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Uma Obra Fundamental


História do Pensamento Político Ocidental

História do Pensamento Político Ocidental, de Diogo Freitas do Amaral, preenche um vazio na literatura portuguesa, mas também se afirma no contexto internacional pela sua qualidade pedagógica e científica. Daí que a sua tradução seria muito útil, uma vez que a obra ombreia com as melhores que conheço sobre o tema.

Diogo Freitas do Amaral
História do Pensamento Político Ocidental

Almedina, 2011

Guilherme d’Oliveira Martins

Presidente do Tribunal de Contas - Membro do Conselho Editorial de Nova Cidadania

No pórtico do livro, o autor refere expressamente a sua preocupação com a Educação para Democracia («Education for Democracy») como um dos objetivos desta apresentação. Trata-se de uma referência da maior importância, uma vez que o aprofundamento da reflexão sobre o pensamento político constitui uma oportunidade indispensável para a apreensão da ideia de Democracia, não como um instrumento técnico de legitimação, mas como um sistema de valores. E quando lemos o discurso de homenagem aos mortos da Guerra do Peloponeso de Péricles, transcrito por Tucídides, encontramos elementos fundamentais que temos de ler em termos prospetivos – compreendendo a conceção exclusiva da cidadania ateniense, mas estendendo-a no longo caminho que conduziu ao entendimento inclusivo da democracia hoje. «O Estado entre nós é administrado no interesse do povo e não no de uma minoria». E é a partir de Péricles que podemos encontrar as regras de ouro da democracia: a liberdade, o debate parlamentar aberto e plural, a lei igual para todos. Afinal, o poder da palavra: «a palavra não prejudica a ação; o que é prejudicial é não se colher a informação pela palavra antes de se avançar para a ação». Aqui se encontram as regras fundamentais de uma sociedade aberta, plural, respeitadora, livre e responsável. Infelizmente, houve quem não ouvisse os alertas de Péricles, o que conduziu ao triste epílogo da Guerra do Peloponeso. Mas, como lembrava há dias Edgar Morin, nada disto teria sido possível na democracia ateniense se a pequena cidade não tivesse resistido, em termos improváveis, às ofensivas persas – o que permitiu a essa pequena luz bruxuleante chegar até nós a partir dessa magnífico século V (a.C.).

UMA OBRA FUNDAMENTALA lição desta obra é a de que o caminho difícil da democracia, ao longo dos séculos, foi sempre de avanços e recuos, exigindo a determinação e a recusa da indiferença, e aceitando a imperfeição como marca do reconhecimento da dignidade humana e das suas diferenças. Mas a história obriga a compreender que o confronto e o debate determinam a discussão das ideias. Xenofonte preferiu analisar o poder em vez de partir da cidadania. Admirou Esparta e preconizou o autoritarismo. Em lugar da mediação, preferiu a imposição – e este confronto (da cidadania e do poder) tornou-se crucial na evolução pendular das conceções políticas. Platão sobrepôs a realização da sociedade justa à felicidade individual. Mas o grande dilema entre o serviço do Estado e o interesse individual ficou por solucionar. Aristóteles, representado por Rafael (na capa do livro) a estender a mão sobre a realidade terrena, apostou na mediação e na mediania, «a lei é a razão sem apetite», enquanto o poder pessoal é o «domínio das paixões incontroláveis». É certo que com o Estagirita a dignidade humana era desvalorizada, mas o equilíbrio de poderes e a exigência da reflexão e do tempo surgem como condições de justiça. E quando, já na Grande Grécia, Marco Túlio Cícero defende o dever de participação política e a «humanitas», como aperfeiçoamento da «paideia» grega, sentimos o início da consideração da liberdade individual (libertas, de libra, a balança livre e equilibrada). «O homem honesto não é nunca surdo aos seus comandos e proibições». E recebemos os ecos de Antígona de Sófocles, quando a lei cega e cruel tem de se confrontar com a lei natural gravada no coração de cada um. Aliás, não por acaso, Montesquieu considerou Cícero como um dos maiores espíritos que jamais existiu – fazendo-se representar à romana. Poderíamos ainda falar de Marco Aurélio e de Séneca, mas a grande lição da Antiguidade Clássica é a dos equilíbrios e mediações.

O caminho difícil da democracia, ao longo dos séculos, foi sempre de avanços e recuos, exigindo a determinação e a recusa da indiferença, e aceitando a imperfeição como marca do reconhecimento da dignidade humana e das suas diferenças.

A Idade Média, tão debatida ao longo dos séculos, reserva-nos surpresas paradoxais. Se é verdade que o pensamento clássico só foi retomado e voltou a ser compreendido pelo diálogo entre as civilizações mediterrânicas, a verdade é que há uma nova síntese que se vai preparando e que culmina no Renascimento. Santo Agostinho herdou a influência de Platão, contrapondo a Cidade Celeste e a Cidade Terrena, o que vem das bases maniqueístas do Prelado de Hipona. A sua influência foi profunda e multifacetada – desde o primado da Graça ao impulso da Reforma Luterana. Como salienta Charles Taylor, é o individualismo que começa a germinar. Oito séculos depois, Tomás de Aquino, leitor atento de Aristóteles, irá tornar-se um incómodo renovador de ideias. O poder vem de Deus para o povo, e nasce um novo entendimento (diríamos moderno) da dignidade humana legitimadora do poder e da justiça, o que nos conduz ao direito resistência e até ao tiranicídio. Estamos diante da superação do Agostinianismo político e do lançamento da ideia de poder limitado e de soberania popular. Ainda no século XIII, Marsílio de Pádua lançará a primeira proposta de um Estado independente do papado. Sente-se a oposição entre guelfos (seguidores do Papa) e gibelinos (próceres do Imperador), num confronto muito complexo em que Dante era guelfo branco, a defender uma necessária distância entre os dois poderes.

Aristóteles apostou Aristóteles apostou na mediação e na mediania, «a lei é a razão sem apetite», enquanto o poder pessoal é o «domínio das paixões incontroláveis». É certo que com o Estagirita a dignidade humana era desvalorizada, mas o equilíbrio de poderes e a exigência da reflexão e do tempo surgem como condições de justiça. 

E, ao falar de Itália, chegamos à Idade Moderna e a Maquiavel. DFA compreende bem o complexo papel desempenhado pelo autor de «O Príncipe ». É a criação de um Estado moderno que está no horizonte. Há uma tensão entre a virtude e a fortuna – e talvez Maquiavel, em vez de escrever um livro técnico sobre o poder, tenha querido fazer ver aos seus leitores que tudo pode tornar-se falível perante a evolução das circunstâncias. O «Anti-Maquiavel», de 1740, de Frederico o Grande é um curioso revelador disso – num espelho em que a contestação e a apologia se tornam simétricos. Estamos perante a autonomização da política. E não terá Maquiavel (como Montesquieu) demonstrado que só o poder limita o poder? Não disse Jorge de Sena que Maquiavel é um «moralista, na mais alta e nobre aceção da palavra: aquele que descreve os costumes humanos, os resultados a que eles conduzem e as causas que os condicionam, com objetividade clínica»? «Se daí pode ser extraído, ou não, (insiste Sena) um conjunto de normas morais que sejam o bem-viver em sociedade, eis o que excede o seu pensamento». E Erasmo, amigo do nosso Damião de Góis, talvez não esteja assim tão longe de Maquiavel. É apaixonante o caminhar nesta peregrinação pelo pensamento da coisa pública. E Tomás Morus põe em confronto a utopia e a realidade, num sentido crítico que nos leva à importância das utopias e distopias. A partir deste ponto nasce a necessidade de analisar os «estados de natureza» contrapondo-lhes a ideia de «contrato social».

«Por natureza, todos os homens nascem livres e por isso nenhum tem jurisdição política sobre qualquer outro ». Quem o afirmou foi Francisco Suárez, professor em Salamanca e Coimbra, que se encontra sepultado em Lisboa na igreja de S. Roque. É um dos autores do seu tempo que critica, com veemência, a doutrina do direito divino dos reis. Por isso, afirma «nenhum rei ou monarca possui a autoridade política imediatamente de Deus ou por instituição divina, mas sim mediante a vontade e instituição humana». Deste modo, leva bastante longe a importância da legitimidade do exercício, o que «por mais paradoxal que possa parecer faz parte das fontes da democracia moderna », como recorda DFA, a partir da afirmação de W. Thiemer. O que estava em causa, muito claramente, era o combate da tirania, tema que viria a ser invocado na Restauração da Independência de 1640. Em contraponto, Jean Bodin apresenta-nos o conceito de soberania absoluta, teorizando sobre a não separação de poderes e sobre o direito divino dos reis. Mas o tema político fundamental do século XVII, relaciona-se com o fim da guerra dos trinta anos e com o novo conceito de soberania que resulta do tratado de Vestefália. Nasce progressivamente a ideia de um contrato social, o que obriga a pensar o «estado de natureza », entendido diferentemente pelos autores mais relevantes desse tempo. Assim, Thomas Hobbes lança os fundamentos contratuais do Estado Absoluto. Leviatã, o símbolo dessa realidade, é um monstro que combate outros monstros mais perigosos do que ele. O «estado de natureza» humano é egoísta e injusto. O homem é o lobo do homem. E o Estado visa corrigir esse mal, estando investido de um poder disciplinador efetivo que visa alcançar a paz e a proteção – para que o «estado de natureza» dê lugar ao «estado de sociedade». Recorde-se, contudo, que o alemão Althusius prefere a noção de soberania partilhada, uma vez que conhece bem uma experiência de Estados confederais.

John Locke tem um conceito diverso de «estado de natureza», não necessariamente negativo e calamitoso. Pressupõe a existência de direitos individuais naturais, que envolvem a proteção da vida, da propriedade individual, da liberdade e da saúde, além de que «todo o homem tem o direito de punir o transgressor e de ser o executor do Direito Natural». O poder político deve, por isso, ser limitado, o que corresponde ao compromisso subjacente à «Gloriosa Revolução» inglesa (1688- 89), essencial para a moderna conceção liberal de democracia. Montesquieu será, porém, o grande teórico da «separação de poderes como garantia da liberdade individual». É o reformista lúcido que teve o génio de propor em termos práticos a separação de poderes que a Inglaterra viria a concretizar, salientando não só a importância do equilíbrio de poderes, mas o papel fundamental de um poder judicial «passivo, obediente às leis e neutro». Mas o debate sobre o tema é muito intenso. Se Voltaire liga o despotismo esclarecido à proteção da esfera individual, o cidadão genebrino Jean Jacques Rousseau centra-se no «estado de sociedade» baseado na noção de «vontade geral», que torna ambígua a concretização do poder de assembleia - «a democracia consiste essencialmente na vontade geral e uma vontade não pode ser representada (por outrem), ou é a mesma ou é outra, não há meio-termo». O verdadeiro contrato social exigiria para Rousseau uma revolução democrática, para que fosse garantida a todos a liberdade e a igualdade. No entanto, prevalece uma conceção de indivisibilidade do poder, a partir da vontade geral, o que gera efeitos contrários aos preconizados e reversibilidade do «estado de sociedade». E se o Abade Sieyès nos fala dos direitos do povo, Robespierre e Saint-Just defendem o império da virtude (depressa tornado «terror»), enquanto num sentido profundamente crítico, Edmund Burke, liberal de origem irlandesa, lança as bases do pensamento conservador, crendo na liberdade individual, na separação de poderes e apontando, essencialmente, para as perniciosas consequências do primado da «vontade geral» de Jean-Jacques.

A revolução industrial e o livrecambismo abriram novos horizontes no pensamento político. Adam Smith fala-nos de uma «mão invisível», como Hugo Grócio referia o mar livre, os autores de «O Federalista» e Thomas Paine ligam o tema dos direitos individuais e da liberdade religiosa, a procura da felicidade e a justiça distributiva à construção de um «contrato social» inteiramente novo, de que o paradigma são os Estados Unidos. O século XIX será oportunidade para um riquíssimo fervilhar de ideias, a partir do debate lançado no século XVIII. Enquanto Kant acredita na construção da paz perpétua, no respeito mútuo do imperativo categórico e na limitação do Estado pelo direito e pela ética, Hegel tende a absolutizar a razão do Estado, em nome da liberdade, como «fim da História», enquanto consumação de uma ideia dialética emancipadora, que muitos dos seus discípulos irão desenvolver diversamente. Tratava-se, no fundo, de procurar equilibrar a liberdade individual e a autoridade do Estado, tarefa difícil e hercúlea.

Alexis de Tocqueville é uma referência especial para DFA. Sente-se uma particular identificação (que partilho), a partir da ligação entre liberdade e igualdade e da procura de uma mediação durável (que Raymond Aron trouxe para a ribalta). Dá que pensar a afirmação: «A América representa na sua situação atual o mais estranho fenómeno: os homens surgem nela mais iguais pela sua fortuna e pela sua inteligência do que em qualquer país do mundo, ou em qualquer século da história que nos seja conhecida ». A atualidade do pensamento de Tocqueville, fundador da Ciência Política, está no reconhecimento (semelhante ao do nosso Herculano) de «um fundo ético comum à “moralidade cristã” aceite pelos católicos e protestantes, e à “igualdade política e civil” preconizada pelos “philosophes” das Luzes e pelos políticos da esquerda liberal». E ao lermos Guizot (o homem do apelo burguês - «Enrichissez-vous!») ou Saint Simon, o apóstolo da tecnocracia socializante, somos convocados para a «questão social », a para o combate das injustiças gritantes da industrialização – Proudhon, Marx ou Bernstein, mas também Leão XIII. E chegaremos ao compromisso social-democrata do século XX (de Ernst Wigforss ou de Olof Palme), mas também à «economia social de mercado », à renovação da «doutrina social católica» (Maritain, João XXIII e Vaticano II). Repositório rico de referências, de reflexões e de informações, a «História do Pensamento» coloca a construção de democracia como uma tarefa exigente e sempre inacabada, centrada no pluralismo, na crítica e num sistema de valores ancorado na dignidade humana. Parafraseando Hans Jonas, há um princípio de responsabilidade a preservar em permanência.


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