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A guerra na África Austral


A Guerra na África Austral

Miguel Júnior procura os fundamentos políticos da estratégia total e remonta ao período da colonização Africander e britânica.

Miguel Júnior
A Guerra na África Austral
Análise da Estratégia Total Nacional da África do Sul 1948/1994
Mercado das Letras, 2017

Francisco Proença Garcia Francisco Proença Garcia

Professor IEP-UCP

Miguel Júnior é um General, um combatente das lutas pela independência e depois das guerras civis, tendo também vivenciado a luta contra o Poder sul-africano. Mas, apesar desta sua longa e rica experiência consegue dar-nos uma visão distanciada e isenta sobre as guerras que vivenciou.

Visão a que nos foi habituando nos seus já muitos escritos anteriores, em que nos presenteou com uma das mais importantes e recentes interpretações da história de Angola, que recordamos conheceu uma longa guerra, muito diversa ao longo de 30 anos (1961-1991), onde os combates regulares e irregulares se misturaram e onde tivemos guerra de guerrilha ou o maior combate de blindados de toda a história da África subsaariana.

Hoje temos o prazer de poder apresentar a sua mais recente obra, um estudo sobre a Estratégia Total da África do Sul, que no contexto da guerra fria visava legitimar internacionalmente o regime de apartheid.

Este interessante livro tem essencialmente duas grandes partes e começa por nos caracterizar o contexto estratégico em que a África do Sul começa a esboçar a sua estratégia total. O período da ordem dos Pactos Militares, da Destruição Mútua Assegurada e das guerras por procuração nas periferias de desempate bem como do importantíssimo período anticolonial no seio das Nações Unidas.

Nesta primeira parte Miguel Júnior procura os fundamentos políticos da estratégia total e remonta ao período da colonização Africander e britânica, nas lutas de ambos para a afirmação da soberania e pela posse da terra, bem como as lutas contra os rei- nos locais como o Reino Zulu. Este era um período onde já se esboçavam as divisões raciais, que se foram incrementando com o crescimento económico.

Depois o autor aborda um pouco as guerras anglo-boers e a sequente incorporação forçada dos Africanders no Império britânico, mas que apesar de tudo viriam a governar regiões como o Transval e as colónias de Orange e do Cabo. Mas foi por negociação entre os colonos que acabaria por ser criada em 1909 a União Sul-Africana, tendo os autóctones sido excluídos da governação; estes no entanto em 1912 viriam a criar o Congresso Nacional Africano (ANC). Depois veio a I Guerra Mundial, e as Forças de Defesa da União passaram a controlar o Sudoeste Africano alemão, dando início às suas intervenções além-fronteiras.

Miguel Júnior analisa sumariamente ainda as evoluções económicas, sociais e políticas entre as duas Grandes Guerras, período onde se acentuaram a discriminação e a segregação racial, vindo a partir de 1948 a ser imposto o domínio do Poder Africander, que implantou um largo programa de engenharia social, o apartheid, empurrando para a clandestinidade as forças políticas da oposição.

Esta situação força a uma mudança de atitude da oposição, que envereda em 1960 por uma, segundo Nelson Mandela, desejável luta armada. O autor mostra-nos de uma maneira magistral os antecedentes internos e externos, os fatores condicionadores e potenciadores da definição da estratégia sul africana, resultante da vontade do Partido Nacional, que a partir do famigerado ano anti-colonial das Nações Unidas, 1961, converteu a União Sul Africana numa República.

O regime não mais parou de ser contestado e condenado nos fora internacionais. No contexto regional destaca ainda os desafios estratégicos provocados pelas lutas armadas e posterior independência em Angola e em Moçambique, bem como o derrube dos regimes brancos na África Austral.

Neste capítulo, Miguel Júnior, com base nos White Papers on Defence, analisa ainda as linhas de força da Estratégia Total Nacional sul-africana, dando ênfase à considerada necessária intervenção em Angola, onde soviéticos e cubanos intervinham na guerra civil.

Os preciosos documentos analisados identificam claramente as metas e os objetivos nacionais sul-africanos, onde são consideradas as estratégias gerais político-diplomatica, sócio-económica, militar e psicológica.

Na segunda parte do seu livro, Miguel Júnior dedica-se à análise das duas estratégias fundamentais: Política Externa e Política de Defesa.

Na primeira análise salienta a Diplomacia de Desafio ou coerciva e as suas diversas fases ao longo do período em análise no livro, que recordo vai de 1948 a 1994, do ato de equilíbrio de Malan, passando pela Política de retirada de Verwoerd, e pela árdua luta pelo compromisso de Voster, salientando o novo compromisso externo musculado de Pick Botha, que veio a privilegiar as intervenções externas no contexto regional e impulsionar o programa nuclear, passando assim a Forças de Defesa a assumir papel preponderante na Política Externa, num contexto em que o isolamento internacional se acentuava, mantendo no entanto o apoio dos EUA, apoio que o Miguel Júnior, com recurso a diversificadas fontes, analisa de forma transversal.

Também internamente a situação se deteriorava levando ao declarar do estado de emergência nacional em 1986, demonstrativo que alguma coisa teria de mudar nas políticas e no modelo social do regime vigente. No fundo, como conclui o General Júnior, na era do apartheid a política externa foi dominada pela geopolítica da guerra, uma virtual extensão e uma exportação da política interna.

Depois o autor analisa a estratégia da Política de Defesa e carateriza os seus variados períodos desde a II Guerra Mundial e a criação das Forças de Defesa da União à South African Defence Forces (SADF), bem como a transição das táticas e estratégias convencionais para as de contra-insurreição, explicando a evolução da estratégia genética dos orçamentos e da mobilização, até à estratégia estrutural com vista a melhorar os níveis de prontidão, numa situação fluida em que era essencial para o Poder preparar-se para todas as contingências.

Curioso notar que as SADF passaram nos anos oitenta a integrar mulheres brancas e outros grupos étnicos, incluindo negros.

Esta segunda parte do livro finda com um capítulo que descreve as doutrinas estratégicas adotadas: a Postura de Defesa, a Dissuasão, a contra-insurreição e a assistência às autoridades civis.

O autor mostra- -nos de uma maneira magistral os antecedentes internos e externos, os fatores condicionadores e potenciadores da definição da estratégia sul africana

Aqui nós destacamos um aspeto particular e original da estratégia total sul-africana: o desenvolvimento do programa nuclear limitado como parte da estratégia da dissuasão, procurando manter a ameaça externa longe das suas fronteiras.

A guerra na África Austral Não sendo novidade que os sul-africanos tinham desde o 25 abril em Portugal, decidido por uma capacidade nuclear, aprendemos com a leitura deste livro que De Klerk confirmou a existência de seis ogivas nucleares, e que apesar da intenção do seu emprego nunca ter sido oficial, sendo apenas passada indiretamente e de forma subliminar, sabemos hoje que chegaram a analisar a modalidade de ação do emprego tático deste tipo de armamento sobre uma capital africana, Luanda em 1987, pois a sua situação militar em Angola era já de grande desespero, sendo esta a primeira vez que em África se colocou ênfase na dissuasão nuclear.

No fundo a estratégia sul-africana procurava ganhar tempo para a manobra política e o alcançar de um acordo que também lhe permitiria uma evolução interna rumo ao fim do apartheid.

Com o fim da Guerra Fria o contexto estratégico altera-se substancialmente e a Paz chega a Angola, retirando os cubanos e concretizando-se a independência da Namíbia.

Por fim o livro analisa a evolução da guerra e as mudanças que se operaram no interior da África do Sul, começando pela descrição da Modalidade de Ação Estratégica direta, interna e externa, em que a estratégia militar ofuscou as demais estratégias, e em que a postura de guerra estava intimamente associada ao seu objetivo político-estratégico - a defesa do sistema do apartheid, tendo as campanhas militares a finalidade de desarticular as forças militares oponentes da região, de modo a facilitar a sobrevivência do regime sul-africano que remava contra a corrente internacional.

O Poder sul-africano cometera no entanto vários erros na análise, não só da evolução do contexto estratégico global, mas no contexto regional não perceberam que à sua estratégia total se opunha ao mesmo tempo outra estratégia total, não assumida, a do Poder em Luanda e que acabou por sair vitoriosa.

As mudanças viriam finalmente a ocorrer no seio de uma sociedade fraturada, onde era cada vez mais difícil, senão impossível, o Poder articular a sua estratégia total nacional. A alternativa era negociar o conflito regionalmente e encetar uma transição política interna, pondo fim ao Regime de apartheid.

Para concluir, considero que todos aqueles que apreciam os estudos da Estratégia, das Relações Internacionais e da História Militar devem ler este precioso livro em que o General Michel mostra toda a sua maturidade académica e científica afirmando-se como Historiador militar de primeira linha.


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