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A Invenção do Indivíduo O Ocidente Explicado aos Ocidentais por Larry Siendentop


A Invenção do Indivíduo  O Ocidente Explicado  aos Ocidentais por  Larry Siendentop

Inventing the Individual – The Origins of Western Liberalism de Larry Siendentop é um livro de história das ideias que procura responder à pergunta: “É mera coincidência que o secularismo liberal se tenha desenvolvido no Ocidente Cristão?”

Larry Siendentop
Inventing the Individual The Origins of Western Liberalism

Guerra e Paz, 2014

por João Vacas João Vacas

Doutorando do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

Trata-se de um esforço de explicação, meritório e de actualidade plenamente justificada, que procura abarcar de um modo inteligível cerca de 14 séculos de teologia, de filosofia e de direito.

Assistimos actualmente à disseminação e operacionalização da ideia de que a nossa sociedade, secular, fundada nos direitos dos indivíduos e liberta das peias da prática e crença religiosas, se contrapõe aos resquícios teimosamente sobreviventes de um outro tempo, crente e eclesial, em que a individualidade era colocada em segundo plano quando não totalmente elidida pela força hegemónica dos valores cristãos. Segundo esta ideia, a humanidade precisou de se livrar da fé para descobrir o caminho da autodeterminação individual e o verdadeiro entendimento sobre o seu lugar no mundo. O iluminismo de matriz continental – em franco contraste com o anglo-saxónico – e os ideais fundadores da Renascença teriam sido os motores desta mudança que pretendia fazer retornar os seres humanos à pureza racional falsamente idealizada do classicismo greco-romano e a uma vida virtuosa e livre de superstições e ritos obscurantistas. Ao lado da ideia do bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau ecoa o brado anticlerical de Voltaire “écrasez l’infâme!”

O liberalismo actualmente triunfante e vigente no Ocidente seria, assim, fruto deste movimento libertador que fez reemergir o homem titular de direitos, em particular dos fundamentais, desprovido de limitações artificiais. Um homem convicto do poder da sua razão, centrado sobre si próprio, apostado em conhecer cientificamente o mundo e em desvelar por essa via a sua verdadeira natureza. Um homem, em suma, emancipado do pensamento medievo, da “noite negra de mil anos”, que atrasara o progresso e enredara a Europa no fanatismo, na opressão e no imobilismo conceptual e institucional.

A morte recente de Jacques Le Goff recordou ao grande público em que medida a concepção iluminista da Idade Média e da acção da Igreja, que ainda hoje prevalece em muitos círculos, é ela própria uma caricatura plena de absurdo e de desconhecimento. O livro de Larry Siedentop reforça esta noção e recorda a história de ideias, conceitos e práticas que não teriam ganho vida nem maturado se não fossem, precisamente, os períodos, tão fecundos quanto conturbados, que se seguiram ao advento do cristianismo.

A narrativa desta obra contrapõe o mundo cristão ao que o antecedeu, considerando ser esta diferença - e não a entre Idade Média e Renascimento ou entre Absolutismo e Liberalismo – a que marca principalmente dois períodos distintos da história da humanidade.

Como ponto de partida, Siendentop escolhe a mais elementar célula da sociedade – a família – e demonstra como esta foi radicalmente alterada sob a influência igualitária do cristianismo. Para exemplificar essa diferença entre as famílias do período pré-cristão e a família influenciada pelo cristianismo recordo a imagem do recém-nascido colocado aos pés do Pater Famílias. Competia a este último decidir se a criança que viera ao mundo era legítima e susceptível de integrar aqueles que se acolhiam ao seu mando e protecção pessoal, ritual e cívica. Se tal criança seria cuidada e acolhida ou enjeitada e marcada para morrer. O lugar no mundo do ser humano que nascera estava assim intimamente ligado ao gesto primordial de ser levantado do chão pelo pai, líder, magistrado e pontífice supremo da comunidade familiar. Comunidade assente na desigualdade interna de posições, na preponderância da linha masculina primogénita e na total subalternização feminina.

Esta instituição, civil e religiosa, detentora da identidade dos seus membros, fundada num território e no culto dos antepassados e dedicada à autopreservação, exigia dos seus integrantes o cumprimento dos seus deveres e, mais ainda, a representação adequada do seu papel. A sua natureza absoluta, apesar de não totalitária – porque limitada pelo costume e pelos rituais, pelas crenças e valores comuns - circunscrevia o afecto ao reduto familiar e desconhecia no plano ideológico a ideia de preocupação, substituição ou empatia pelos seres humanos enquanto tal. O fogo sagrado que havia que manter era o da família, não o da cidade nem o do Estado e muito menos o da vida de cada um. Mesmo no período greco-romano, a polis parava à porta das famílias estabelecendo-se aí a fronteira moral entre uma e outra, assente, em boa medida, no respeito e posterior positivação do direito de propriedade familiar.

Ao contrário das sociedades actuais, em que (ainda) se vão distinguindo as esferas pública e privada, para Siedentop, a oposição dava-se então sobretudo entre a esfera pública (acessível a uma pequena minoria) e a familiar. E esta era profundamente marcada pela desigualdade.

No âmago do pensamento antigo estavam, assim, a presunção da natural desigualdade entre as pessoas e uma visão hierárquica e aristocrática das suas relações, identidades e mesmo dos seus seres naquilo que tinham de mais fundamental. Não se tratava, segundo os próprios, de funções ou de posições mas de essências ou de naturezas distintas que se materializavam na distribuição desigual não apenas do poder de facto mas da própria racionalidade e entendimento entre os seres humanos.

A hegemonia romana e o facto de se pretender estabelecer um poder político e uma civilização universal reacenderam as especulações filosóficas e revigoraram os movimentos em torno da noção de um Deus único à qual toda a humanidade estaria sujeita. Um Deus não já do particular, celebrado e honrado na estreiteza da família, da tribo ou da cidade mas, antes, uma divindade que se impunha a todos, que ordenava o seu comportamento, que acompanhava os homens na sua evolução através do tempo, de acordo com a fidelidade e merecimento individuais. Era assim o Deus dos judeus. Um Deus, por vezes iracundo e vingativo, capaz de selar alianças e de se relacionar de modo interpessoal, muito longe do modelo clássico.

Siendentop distingue a noção cíclica, circular e recapituladora do tempo plasmada na cultura greco-romana da unilinear, finalística, que permeava a cultura judaica e que fazia do seu um Deus simultaneamente guia e companheiro de jornada. “O Deus judaico expressava- se no tempo. Nada seria como dantes” diz o autor.

A crucificação e morte, auto-sacrificial e remissora, de Jesus de Nazaré alteraram para sempre a história humana e a história de Deus na História. E deram origem, nas palavras de Larry Siedentop, a uma verdadeira “Revolução Moral.” No seu seguimento, a acção individual e o próprio ser humano individualmente considerado substituíram a pertença familiar como garantia da imortalidade: passaram a ser a “única janela para a natureza das coisas.”

A acção pastoral e intelectual de Paulo de Tarso, para Siedentop “o maior revolucionário da história da humanidade”, combinadora das especulações helenísticas prévias sobre a natureza humana e das considerações judaicas acerca da conformidade com as expressões históricas da vontade divina, fizeram fermentar e irradiar essa nova visão do homem.

Uma visão igualitária perante Deus e os demais, no qual as acções individuais teriam de assentar na vontade, responsabilidade e consciência de cada um e não no cumprimento cénico de funções político-rituais decorrentes de posições hierárquicas de raiz familiar. A “igualdade das almas” sobrepunha-se à desigualdade dos estatutos e das essências.

Esta nova igualdade espiritual reclamou idêntica qualidade no plano moral e um novo conceito de justiça assente na liberdade e no poder da vontade. E, consequentemente, um novo conceito de sociedade. E da própria humanidade.

Assim como as famílias tinham no seu núcleo a celebração religiosa e ritual dos lares e penates e as polis eram construídas em torno do seu principal templo, segundo a doutrina paulina, cada homem é ele próprio “templo do Espírito Santo.” Detentor de dignidade individual e directamente relacionado ou relacionável com Deus por via da fé, da sua conduta moral e da piedade que demonstre para com os seus semelhantes, detentores da mesma dignidade transcendental.

Ao estruturar um clero distinto das práticas e funções cometidas às famílias, em geral, e ao pater famílias, em particular, o cristianismo mudou profundamente esta instituição nuclear retirando- lhe a função religiosa e mediadora entre Deus e os homens e diminuindo os vínculos decorrentes da subordinação. O clero extra-familiar impôs também obrigações mais igualitárias a ambos os sexos quanto ao matrimónio e reforçou o argumentário contra a escravatura apesar de nem sempre ter sido consequente com a sua posição de princípio.

Larry Siedentop afirma que a sua sugestão de que a “liberdade igual” radica nos primeiros escritos da apologética cristã tenderá “a surpreender muitos e a irritar alguns” devido ao “anti-clericalismo que tem feito parte da nossa historiografia liberal” mas, recorda ele, já Tertuliano, um dos primeiros Padres da Igreja, escreveria no fim do século II, que a vinda do Verbo à terra “trouxe liberdade à pessoa humana.”

A noção de que os sacramentos estavam igualmente disponíveis para todos e que todos poderiam ser salvos motivaram quer maiores exigências de solidariedade àqueles que mais tinham e, do ponto de vista da estrutura eclesial nascente, impuseram a visão de que esta deveria cuidar dos “templos” humanos do “Espírito Santo,” criados à imagem e semelhança de Deus, e procurar acolher, proteger e assistir os mais pobres.

Deste modo, o cristianismo cresceu e fermentou com o sangue dos mártires, a exemplaridade da vida (e da morte) dos seus líderes, o carácter interclassista dos seus aderentes e a aliança entre os seus primeiros bispos – muitos oriundos de famílias patrícias – com as classes mais desfavorecidas.

Ao contrário do herói clássico, que atinge esse estatuto por via da ascendência nobre ou mesmo divina e pela realização de feitos que implicam força ou intelecto excepcionais - forma da exaltação das virtudes viris e cívicas da sociedade greco-romana -, o herói cristão emerge pelo reconhecimento dos seus pares, pela auto-negação e pela imolação sacrificiais, em contraste, por vezes desafiante, com a brutalidade da sociedade que o flagela, à imagem do já fizera a Cristo Jesus.

Findo o período em que o cristianismo fora perseguido, persistiu em muitos dos seus seguidores uma insatisfação com “as coisas do mundo” e a noção de que a via da renúncia aberta pelos mártires poderia ter uma nova configuração e um novo conteúdo prático. Um desejo de levar mais longe a revolução moral encetada por S. Paulo. Essa renúncia passaria agora por dar a vida através da obediência e da mortificação, do estudo, da meditação e da oração. Uma retirada, quase sempre extrema e por vezes extravagante, do bulício das principais cidades e que se disseminou pelos campos e povoados, na busca do mais profundo do ser. Ser, esse, que só poderia ser encontrado na sua integralidade na exacta medida em que era abandonado à vontade divina. Uma música cantada actualmente nas igrejas portuguesas espelha este entendimento radical “Se o grão de trigo não morrer na terra é impossível que nasça fruto. Aquele que dá a sua vida aos outros terá sempre o Senhor.”

Mesmo aqueles que não mostravam vocação para seguir essa via exigente passaram a conhecê-la, a reconhecerlhe autoridade moral e, na medida das suas limitações, a incorporar graus de abstinência e recolhimento no quotidiano das suas vidas. A regularização da maioria das vocações anacoréticas monacais e a sua submissão a regras comuns dotaram-nas de um papel essencial no desenvolvimento futuro do Ocidente cristão. De entre estas regras que formataram a comunitarização do ascetismo, avultam no plano político a da eleição dos superiores pelos inferiores, a que aceitava a criação e auto-regulação de comunidades religiosas de mulheres e a revalorização do trabalho braçal, em franco contraste com o período anterior em que as funções religiosas decorriam, na maioria dos casos, da posição social e familiar, as mulheres tinham um papel de franca subalternidade e o trabalho físico era considerado próprio dos escravos e dos mais pobres.

Esta nova igualdade espiritual reclamou idêntica qualidade no plano moral e um novo conceito de justiça assente na liberdade e no poder da vontade

Esta revalorização, ou “reabilitação” como lhe chama Siedentop, do trabalho contribuiu para a estruturação da visão de uma sociedade de iguais, apostada na salvação dos seus membros, que requeria a participação, o compromisso, o consentimento e a consciência responsáveis de cada um.

Em simultâneo com este movimento monacal, a prática conciliar motivou o debate teológico e filosófico no seio da Igreja e influenciou o relacionamento desta com o poder temporal que, após a queda de Roma, se refizera em torno de potentados bárbaros que procuravam emular o império caído e conciliar as leis romanas com os próprios costumes e tradições. Aquela Introduziu o conceito de “caridade” na esfera das políticas públicas e o de um enquadramento moral abrangente para toda a produção jurídica.

Depois da adopção da fé cristã pelo império, a Igreja dedicou-se a converter os novos reis dos novos reinos e os seus respovos, a preservá-los ou expurgá-los das heresias que ameaçavam a sua unidade e a assumir a administração urbana das cidades, não já assente no poder aristocrático inerente por natureza às principais famílias mas, antes, na autoridade dos pastores emanada dos demos dos fiéis e do princípio já referido (só invertido no fim da Idade Média) de que devem ser os inferiores a eleger os superiores. Estas serão as bases daquilo que, no futuro, virá a ser conhecido por governo representativo.

A concepção inigualitária da sociedade dava assim paulatinamente lugar a uma visão oposta. Segundo Siedentop, à “desigualdade natural” das associações de famílias seguiu-se a “igualdade moral” das associações de indivíduos, particularmente conveniente numa sociedade que procurava fundir povos germânicos e latinos e dotá-los de uma mesma lei.

A superioridade intelectual do clero cristão permitiu-lhe não apenas aconselhar os novos soberanos mas dominar a produção legislativa e assegurar a separação dos domínios religioso e secular em benefício dos povos conquistados que, por terem alma igual à dos seus conquistadores, já não poderiam ver o seu estatuto degradado ao nível dos escravos do período clássico e, por serem detentores de vontade e de consciência individuais, deveriam ser julgados neste mundo como seriam no outro: de acordo com a intencionalidade que subjazeu à prática dos seus actos. Esta distinção entre o tangível e o intangível fará germinar a ideia de separação entre o conhecimento científico e o transcendente e abrir caminho para aquilo que viria a ser o método científico.

Ao impor um juramento de lealdade a todos os seus súbditos, nobres e plebeus, livres e não-livres, homens e mulheres, que devia ser compreendido e aceite pelos próprios, Carlos Magno contribuiu involuntariamente para o reforço da intuição moral acerca da igualdade ontológica dos seres humanos e o fortalecimento do papel da vontade individual enquanto elemento estruturador da ordem social do “Povo Cristão” que via assim reforçada a sua identidade colectiva.

Este novo universalismo ultrapassou “a fronteira moral entre homens livres e os escravos” e permitiu que a perspectiva de unidade moral e religiosa sobrevivesse à desintegração do império carolíngio e permanecesse viva no seio da Igreja, presente na sua missão e na sua forma de actuar.

Ao pregar sobre a justiça no “mundo que há-de vir” assente na “igualdade das almas” a mesma Igreja tornava patentes as injustiças deste mundo. E, ao defender- se das tentativas de subalternização face aos poderes políticos feudais e hereditários, nomeadamente pela reafirmação do celibato, fazia apelos à liberdade e à autoridade moral decorrentes da soberania de Deus em si investida.

A reivindicação da plenitudo potestatis por parte dos Papas, que teve o seu início na segunda metade do século XI e se seguiu à da soberania interna no seio da Igreja, combinou a concepção romana de imperium com a atenção cristã ao cuidado das almas, reforçando-se por esta via a noção de que era o indivíduo a unidade básica de sujeição à ordem jurídica. Ao afirmar o seu poder, a Igreja reconheceu que este devia exercer-se num tipo de sociedade individualizada, à semelhança da soberania de Deus sobre as almas individualmente consideradas, e que todos, incluindo os reis, estão sujeitos ao seu escrutínio. Homens como os outros, é a Igreja quem, ao reafirmar o seu papel de última instância da cristandade, os recoloca no lugar de sujeitos ao juízo e lhes recorda a necessidade de bom governo dos seus povos. O triunfo das monarquias não se deu sem que, com elas, triunfassem as intuições morais geradas pela Igreja. Para Siedentop, “ao nível moral e intelectual, a Igreja ganhou a luta pelo futuro da Europa.”

Ao desenvolverem estas ideias pontifícias, os canonistas prepararam o caminho para o advento das ideias de soberania e de Estado enquanto forma de estruturação de governo, criados enquanto emulação da supremacia e da estrutura eclesiais. A reivindicação da supremacia papal e a consequente noção de “sujeição igual”, segundo Siedentop, foram não apenas incentivos à ambição replicadora por parte do poder secular mas também condições necessárias para a limitação do poder desses Estados e da sua autoridade soberana. A Europa moderna assentaria ainda hoje nessa visão Papal.

Enquanto últimos julgadores, os sumos pontífices contribuíram, por intermédio do direito canónico, para a formatação do carácter sistemático do pensamento, conceitos e prática jurídicas na Europa, para o advento das universidades e para a reemergência da filosofia enquanto disciplina científica sobretudo devido aos estudos lógicos e às necessidades de abstracção encontradas no decurso dos processos e procedimentos decisórios.

O seu sistema de justiça centralizada permitiu a transição da lei costumeira para a lei entendida como emanação da vontade soberana, a introdução de padrões mais humanos e equitativos de produção de prova e mesmo de punição e a consideração da diferença entre crime e pecado.

À medida que foi sendo redefinida a esfera de igual responsabilidade pessoal, esta acarretou a criação de uma esfera de autonomia e, com esta, a consagração da liberdade de associação. Às associações humanas – mesmo as não investidas de autoridade ou aprovação públicas – foram reconhecidos privilégios e liberdades e a sua capacidade de auto-regulação deveria ter o consentimento dos seus membros, que eram comproprietários dos seus bens.

Aos conceitos de consciência e de vontade seguiu-se um lento processo de transformação da chamada lei natural num sistema de direitos naturais, pré-sociais ou morais, inerentes a cada pessoa: um processo que estabeleceu as bases para o liberalismo moderno. A igualdade ontológica e moral implicou liberdade igual: as garantias morais dadas pela fé cristã reclamavam, para além da Graça Divina, justiça social.

No entanto, para Siedentop, “o liberalismo assenta nas considerações morais do cristianismo. Preserva a ontologia cristã sem a metafísica da salvação

Essas pretensões conheceram um desenvolvimento profundo com a emancipação das cidades dos poderes religioso e secular e da consagração de cartas de direitos e deveres dos seus habitantes - cartas de foral no caso português - que estabeleciam o seu próprio auto-governo. Secular e separado do clero. Antepassadas das constituições contemporâneas, previam separação de poderes, regulação do comércio, definiam a política fiscal, estabeleciam uma administração permanente da justiça, a eleição dos seus representantes e uma protecção mais sistemática dos direitos individuais. Possibilitaram a criação da classe média urbana.

Siedentop conclui qualificando o liberalismo contemporâneo como um “filho natural,” não “legítimo” nem desejado, do cristianismo. Aliás, diz o autor, os valores proto-liberais que se tinham desenvolvido paulatinamente na Igreja apenas se revelaram conjuntamente quando foram usados contra a própria quando esta tentou impor a fé com o auxílio do poder secular.

A oposição a esse estado de coisas, sobretudo do século XVI ao XVIII, abriu caminho a uma doutrina mais sistemática de separação entre a Igreja e Estado: o secularismo que relegou a religião para a esfera privada. Este antagonismo subjazeu ao entendimento de que o liberalismo é um movimento anti-religioso. Mas esta interpretação ignora ou faz por ignorar as raízes religiosas das suas convicções morais e separa-a da tradição que as gerou.

No entanto, para Siedentop, “o liberalismo assenta nas considerações morais do cristianismo. Preserva a ontologia cristã sem a metafísica da salvação. (…) As fundações da Europa moderna residem no longo e difícil processo de conversão de uma reivindicação moral em estatuto social. E foi a prossecução da crença da igualdade das almas que tornou tal conversão possível. Daí brotou o compromisso com a liberdade individual.”

Ao terminar a sua obra, o autor alerta para a “guerra civil” que lavra na Europa e que ameaça afectar os Estados Unidos na qual “as convicções religiosas e o secularismo são entendidos como oponentes irreconciliáveis” mas as “convicções morais cristãs são a fonte última da revolução social que fez da Europa aquilo que ela é.”

A resposta de Larry Siendentop tenderá a não satisfazer quem ocupe as posições mais opostas deste debate ou quem procure narrativas ou pormenores minuciosamente detalhados. Apesar da simplificação e da generalização, inevitáveis numa obra destas características, Siedentop combate o simplismo e as generalidades e argumenta com conhecimento, profundidade e rigor.

Recordando a um Ocidente desmemoriado e em guerra consigo mesmo as raízes da sua melhor tradição, o autor não deixa de lhe apontar pistas para uma reconciliação informada. O diálogo interrompido entre Fé e Razão pode ter em Inventing the Individual um interessante desbloqueador de conversação.

A ler. Criticamente.


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