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Winston Churchill, o pintor


Capa do Livro Painting as a Pastime

Painting as pastime não é uma mera reflexão sobre pintura, mas um guia para a mente de um dos mais marcantes líderes políticos da História.

Winston S. Churchill
Painting as a Pastime
Unicorn Publishing Group, 2013

Pedro Gomes Sanches

Pedro Gomes Sanches

Doutorando IEP

Esta breve reflexão que adiante se apresenta, num português mais popular, bem que se poderia chamar “velhos são os trapos”.

Winston Churchill escreveu um pequeno texto, em 1915, chamado Painting as pastime, naquilo que, prosaicamente, poderíamos descrever como considerações sobre a sua experiência enquanto pintor. Não uma experiência de longos anos, que ali ele sintetiza, mas antes uma experiência iniciada precisamente nessa altura: o relato, em directo, da experiência do início.

Porém, olhar e tratar este texto de Winston Churchill à boleia do seu título e do propósito que o mesmo induz, como uma mera reflexão sobre a pintura, é o mesmo que tomar a nuvem por Juno. Painting as pastime não é uma mera reflexão sobre pin- tura, mas um guia para a mente de um dos mais marcantes líderes políticos da História. É claro que também é sobre pintura, e sobre a sua experiência com ela. Mas a pintura, tal como aqui nos é apresentada, é, para lá de objecto, também metáfora de liderança e porta aberta para uma filosofia de vida.

Tema muito interessante para analisar a partir deste texto poderia ser o estado de alma, as agruras psicológicas, em que Churchill, aquando do abandono do Almirantado em plena I Guerra Mundial depois do traumático episódio de Dardanelos, estava mergulhado. Mas isso seria uma abordagem excessivamente contingencial. Interessante seguramente, mas redutora.

Porquê redutora? Porque há neste texto informação relevante para compreender o olhar que Churchill tem da liderança e, mais fundo, do próprio sentido da vida. Mais: este texto tem, no que é possível descortinar, um valor potencialmente explicativo da verve de Churchill, da sua estrutura pessoal; um valor descritivo da sua maneira de ser.

Surpreendente? Num homem tão literariamente prolixo e competente, encontrar essas pistas tão estruturantes num texto de apenas 16 páginas? Sobre pintura?

Não obstante, aqui não se trata tanto de valores políticos ou morais – se é que é possível encontrar neutralidade política e moral nos valores – mas valores atitudinais, pessoais. O que ali se lê é, porém, um elenco de características pessoais. A defesa da Liberdade, a luta encarniçada contra as tiranias, as preocupações sociais herdadas de Disraeli, foram já valores políticos bastamente discutidos, mas não é disso que se trata. O humor, a resiliência, a afeição aos prazeres do álcool e dos charutos e o temperamento irrascível também, às vezes mais como fait-divers que como características essenciais de personalidade, mas também não é disso que se trata. O que a partir deste texto podemos retirar são lições mais profundas, mais estruturantes da personalidade de Sir Winton Churchill.

Pouco claro? Acrescentemos-lhe então um conjunto de outras considerações. Este texto, escrito em 1915, quando Churchill tinha pouco mais que 40 anos e ele próprio nos apresenta essa fatalidade, como um tempo quase que já fora do tempo – “Even at the advanced age of forty!” – é especialmente relevante se considerarmos o que já tinha feito até aqui (por exemplo combater em 4 continentes diferentes – África, América Latina, Ásia e Europa, sido preso e escapado – ou ter tido altas responsabilidades de comando – o Almirantado na I Guerra Mundial) e o que estaria ainda por vir, marcando com esses acontecimentos vindouros, de forma indelével, a imagem de si e a História do Ocidente. Será possível encontrar nesta reflexão sobre a pintura traços essenciais de personalidade que o levaram, a partir de 1939, com 65 anos, a tornar-se uma das mais incontornáveis figuras da história política do Sec. XX?

Comecemos um pouco antes do princípio propriamente dito; na decisão de começar. Churchill fala-nos de audácia. Se “you are inclined – late in life though it be – to reconnoitre a foreign sphere of limitless extent, then be persuaded that the first quality that is needed is Audacity”. E o que é a audácia aos olhos de Churchill? O caminho ortodoxo para a pintura – e quase sempre para todas as outras actividades humanas – é o de uma alta exigência, disciplina e anos e anos de treino. Ante a impossibilidade de cumprir essa ortodoxia, que nos resta? Que lhe restava? Abandonar o ensejo, ou atalhar caminho? Churchill não era homem de desistências, e esse atalho, sendo essa a opção – para Churchill a única que faz sentido e aquela que ele incentiva – é o da audácia. Porém, se é normal esperar tal atitude num homem intrépido e seguro de si como Churchill, este tempera a audácia com “modesty and humbleness”. “We must not be too ambitious. We cannot aspire to masterpieces. We may content ourselves with a joy ride in a paint-box. And for this Audacity is the only ticket.”

É o caminho, mais que o final a alcançar, que o levanta e põe em marcha. A necessidade de não parar. É a Vida que ele ama. O real não tem de ser belo para que a pintura seja boa, diz

Churchill classifica a pintura como um “wonderful new world of thought and craft”. Há nesta frase 3 elementos centrais para compreender o que se segue: o encanto quase frenético da descoberta (wonderful new world), guiado pelo pensamento, e a importância do tacto, do contacto próximo, do manuseamento (craft). Mais: há na descrição que Churchill faz deste passatempo uma insaciável busca de motivos para animar o cérebro, uma sofreguidão por novas aprendizagens, uma predisposição sempre presente para se desinstalar e sair da zona de conforto e uma indomável necessidade de sublinhar a ideia de independência. Se não vejamos a descrição do prémio maior: “Inexpensive independence, a mobile and perennial pleasure apparatus, new mental food and exercise, the old harmonies and symmetries in an entirely different language, an added interest to every common scene, an occupation for every idle hour, an unceasing voyage of entrancing discovery”.

Porém, tomada a decisão de experimentar, mobilizada a audácia para o efeito e moderada a mesma com a humildade necessária, como enfrentar a angústia bloqueadora do início? Como alcançar a libertação do primeiro passo?

“My hand seemed arrested by a silent veto.” Mas então, “Splash into the turpentine, wallop into the blue and the white, frantic flourish on the palette — clean no longer — and then several large, fierce strokes and slashes of blue on the absolutely cowering canvas.” [a citação no original seria desnecessária, não fosse este um exemplar de dote linguístico que vale sempre a pena admirar] A ajuda de alguém, para desbloquear a paralisia, pode ser o passo necessário para seguir em frente. No caso, da dotada esposa de Sir John Lavery. Oh, as mulheres e o seu poder criador...

Como referia no início, é impossível olhar para este texto de Churchill como uma mera reflexão sobre pintura. Como alguém dizia, todos os textos são autobiográficos. E, acrescento eu, nenhum texto de Churchill, autobiográfico, pode escapar à liderança e à guerra. E dúvidas havendo: “painting a picture is like fighting a battle; and trying to paint a picture is, I suppose, like trying to fight a battle. It is, if anything, more exciting than fighting it successfully. But the principle is the same. It is the same kind of problem, as unfolding a long, sustained, interlocked argument.” Não é, portanto, de estranhar a forte imagem escolhida para descrever o efeito da mão intrépida de Mrs. Lavery: “No evil fate avenged the jaunty violence”.

Há nesta passagem uma desmitificação do acto inicial, após a sua consumação. Um apelo determinado à acção. E sobretudo uma acção que não se tolde, seja pela idade ou pela falta de preparação ortodoxa. Um homem com o percurso de Churchill – tendo passado ao lado de um percurso escolar convencional e bem-sucedido, que ousa experimentar o que nunca tinha experimentado antes dos 40 anos, e a quem ainda faltava depois disso uma nova vida – parece credível neste repto.

Gostaria agora de salientar cinco aspectos, especialmente significantes para alguém que como eu vem de uma formação e com um percurso profissional na gestão: i) o erro e a tolerância ao erro, ii) o thinking out of the box, iii) o antagonismo entre planeamento estratégico (strategic planning) e construção estratégica (crafting strategy), iv) o valor da experiência, e v) a importância do todo e do detalhe.

Não há possibilidade de sucesso – ou de qualquer tentativa de concretização – sem audácia com uma boa dose de humildade, já vimos. Mas isso não é possível atingir com medo de errar. E nisso a tolerância ao erro é um aspecto essencial. A derrogação do medo de errar, como mote para a acção, já que o erro paralisa. “First of all, you can correct mistakes much more easily. One sweep of the palette-knife ‘lifts’ the blood and tears of a morning from the canvas and enables a fresh start to be made” Será abusivo recordar a sua célebre frase “Sucess is not final, failure is not fatal: it is the courage to continue that counts?”

“Secondly, you can approach your problem from any direction. You need not build downwards awkwardly from white paper to your darkest dark. You may strike where you please, beginning if you will with a moderate central arrangement of middle tones, and then hurling in the extremes when the psychological moment comes. Out of box: you can approach your problem from any directions”. Um certo culto, como já vimos e que aqui é reforçado, para a heterodoxia parece ser uma marca incontornável de Churchill. É possível ler esta passagem pensando exclusivamente em pintura? Thinking out of the box é uma das mais repetidas recomendações para a resolução de problemas. Quando em 1940 – 35 anos depois deste texto – sozinho, quer do ponto de vista das alianças externas, mas também internas, é incentivado a assinar uma paz com Hitler, com Mussolini como mediador, e recusa, estará a pensar dentro da caixa?

Um célebre investigador canadiano da área da gestão, Henry Mintzberg, num marcante livro de 1994 – The Rise and Fall of Strategic Planning – afirma, não sem ironia, qualquer coisa como planning is like ritual rain dance, it has no effect on weather but we are dancing much better. Em alternativa, e num registo mais sério, aponta o crafting strategy, como um oleiro a moldar a sua peça, como a melhor forma de endereçar aos projectos a resposta mais eficaz. Esta corrente fez escola. Não poderemos dizer, num rasgo de ousadia, que Churchill, a propósito da pintura, já tinha sublinhado essa necessidade de atenção permanen- te, de adaptação constante, de correcção disponível, no curso da acção? “Lastly, the pigment itself is such nice stuff to handle (if it does not retaliate). You can build it on layer after layer if you like. You can keep on experimenting. You can change your plan to meet the exigencies of time or weather.”

Tudo isto alicerçado na experiência. Na prática. O estímulo que deve ser cumprido pelo menos “before you die”. Porém, a dimensão da experiência não se esgota na valorização da experiência própria. A observação dos mestres do passado, o olhar atento à forma como esses mestres resolveram os problemas – similares aos seus – e a aprendizagem com as suas soluções são parte essencial da experiência. É de pintura que estamos a falar? Seguramente, mas nunca exclusivamente. “When we look at larger Turners (...) we must feel in presence of an intellectual manifestation the equal in quality and intensity of the finest achivements of war-like action, of forensic argument, or of scientific or philosophical adjudication”. Churchill nunca fala só de pintura.

E dúvidas havendo, a forma como nos descreve a necessidade de – na pintura... – olhar e conhecer o todo, sem nunca perder a capacidade de ver detalhadamente cada parte é a partir do olhar de um Commander-in-Chief que tem de “to make a good plan for his army and, secondly, to keep a strong reserve”. Mesmo que depois, para reforçar a necessidade de atenção, a capacidade de apreender as múltiplas gradações do que parece indistinto, use a “blank wall of a house” de Cézanne. É isto mais instrumental que sagacidade? É isto mais arte que natureza humana?

Winston Churchill, o pintorUma penúltima nota: sobre a memória. A palavra memória é usada sete vezes neste texto. Churchill enaltece-lhe a importância. É impossível não lembrar aquele discurso em Westminster, em Abril de 1904, em que a memória lhe falhou e o fracasso o marcou. A descrição deste episódio, feita no Capítulo 7 de “Fator Churchill” por Boris Johnson, é hilariante e inspirada, mas é sobretudo esclarecedora sobre como tudo o que Churchill aqui escreve tem um alcance muito maior que a mera experiência de pintura.

Finalmente uma nota sobre a Vida. Sobre a sofreguidão de viver intensamente o que a vida lhe traz; e o que nela procura. A insaciabilidade face ao tanto que há para pintar e o ter tão pouco tempo para o fazer, a referência ao quase milenar Matusalém. Tudo em Churchill – não bastassem aqueles 40 anos, para muitos o início do fim, para Churchill o fim do início – sublinha a não de- sistência – never surrender? – deste homem. É o caminho, mais que o final a alcançar, que o levanta e põe em marcha. A necessidade de não parar. É a Vida que ele ama. O real não tem de ser belo para que a pintura seja boa, diz. E acrescenta: os lugares artificialmente belos podem até ser obstáculos. “Now I am learning to like painting even on dull days. But in my hot youth I demanded sunshine”. Churchill estava amadurecido para o resto da sua vida. If you’re walking through hell, keep going?


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