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Vítor Gaspar


Vítor Gaspar

O centralismo do Estado e o seu poder excessivo na economia nacional vêm de muito mais longe na história de Portugal.

Maria João Avillez
Vitor Gaspar

D. Quixote, 2014

por António Carriço António Carriço

Membro do Conselho Editorial de Nova Cidadania. Director de www.onossodinheiro.pt

Há um pormenor muito interessante na longa entrevista de Maria João Avillez a Vítor Gaspar, recentemente publicada pela D. Quixote. Logo no início, quando explica a sua carta de demissão de Ministro das Finanças, Vítor Gaspar cita “Indian Currency and Finance”, um livro pouco conhecido de Keynes publicado em 1913, no qual o autor afirma que, numa crise, os mecanismos de ajustamento que se aplicam a um país credor são diferentes dos que se aplicam a um país devedor. Portanto, como explicita Vítor Gaspar: “o devedor tem de obter empréstimos, o credor não tem qualquer obrigação de emprestar.”

Este pormenor é interessante porque mostra bem a forma de pensar de Vítor Gaspar. Não é preciso estudar obras obscuras de Keynes para compreender que num empréstimo o devedor e o credor estão em situações muito diferentes. Vítor Gaspar tem uma sólida formação económica, é um estudioso, um homem culto e uma pessoa muito racional que parece ter necessidade de recorrer a uma sofisticada fundamentação teórica para concluir o que qualquer pessoa com um mínimo de experiência de vida sabe ou intui sem dificuldade: é muito diferente ser credor ou devedor e portanto o que cada um pode ou deve fazer não tem grande semelhança.

Desta constatação keynesiana, Vítor Gaspar conclui que Portugal tinha de dar prioridade à restauração da sua credibilidade, o que justifica exaustivamente neste livro. Esta foi, de facto, uma imagem de marca do ex-ministro, que não se cansava de repetir aos portugueses que tínhamos de fazer tudo o que estivesse ao nosso alcance para recuperarmos a nossa credibilidade e para sermos vistos como diferentes dos gregos. Daqui surgiu a necessidade de nos comportarmos como um bom aluno, sempre desejoso de ter a atenção e o reconhecimento dos seus professores.

É verdade que tínhamos de recuperar a confiança dos credores, que acima de tudo querem ter a garantia de que vão receber os juros e as verbas emprestadas. Mas não é menos verdade que para a troika também era importante que a sua intervenção em Portugal corresse bem. Como exclama Maria João Avillez a certa altura: “Convém não esquecer que também era do interesse deles.” Assim sendo, não parece ser muito inteligente, do ponto de vista de estratégia negocial, estar sempre a repetir publicamente que o mais importante era ganharmos a confiança dos nossos credores. Se quem está do outro lado da mesa ouve repetidamente esta afirmação, que disposição terá para atender às nossas preocupações? Nenhuma, com certeza.

Numa entrevista que Vitor Gaspar deu a Teresa de Sousa, do Público, a propósito do lançamento do seu livro-entrevista, Vítor Gaspar reage indignadamente à ideia de ser visto como o quarto mosqueteiro da troika e considera isso simplesmente insultuoso. Compreende- se a reacção, pois não é uma apreciação agradável. Mas entende-se que esta ideia tenha surgido: ouvimo-lo diversas vezes falar aos portugueses sobre a necessidade de ganharmos a confiança da troika, mas não sabemos com que veemência ele expôs à troika a necessidade de o governo manter a confiança dos portugueses.

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Quem quiser saber pormenores mais picantes da passagem de Vítor Gaspar pelo governo de Passos Coelho não deve comprar este livro. O ex-ministro nunca satisfaz a curiosidade dos que querem perceber as peripécias em torno da sua demissão, ou compreender melhor as frases da sua carta que pareciam ser críticas sibilinas ao primeiro-ministro, ou conhecer a sua opinião sobre Paulo Portas. Apesar das variadíssimas perguntas da Maria João Avillez e do seu quase desespero perante repostas sempre muito contidas e racionais, Vítor Gaspar nunca se desvia do seu discurso, que tem como preocupação fundamental explicar e justificar as decisões que tomou enquanto esteve no governo. Opiniões mais pessoais, detalhes menos conhecidos, histórias mais engraçadas, não constam deste livro.

O principal mérito deste livro é ficar- se a conhecer em detalhe a argumentação de Vítor Gaspar em defesa da política seguida pelo governo. E toda a envolvente em termos institucionais, tanto a nível nacional como europeu. Além disso, fica-se a compreender melhor o ex-ministro. Que se assume como um economista interessado pela política desde a adolescência mas sempre numa atitude de observador, espectador muito atento e, quanto muito, um participante distante.

Uma pessoa que fala com evidente orgulho da sua actividade como alto funcionário do Banco Central Europeu e como representante do Ministro das Finanças nas negociações do Tratado de Maastricht. Fala com entusiasmo das inúmeras reuniões em que participou, da influência que teve nelas e da admiração e afecto que sente pelos representantes de outros países com que teve de lidar. Uma elite de altos funcionários europeus que formavam, como refere a certa altura, um clube.

Um clube de economistas de elevado prestígio, de pessoas que tinham consciência da importância histórica das suas missões e que sem dúvida apreciavam o enorme poder de contribuírem para moldar o futuro da Europa. O fascínio com que Vítor Gaspar descreve a sua participação nestas reuniões e as boas relações que foi ao longo do tempo estabelecendo com estes economistas, contrasta com o contido e mal disfarçado distanciamento que manifesta em relação aos actores políticos nacionais. Quase lamentando que este clube de sábios, amantes da verdade e da razão, impossíveis de corromper, incapazes de fazer demagogia ou de mentir, sabedores das melhores decisões a tomar para defender o bem público, estes reis-filósofos da nossa época, não sejam eles mesmos a governar e a conduzir os seus países no melhor dos rumos.

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O que neste livro acaba por ser engraçado é a tentativa de Maria João Avillez de extrair da Vítor Gaspar pormenores mais pessoais e comentários mais políticos sobre os temas em análise. Sem grande resultado, pois o entrevistado mantém sempre a sua contenção, a sua argumentação racional e o seu horror à partilha de sentimentos e de opiniões privadas.

As reacções de Maria João Avillez a este discurso são por vezes hilariantes. Quando o entrevistado refere que algumas questões políticas interferiram no seu trabalho, Maria João Avillez pergunta: “Exactamente quais, santo Deus?” Quando Vitor Gaspar diz que nunca houve bloqueios ao caminho que prosseguia, a entrevistadora reage: “E espera que eu acredite nisso?” A certa altura Vítor Gaspar acaba uma das suas respostas confessando “Estou novamente a ser um bocadinho abstracto.”, ao que Maria João Avillez riposta, de forma bastante irónica: “Um bocadinho. E la Palisse, não desfazendo, não diria melhor.” E quando o entrevistado confessa “E olhe que a modéstia não faz parte das minha qualidades.” Maria João Avillez desabafa: “Ah não faz não.”

A argumentação de Vítor Gaspar é tão sólida, a justificação de tudo o que fez é tão consistente, que a certa altura a entrevistadora pergunta: ”Nunca se enganou ao longo desta saga?”

Nesta altura o tema era o desenvolvimento da crise e Vítor Gaspar reconhece que não se apercebeu logo da profundidade da crise e do impacto que teria na área do euro. Provavelmente na altura, em 2008, ninguém previu bem as repercussões da crise.

Mais à frente, falando da sua actuação como Ministro das Finanças, o entrevistado ao abordar a reforma do Estado admite o seguinte: “Como benefício do observador conhecedor dos desenvolvimentos posteriores, estamos convictos de que o esforço de transformação deveria ter sido muito maior.” Mas logo justifica: “ Sendo que a sequência natural, lógica, foi começar por atender à consolidação orçamental em estado de quase emergência, para, mais tarde, realizar essa reforma estrutural após profunda reflexão sobre a melhor maneira de a executar. ”No entanto, acaba por reconhecer que ”dadas essas dificuldades, ter começado com o processo estrutural da Administração Pública, procurando acelerá-lo ao máximo, teria sido, na minha opinião, uma opção mais avisada.”

E porque é que isso não aconteceu? Vítor Gaspar responde: “Os processos de reforma têm sempre custos bem identificados sobre grupos de interesses organizados. E estes são, em Portugal, extremamente poderosos. Estão - julgo eu - solidamente enraizados na estrutura do Estado corporativo construído por Salazar.”

Talvez não seja muito correcto afirmar que estes interesses instalados têm origem no Estado corporativo salazarista. Alguns dos poderes que mais reagem a qualquer reforma não existiam no tempo de Salazar. Por outro lado, o centralismo do Estado e o seu poder excessivo na economia nacional vêm de muito mais longe na história de Portugal.

Mas o reconhecimento de que se menosprezou uma das componentes essenciais do processo de ajustamento - a reforma estrutural do Estado - é sem dúvida um das questões politicamente mais interessantes deste livro. Têm-se tomado inúmeras medidas parcelares e cortes transversais mas, como alguém disse recentemente, está por fazer uma reforma inteligente do Estado.

A certa altura Vítor Gaspar cita uma frase muito certeira de Jean-Claude Juncker, que talvez seja a verdadeira razão de se ter adiado a necessária transformação do Estado: “Todos sabemos o que temos de fazer. O que não sabemos é como ser reeleitos depois de o fazermos”.

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O futuro de Vítor Gaspar é difícil de prever. Este livro não é com certeza um regresso imediato à cena política, mas talvez assinale uma vontade de não ser esquecido. E, mais do que isso, marca a disponibilidade para, mais tarde ou mais cedo, voltar à ribalta.

Quanto ao legado do ex-ministro é facilmente compreendido quando se consulta o relatório de execução orçamental de 2013. Como então foi largamente noticiado o défice orçamental teve um valor melhor do que o previsto e abaixo do valor negociado com a troika. Conseguiu-se assim diminuir o défice em relação ao ano anterior e criaram- se condições para que em 2014 seja mais facilmente atingido o objectivo de um défice orçamental de 4%.

Quando se analisa a evolução das despesa e das receitas de Administração Pública percebe-se como foi conseguido este valor do défice. As despesas, ao contrário do que seria de esperar, não baixaram e até subiram ligeiramente. O défice só baixou porque as receitas aumentaram muito mais do que as despesas: a receita fiscal aumentou cerca de 10% e a receita do IRS cresceu nada menos que 35,5%.

Vítor Gaspar é um homem frontal e não receia dizer a verdade. Quando ele anunciou, numa célebre conferência de imprensa, que ia haver um enorme aumento de impostos, estava mesmo a falar a sério.


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