam uma grande quantidade de tempo a serviço público e outras obras de caridade” (p. 61).

Será a Meritocracia Justa?De qualquer forma, qual a razão para pensar que nas últimas quatro décadas estas coisas pioraram radicalmente? Na verdade, a sanção pública para dar recompensas extras aos ricos praticamente desapareceu. A propriedade ou as qualificações académicas para votar foram há muito rejeitadas (John Stuart Mill não só se opôs à extensão do sufrágio a pessoas analfabetas e receptores de apoio social, como ainda defendeu que as classes educadas e profissionais deviam ter vários votos). E a preocupação com não ferir a auto-estima dos menos bem sucedidos é uma prioridade crescente nas escolas e em todo o lado. É certo que a competição feroz para as posições de topo se mantém, mas esse é o resultado de paixões humanas que seria impossível extirpar.

Continua a ser verdade, no entanto, que a dúvida acerca da justiça da distribuição das recompensas nas sociedades de mercado se mantém um problema sério para os defensores da democracia liberal. Sandel tem razão em chamar a atenção para o facto de que os principais campeões dos mercados livres tal como Friedrich Hayek (e podia também ter acrescentado Milton Friedman) abandonaram a tentativa de demonstrar que a distribuição das recompensas no capitalismo é justa. Em vez disso, eles basearam as suas defesas do mercado livre no fundamento de que este promove liberdade individual e prosperidade de forma geral. Durante o início da era pós-Guerra Fria, em que a fé nos mercados estava no seu auge, a ausência de uma defesa forte da justiça do capitalismo não pareceu ser tão consequente. Mas esse período já acabou, e este livro é apenas um dos muitos sinais de que o debate sobre a igualdade se está a intensificar. Nos próximos anos, o destino das sociedades livres pode muito bem depender de se os seus defensores conseguem ou não oferecer uma explicação mais profunda e mais persuasiva de porque é que não são injustos.


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