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A Europeização da Democracia Portuguesa


A Europeização da Democracia Portuguesa

Trinta anos volvidos sobre a adesão de Portugal às comunidades Europeias, seguramente oportuno analisar o impacto da integração europeia na democracia portuguesa, para aferir da justeza dessa decisão, tomada precisamente para ancorar e consolidar a democracia entre nós.

Nuno Severiano Teixeira e António Costa Pinto
A Europeização da Democracia Portuguesa
Lisboa, ICS, 2017

Manuel Braga da Cruz Manuel Braga da Cruz

Professor Catedrático e antigo Reitor (2000-2012) da Universidade Católica Portuguesa. Membro do Conselho Editorial de Nova Cidadania

 

A Europeização da Democracia Portuguesa

 

Essa oportunidade afigura-se ainda mais urgente, quando Portugal acaba de sair de um pesado resgate imposto precisamente pela União Europeia, de par com o Fundo Mone- tário Internacional, com duras condições de austeridade que acompanharam o empréstimo que evitou a insolvência a que um governo conduziu o país. Era imperioso conhecer também os efeitos da crise na legitimidade da integração e da democratização.

Este era pois um livro necessário, razão pelo qual se devem felicitar os seus organizadores – Nuno Severiano Teixeira e António Costa Pinto – bem como os seus colaboradores.

O estudo inicia-se com uma contextualiza- ção histórica da adesão e integração europeia de Portugal, da autoria de Nuno Severiano Teixeira, faseando a receptividade portuguesa da perspectiva europeia em dois grandes períodos: “o primeiro (1986-2000) marcado pela convergência e pelo euro-entusiasmo; o segundo (2001-2015), marcado pela diver- gência e pelo eurocepticismo ou realismo”. Subdivide ainda cada um desses períodos em sub-períodos: “o primeiro, entre 1986- 1992 e 1992-2000”, marcado inicialmente pela “credibilização externa da participação europeia de Portugal” e pela “capitalização das vantagens económicas e sociais” de- correntes da integração, e posteriormente pela primeira Presidência portuguesa, pela adesão ao espaço Schengen e ao euro, pela participação portuguesa nas missões de paz nos Balcãs, pela aprovação da estratégia de Lisboa e pela aprovação da reforma insti- tucional do tratado de Nice; “o segundo, entre 2000-2011 e 2011-2015”, marcado pela deslocação da centralidade europeia para o centro da Europa, devida ao alargamento a leste, e pelo tratado de Lisboa, em primeiro lugar, e pela eclosão da crise internacional e do euro, em segundo lugar, acompanhados da desaceleração e recessão da economia e graves desequilíbrios da dívida soberana.

Carlos Jalali analisa de seguida o impacto da integração no governo. Se por um lado a dimensão europeia condiciona o poder executivo, com as crescentes directivas ema- nadas dos órgãos comunitários, por outro lado, permite ao governo ultrapassar mais facilmente oposições internas. O aumento de entidades reguladoras vai limitando a autonomia dos executivos. A maior fiscali- zação europeia posterior ao resgate diminui a margem negocial do governo. O que o leva a concluir que a integração europeia, ao nível governamental, tem sido muito mais uma adaptação do que uma transformação. Ficou por medir o impacto inverso, ou seja, o acréscimo de influência do executivo de- corrente da partilha de soberania, e a maior capacidade de influir, ao nível europeu, ou seja, ao nível governamental comum e na- cional. Como ficou igualmente por referir e analisar a crescente influência do governo sobre as actividades económicas do país, decorrente da administração e distribuição dos fundos comunitários.

O impacto da integração no parlamento é analisado de seguida por Madalena Mayer Resende e Maria Teresa Paulo, sobretudo com o maior envolvimento dos parlamentos nacionais no processo europeu de tomada de decisões. A maior possibilidade de escrutínio dos assuntos europeus pelos parlamentos nacionais, consagrada no Tratado de Lisboa, e o facto de o Parlamento português ser dos mais activos, ou seja dos que maior número de pareceres envia à Comissão Europeia, tem vindo a reforçar o maior controlo parlamentar sobre o governo, ou seja a sua função de fiscalização política, incrementando o processo de consulta entre parlamento e governo. Temos dúvidas sobre a consistência da tese, defendida pelas autoras, de que o reforço do papel do parlamento no processo europeu de tomada de decisões tenha reforçado o “elo directo de ligação entre a sociedade civil e as instituições da União Europeia”, pela simples razão de não ser evidente – antes pelo contrário - a maior abertura do parlamento português à sociedade civil.

Era imperioso conhecer também os efeitos da crise na legitimidade da integração e da democratização

Nuno Piçarra e Francisco Pereira Cou- tinho estudam, de seguida, a europeização dos tribunais portugueses, medida através da aplicação do direito comum europeu pelos tribunais nacionais e das relações entre o Tribunal Europeu de Justiça e os tribunais nacionais. Enquanto a aceitação do primado do direito europeu, pelos tribunais europeus, se processou com facilidade, Portugal foi, dos estados-membros da União, dos que menos “reenvios prejudiciais” enviou até hoje para o Tribunal Europeu, e os que envia são muito mais oriundos dos tribunais administrativos que dos tribunais civis, muito mais oriundos de tribunais superiores do que de primeira instância e, versando, na sua grande maioria, questões fiscais e aduaneiras. O que leva os autores a concluir que o direito europeu ainda não adquiriu em Portugal o impacto que já tem noutros países, e que os tribunais portugueses não estão ainda suficientemente familiarizados com o processo do “reenvio prejudicial”.

A europeização dos interesses sociais organizados é estudada por Sebastián Royo que, depois de uma excelente síntese da evolução histórica das organizações sin- dicais e profissionais em Portugal, analisa as relações industriais em Portugal em democracia e o modelo de negociação so- cial dominante entre nós, concluindo que, apesar de profundamente marcadas pelo corporativismo e pelo intervencionismo colectivista da transição, tem sido signifi- cativa a influência europeia nas relações industriais em Portugal, através sobretudo do processo de privatizações imperiosas. Conclui certeiramente que “infelizmente, em Portugal, tem havido muito poucas melhoras em estratégias tecnológicas, de gestão e comerciais, bem como um aumento limitado da competitividade. No entanto, este modelo não é sustentável num mundo global, onde Portugal enfrenta a concorrência crescente de novos Estados-membros e das economias de baixo custo da Ásia oriental. O desafio da competitividade requer reformas estruturais e um crescimento económico, o que pressupõe um maior investimento em infra-estruturas, esforços para melhorar a qualidade da educação, uma promoção rigorosa da concorrência em todas as áreas e uma simplificação fiscal. Portugal precisa de substituir o modelo de baixo custo por um alto valor agregado baseado no valor agregado da intensidade de capital de produção. Isto requer investimentos tecnológicos, uma nova cultura de empreendedorismo, um capital humano com fortes aptidões e, mais im- portante, um padrão de relações industriais flexível e adaptável, baseado na confiança e na cooperação”. Todo um programa.

O impacto das eleições europeias no sistema partidário português, em compa- ração com as demais eleições, é feito por André Freire e José Santana Pereira. As “eleições de segunda ordem” que são as eleições europeias, que permitem votar mais com o coração do que com a razão, possibilitando assim menor lealdade par- tidária e maior deserção - onde apenas se escolhem representantes e não governantes, acrescentaríamos nós - não tem contribuído significativamente para uma instabilização dos alinhamentos partidários, e isto so- bretudo porque as eleições europeias tem sido eleições em que prevalecem questões nacionais, por vezes funcionando até como primárias das eleições nacionais, e onde, acrescentaríamos nós, o sistema eleitoral reforça e não enfraquece os partidos.

O papel das elites na integração euro- peia é sublinhado por João Pedro Ruivo, Diogo Moreira, António Costa Pinto e Pedro Tavares de Almeida. A integração portuguesa foi obra de elites, apesar de largamente apoiada pelos principais par- tidos (à excepção da extrema esquerda) e nunca foi referendada. Em todo o caso o apoio da opinião pública foi crescente ao longo da década de 90. Daí a pertinência de questionar o sentido de pertença europeia das elites, a avaliação que fazem das insti- tuições europeias, e as suas opiniões sobre as políticas a transferir do nível nacional para o supranacional. Para os deputados portugueses, aqui estudados, a identidade dominante é a portuguesa, valorizando mais os elementos “adquiridos” dessa identidade do que os “atribuídos”. Confiam moderada- mente nas instituições europeias. Apoiam fortemente a existência de um Presidente da União, e que o Presidente da Comissão seja eleito directamente por todos os eleitores europeus. Quanto ao alargamento do âmbito da governação, recusam a europeização do fisco e da segurança social.

Pedro Magalhães debruça-se sobre a evolução do apoio à integração por parte da opinião pública, analisando as fases desse apoio e distinguindo o apoio ins- trumental do apoio afectivo, concluindo que se tem registado um decaimento do apoio instrumental e um crescimento do apoio político. Não é tanto a percepção dos benefícios que motiva a aceitação da integração, mas a aceitação da União como comunidade política.

Um importante ensaio de Teresa de Sousa e Carlos Gaspar sobre a dimensão europeia na política externa portuguesa e sobre o impacto da crise sobre ela, chama a atenção para a mudança dos termos de referência do debate estratégico em Portu- gal. O equilíbrio entre dimensão europeia e dimensão atlântica na definição das priori- dades externas terá sido posto em causa com a excessiva dependência alemã, durante o resgate, subalternizando as relações com os Estados Unidos. Alguma “deseuropeização” terá ocorrido com a valorização do triân- gulo estratégico com Brasília e Luanda, e a procura de novos parceiros estratégicos como a China, com a procura de redução da dependência económica espanhola e europeia, manifesta na política de priva- tizações. E alguma “renacionalização” da política externa é alegadamente comprovada pela revalorização da língua portuguesa nas relações internacionais, a relevância da “diáspora portuguesa” para a projecção externa de Portugal, e a nova política para a plataforma marítima alargada. Sendo impossível um regresso ao statu quo ante identificam afinidades entre os interesses portugueses e europeus: consolidar o ac- qui comunitário, harmonizando políticas monetária, fiscal e orçamental, articulando disciplina da união monetária com cresci- mento económico; limitar a intervenção do “eurogrupo” na governação europeia, robustecendo as instituições da eurozona, criando um fundo monetário europeu; promover a convergência de políticas de imigração e de integração de emigrantes; revisão da estratégica de segurança europeia, para controlo de fronteira e protecção de refugidos no Mediterrâneo. São seguramente recomendações a merecer atenção e debate.

Um poderoso estímulo à prossecução de investigações que possam ajudar a compreender o estado da Europa em Portugal

O livro termina com um ensaio conclusivo de Maarten Peter Vink. “Democratização” e “europeização” foram dois processos para o desenvolvimento e modernização de Portugal e, por isso, brothers in arms. A integração deu à democracia estabilidade política, cres- cimento económico e modernização social. Uma legitimação por out-puts, mais do que por in-puts. “A europeização é um factor de fortalecimento potencial da democracia nacional, ao aumentar a eficácia das polí- ticas públicas e, em termos mais gerais, ao conferir poder aos executivos nacionais. Ao mesmo tempo, no entanto, também afecta potencialmente a qualidade da democracia nacional ao sujeitar a ordem política e jurídica interna a uma ordem europeia supranacio- nal, retirando assim a capacidade de decisão às instituições democráticas internas, tais como os parlamentos nacionais”. A “sujei- ção do nacional ao europeu(...) restringe a democracia nacional”, fazendo dessas duas dimensões frères ennemis.

Se a viragem do apoio à União Europeia, de instrumental para político, pode ser vista como uma maturação do apoio à integração, por outro lado, o impacto da integração no governo, nos tribunais, nas eleições, no sistema partidário, nas relações industriais, não parece muito significativo. Em todo o caso, conclui, a europeização tem fortalecido a democratização portuguesa e vice-versa.

Algumas questões suscita a leitura deste livro.

A primeira tem a ver com a europeização da sociedade portuguesa. Não estando na intenção deste estudo, não pode deixar de ser ponderada, para uma resposta cabal à questão da europeização da democracia. Quer o capítulo da opinião pública quer o dos interesses organizados, permitem retirar algumas indicações importantes, mas insu- ficientes. Uma sociedade civil forte parece indispensável a um reforço da democracia. A integração europeia não parece ter refor- çado a autonomia da sociedade portuguesa em face do Estado, antes pelo contrário incrementou a sua dependência.

A segunda questão, estreitamente ligada à primeira, remete para o processo de legitimação da europeização. Conduzido por elites, o processo de integração manteve as massas afastadas, que parecem ter aderido como “beneficiários passivos” no início, por razões instrumentais. O decréscimo da eficácia, sobretudo a recente austeridade imposta com o resgate, poderá ter produzido algum crescente cepticismo ou de- sencanto. O divórcio entre as elites e a opinião pública, bem patente nalguns países europeus, e traduzido nos contrastes de confirmação referendária de Tratados Europeus, contra- pondo vanguardismo voluntarista à resistência céptica, deveria levar a tentar compreender o que se passa entre nós. O desinteresse pelas eleições europeias, apesar de “nacionalizadas”, pode levar à formulação de hipótese no mes- mo sentido. E dado o crescente afastamento entre elites políticas e população, aumenta a pertinência dessa curiosidade.

A Europeização da Democracia Portuguesa A terceira questão tem a ver com o desen- volvimento de uma “cidadania europeia”, ou seja de uma consciência social europeia e de uma cultura política europeia, no domínio dos valores, afeições e comportamentos. Algumas políticas europeias, nomeadamente alguns programas europeus, como o Programa Erasmus, algumas políticas de comunicação, parecem conduzir a uma maior europeização cultural e a uma mais difusa percepção do âmbito europeu na consciência social. Seria importante medir esta evolução.

O estudo a que me foi dado o privilégio de aqui apresentar é um poderoso estímulo à prossecução de investigações que possam ajudar a compreender o estado da Europa em Portugal.

Termino agradecendo de novo o con- vite, e os contributos aqui deixados para a nossa reflexão.


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