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Uma Educação em Annapolis


Durante quatro anos lemos e conversamos sobre Homero, Ésquilo, Heródoto, Sófocles, Eurípides, Tucídides, Aristófanes, Platão e Plutarco nos nossos seminários semanais.

por Miguel Monjardino Miguel Monjardino

Professor do IEP-UCP. Colunista de política internacional do semanário Expresso

Acena é terrível. Clitemnestra, coberta de sangue, exulta depois de assassinar o seu marido Agamémnon. “Estendido no solo, ele entrega, então o espírito e, numa golfada/ viva de sangue, trespassado pelo ferro, atinge-me com um/ escuro chuvisco de orvalho sangrento, que me é tão grato/ como ao campo semeado a bênção da chuva, esplendor enviado/por Zeus durante o parto das espigas.” Agamémnon matou a sua filha Ifigénia para que a esquadra dos reis gregos pudesse ter vento até Tróia. Atreu, o seu pai, matou os sobrinhos, desmembrou-os e deu-os a comer ao seu irmão Tiestes num jantar infame. O Agamémnon de Ésquilo é um rei insensato. Mas será que a vingança de Clitemnestra e do seu amante Egisto, o primo de Agamémnon que sobreviveu, é justa? O Coro dos anciãos de Argos não tem a certeza – “Qual destes acontecimentos não foi ordenado pelos deuses?”

A curiosidade levou-me ao seminário de Anthony O’Hear - Professor na Universidade de Buckingham e Director do Royal Institute of Philosophy - no Instituto de Estudos Políticos, Universidade Católica Portuguesa, no final de Setembro de 2004. Fiquei tão impressionado com a experiência que comecei a conceber ali mesmo um pequeno programa de clássicos gregos para alunos do ensino secundário em Angra do Heroísmo.

Durante quatro anos lemos e conversamos sobre Homero, Ésquilo, Heródoto, Sófocles, Eurípides, Tucídides, Aristófanes, Platão e Plutarco nos nossos seminários semanais. Uma vez por mês, fazemos longos passeios a pé nas colinas e estradas da ilha Terceira. Andamos em todas as condições atmosféricas durante o dia, a noite a madrugada. Conhecemos bem o calor, a humidade, o frio, a exaustão e a alegria. Três jantares formais celebram a vida de poetas, estadistas, exploradores e mulheres inteligentes. No primeiro Sábado de Janeiro, fazemos uma leitura pública integral da “Ilíada” ou da “Odisseia.”

A República das Letras tem sido uma extraordinária aventura intelectual e física. O programa é exigente para o pequeno grupo de Hoplitas (12º ano), Argonautas (11º ano), Hilotas (10º ano) e Bárbaros (9º ano) que escolhem fazer o programa. Do ponto de vista académico e físico, estes alunos não podiam ser mais diferentes uns dos outros. Dito isto, todos eles partilham três virtudes importantes – coragem, curiosidade e persistência.

Começamos com a “Ilíada” de Homero. Os alunos acham o poema difícil, perturbante, violento e comovente. Além disso, discordam veementemente das consequências da cólera de Aquiles para o grande guerreiro aqueu e todos os que o rodeiam. Tem sido extraordinário ver estes alunos conversar sobre as personalidades e os dilemas dos homens e mulheres de Homero em Tróia. Vi-os chocados. Vi-os furiosos. Vi-os com lágrimas nos olhos. E depois, há os longos silêncios à volta da mesa. À medida que os anos foram passado, a necessidade de aprender mais, conversar e reflectir sobre a “Ilíada” e os clássicos gregos em geral tornou-se clara. E foi isto que me levou aos “Clássicos de Verão” na pequena cidade marítima de Annapolis.

No final de Junho, passei uma semana no St. John’s College a reler a “Ilíada” e a conversar com um grupo de colegas norteamericanos sobre o poema de Homero. Eva Brann, uma tutora lendária, disse-nos que as regras de um seminário de “Clássicos de Verão” no colégio são muito simples. Para começar, é essencial ter lido o livro que vai ser discutido. A seguir, é importante não falar longamente. Ouvir cuidadosamente o que os outros têm para dizer é algo que é encorajado. Finalmente, demasiados conhecimentos altamente especializados prejudicam a conversa à volta da mesa.

St. John’s College é uma instituição universitária de artes liberais. Durante quatro anos, todos os alunos estudam os grandes livros da ciência, matemática, astronomia, literatura, história, filosofia e aprendem música, grego e francês. À medida que os cantos da “Ilíada” foram avançando em Annapolis, fui-me apercebendo que as artes liberais parecem estar em declínio nos EUA. Jornais nacionais como o Wall Street Journal, o New York Times e o Washington Post publicaram uma série de artigos e colunas de opinião a lamentar a diminuição do número dos alunos inscritos nestes programas. A prestigiada Academia Americana das Artes e Ciências publicou o relatório “%e Heart of the Matter” em defesa da importância das humanidades e das ciências sociais. A tendência geral na sociedade norte-americana parece ser achar que a educação universitária deve ser uma coisa prática e útil para as famílias e para os alunos. As artes liberais são agora vistas como inúteis, um luxo ou uma total perda de tempo e dinheiro. O verdadeiro objectivo de uma educação universitária é um bom emprego. Ponto final.

A sociedade norte-americana parece estar a regressar ao passado. “Na América,” escreveu Alexis de Tocqueville, “quase todos os americanos precisam ... de exercer uma profissão. Ora, qualquer profissão exige uma aprendizagem. Deste modo, eles só podem dedicar os primeiros anos das suas vidas à cultura geral da inteligência; aos quinze anos, iniciam uma carreira; por conseguinte, a sua educação acaba frequentemente onde a nossa começa. Se ela prossegue, encontra-se então orientada para uma matéria especializada e lucrativa; estuda-se uma ciência como se aprende uma profissão e apenas se retira dela as aplicações de reconhecida utilidade no momento presente.” Mas, como Lise Van Boxel, a nossa segunda tutora no seminário sobre a “Ilíada” em St. John’s College me relembrou, a pergunta essencial nas nossas conversas sobre a educação universitária é “Útil para quê?”

Há pelo menos três razões para argumentar que as artes liberais são extremamente úteis. Para começar, ensinam-nos a pensar, a escrever e a comunicar de uma forma clara. Isto é essencial para as perspectivas de emprego de qualquer aluno universitário. Um dos paradoxos do actual debate sobre as artes liberais é que ele decorre na altura em que as universidades e as empresas se queixam publicamente da falta de capacidades de comunicação dos seus alunos e funcionários. David Abulafia, professor de História do Mediterrâneo na Universidade de Cambridge e autor do esplêndido !e Great Sea. A Human History of the Mediterranean (Londres: Allen Lane, 2011) disse este ano que os alunos “não sabem como escrever. O domínio da gramática, pontuação e ortografia é atroz.” A arte da escrita precisa de ser recuperada a nível universitário.

Num artigo publicado no New York Times, Alina Tugend cita um relatório do Chronicle of Higher Education and American Public Media’s Marketplace sobre o assunto: “No que toca às competências que são mais necessárias para as entidades empregadoras, os candidatos aos empregos têm falta de competências a nível de comunicação escrita e oral, capacidade de adaptação, gestão de múltiplas prioridades, tomada de decisões e solução de problemas.” Adam Lashinsky, um escritor especializado em tecnologia e finanças, chamou a atenção para a importância dos memorandos escritos no processo de decisão de Jeff Bezos e da sua equipa de gestores na Amazon. “Para os novos empregados, a primeira experiência é estranha,” disse Bezos. “Não estão acostumados a estarem sentados em silêncio numa sala a estudar com um grupo de executivos … É mais dificil escrever frases completas. Têm verbos. Os parágrafos têm frases-chave. Não é possível escrever um memorando com seis páginas de uma forma narrativa e estruturada sem ter um pensamento claro.” Uma educação nas artes liberais é uma enorme vantagem a este nível.

A liberdade política é segunda razão para uma educação liberal a nível universitário. Os EUA são uma república democrática e liberal. Se olharmos com atenção, vemos que não há assim tantas no mundo. Um passeio pelas ruas de Annapolis leva-nos a compreender que o país é uma das mais velhas e bem sucedidas destas repúblicas. E é também uma das mais improváveis. O Monumento Francês em memória dos soldados franceses que morreram a caminho da batalha de Yorktown em 1871 e a primeira estrofe de “%e Star-Spangled Banner” no Auditório Francis Scott Key no St. John’s College dizem- nos que a busca pela independência entre 1776 e 1812 foi um gesto político radical. O nascimento dos EUA foi extremamente incerto, sangrento e difícil. Os Pais Fundadores do país foram profundamente influenciados por aquilo que aconteceu à democracia ateniense durante a Guerra do Peloponeso e na república de Roma. Tentaram equilibrar a liberdade com a igualdade no respeito pela lei. Hoje, tal como aconteceu em 1776-1812, uma educação nas artes liberais é uma educação política que prepara os alunos para serem cidadãos de uma república que aprecia e quer manter a sua liberdade.

Finalmente, temos o mais importante numa educação centrada nas artes liberais – a liberdade pessoal. Como o programa académico de St. John’s torna claro, o objectivo deste tipo de educação é mudar as vidas dos seus alunos. O que realmente interessa em Annapolis não são notas mas sim literalmente a alma dos alunos. Como Sócrates disse ao tribunal ateniense que o declarou culpado de corromper a juventude e de não acreditar nos deuses, uma vida que não seja examinada “não é digna de ser vivida.”

A “Ilíada” está cheia de pequenos memoriais aos guerreiros que morrem em Tróia. Homero quer que a vida daqueles homens seja relembrada. “Todavia [Teucro] não acertou [em Heitor], mas no irrepreensível Gorgítion,/ filho valente de Príamo: foi no peito que lhe acertou/ com a seta, ele a quem dera à luz uma mãe de Esime,/ a bela Castinieira, no corpo igual às deusas./ Inclinou a cabeça como a papoila à qual no jardim/ pesam as sementes e as chuvas da primavera -/ assim inclinou a cabeça, pesada devido ao elmo.” Em St. John’s acontece o mesmo. Na entrada do auditório Francis Scott Key está uma pequena placa em memória de um professor - “Aqui passou/Alexander Meiklejohn com brilho no seu olho/A Verdade do seu lado/Liberdade nos seus ossos/Convicção no seu coração/E sem desprezo por ninguém.”

Falei nisto a William Braithwaite, o tutor do seminário sobre os Federalistas e Anti-Federalistas, no final de um animado almoço sobre as negociações constitucionais norte-americanas. “Acho que devia ver a placa memorial de James Mattews,” disse-me ele. Fui ver. As primeiras linhas diziam “De confiança, conscencioso e profissional no desempenho dos seus deveres, imensamente forte, com um carácter espiritual, e uma preocupação genuína e afectuosa pelos seus semelhantes e pelo Colégio.” Perguntei a Braithwaite quem tinha sido Matthews. Não estava preparado para a resposta. “Trabalhou trinta anos no colégio como funcionário de limpeza. Tinha imenso orgulho no seu trabalho, sabia muito bem quem era e o que queria da vida. Acho que o seu único livro era a Bíblia.” Olhei para aquela placa memorial espantado. Nunca tinha visto nada assim. E então William Braithwaite fez a pergunta essencial – “Que tipo de colégio celebra a vida de um funcionário de limpeza?”

Acho que a resposta é uma instituição que oferece aos seus alunos uma educação única e cheia de significado. E esta é uma das muitas razões que me levará de volta a Annapolis e aos “Clássicos de Verão.”

 


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