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A Liberdade na América


 

Mal se ouviu a voz do capitão do voo de Madrid para Boston a comunicar que estávamos prestes a iniciar a descida para o aeroporto Logan International, transformei-me num autêntico miúdo: era a primeira vez que visitava a América, e estava desejoso de vê-la através da janela.

 

Bruno Alves

Assistente do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

Infelizmente, a chuva era tanta e as nuvens tão negras que esse momento pelo qual eu tanto aguardava não aconteceu senão cerca de 20 minutos depois, já quase em plena pista de aterragem. Não seria a última vez nesta minha estadia nos EUA em que o clima parecia conspirar contra a minha pobre pessoa: em Dallas, dias depois, ameaças de tornados e tempestades violentas atrasaram-me o regresso e fizeram-me temer pela minha vida (devo admitir que mais pela minha falta de sentido das proporções do que pela real severidade das ditas ameaças).

No final de Abril, o Instituto de Estudos Políticos teve a gentileza de me enviar a Dallas à conferência “Atlas Experience”, organizada pela Atlas Economic Research Foundation, e consagrada à promoção da Liberdade. Logo a abrir, pude assistir a Leonard Liggio, o célebre académico libertário, à conversa com John Blundell, acerca da sua vida, o contacto com figuras como Murray Rothbard ou Ayn Rand, e um olhar “por dentro” da vida intelectual americana. Mais tarde, John Goodman, presidente do think-thank National Center for Policy Analysis, fez um interessante (e bem-humorado) discurso acerca do que deve ser um think-thank, e a sua importância na afirmação de uma agenda política, relatando a sua experiência pessoal no NCPA. Outro destaque da conferência foi a palestra de Johan Nordberg, o sueco autor de In Defense of Global Capitalism, que procurou demonstrar que só poderemos convencer as pessoas dos méritos da liberdade se não nos concentrarmos exclusivamente em argumentos de “eficiência”, devendo ao invés fazer uma “defesa do mérito moral” do liberalismo clássico (um conselho que deveria ser tido em conta pelos políticos portugueses). No dia seguinte, foi precisamente isto que fez John Mackey, o CEO da Whole Foods, uma cadeia de supermercados de produtos alimentares biológicos e orgânicos originária de Austin, no Texas: mostrar como é a livre iniciativa e o livre comércio que nos permitem atingir uma maior qualidade de vida, e não as soluções “politicamente correctas” de uma parte significativa da opinião pública; que é o livre mercado, e não a autarcia ou o planeamento, que tornam as vidas de todos (produtores, consumidores, retalhistas) mais prósperas e melhores, realizando os valores “igualitários” das pessoas que geralmente se opõem ao liberalismo clássico.

No entanto, esta conferência não foi a única razão pela qual viajei até aos EUA: tendo familiares a viver no Estado de Rhode Island, aproveitei para lhes fazer uma visita que eles há muito pediam (e da qual receio que rapidamente se tenham arrependido), o que me permitiu formar uma impressão não apenas da conferência em si e da vida quotidiana em Dallas, mas também de Boston, locais como Providence, Newport, Atlleboro ou Fall River (todos em Rhode Island), e também New York. Como disse, era a primeira vez que visitava a América, e queria ver o máximo possível dela.

Algo que salta imediatamente à vista de um visitante vindo de Portugal são os infindáveis e por vezes gigantescos billboards publicitários de advogados, anunciando os seus serviços e prometendo aos potenciais clientes vastas fortunas obtidas em processos: uma pessoa que tivesse tido a infelicidade de partir uma perna era encorajada a ver este literal passo em falso como o primeiro para uma vida de prosperidade, desde que ligasse para “The Hammer” Mike requisitando os seus serviços (e, claro, lhe desse uma parte significativa da tal fortuna, mesmo que ele não a conseguisse obter para o vitimado). Isto seria impensável em Portugal, tal como o são os anúncios televisivos a uma marca em que outra, concorrente, é atacada e nomeada: enquanto que cá, não é permitido dizer mais que “outras marcas falham”, lá o nome da “outra marca” é mencionado, e todas as suas desvantagens são atacadas de forma a que aquela que está a ser promovida seja vista como a oitava maravilha do universo.

Estes parecem ser exemplos de uma maior liberdade que tendemos a associar aos EUA. Mas essa “maior liberdade” rapidamente parece desaparecer se ligarmos a televisão: é impressionante ver filmes ou séries que cá em Portugal são transmitidas com todos os impropérios e violência originalmente escritos e filmados, e chegar aos EUA e ver versões censuradas em que (até na televisão por cabo) as palavras mais indecorosas são silenciadas e sequências mais violentas são cortadas. Por outro lado, se se assistir a um dos muitos programas de “debate” político nas várias cadeias televisivas, veremos uma discussão violentíssima, repletas de ataques, insultos, acusações e insinuações a adversários políticos, que, se feitas em Portugal, causariam as seus autores anos e anos de complicações em tribunais com processos por difamação. No fundo, a sociedade americana parece ter uma atitude algo “esquizofrénica” com a liberdade de expressão, ora permitindo a maior das desinibições, ora demonstrando uma sensibilidade extrema para com tudo o que possa ser considerado minimamente “ofensivo”.

A Liberdade Americana

Aliás, a relação dos Americanos com “a Liberdade” parece complicada: como se estivessem casados com ela há muito tempo, e por vezes se cansassem da convivência, os americanos são inegavelmente livres, mas por vezes parecem achar a sua liberdade excessiva. O colunista do New York Times, David Brooks, escreve abundantemente sobre o que ele chama “o crescente desejo de comunidade” dos americanos. Em conversas com os nativos, pareceu-me que Brooks tinha razão: muitos me falavam da Europa como um paraíso em que as famílias são todas muito unidas, em que as pessoas vivem de uma forma mais pacífica e confortável, e menos preocupadas com “desejos materiais”. São ideias que resultam de filmes feitos por americanos sobre a Europa, que em nada reflectem a realidade. Há mais divórcios na Europa do que nos EUA, a taxa de natalidade europeia é inferior, e nenhuma cultura como a dos EUA está tão “infectada” por valores “pós materiais” (como o sucesso material da Whole Foods aliás comprova).

Para não falar que a sociedade europeia parece mais fragmentada que a americana. A velha impressão que assaltou Tocqueville quando este fez a sua viagem à América, a de que “americanos de todas as idades, condições e tendências” tinham o hábito de formar associações “de diversíssimos géneros”, parece ser algo que ainda hoje é verdadeiro. Desde ligas amadoras de softball (uma espécie de baseball para pessoas com falta de talento) a associações comunitárias de ajuda aos pobres, passando por inúmeras fundações cujo único propósito é o da ajuda aos mais necessitados, é impossível não notar como ainda hoje os americanos mantêm esta “arte da associação” de que Tocqueville falava: as minhas duas primas (ambas da minha idade, na casa dos vinte e tal anos), por exemplo, só entre elas estão envolvidas numa fundação de ajuda aos semabrigo de Providence, a programas de apoio a refugiados, ou associações de Mulheres Luso-Americanas.

Nem eu nem nenhum dos meus amigos portugueses fazemos parte do que quer que seja. E por isso, perdemos a grande vantagem que Tocqueville via na “arte da associação”: o de evitar a interferência de um “poder imenso e tutelar”. Os indivíduos, que “quase nada podem empreender sozinhos e nenhum deles pode obrigar os seus semelhantes a ajudá-lo”, têm de aprender a “auxiliar-se livremente” para conseguirem viver decentemente. O problema da sociedade americana não é o de ter um “mercado selvagem” e “Estado a menos”, deixando “desprotegida” uma parte significativa da população: é o de, apesar de tudo, ainda ter “comunidade” a menos, o de haver muita gente que vive isolada dos seus vizinhos, que não pratica a “arte da associação” ou dela não usufrui. A forma de satisfazer o tal “desejo de comunidade” de que Brooks fala não é mais Estado, não é “fazer como a Europa”. Quanto mais não seja, porque o problema da Europa é exactamente o mesmo, apenas muito mais grave, por ter menos liberdade, por estar sujeita ao tal “poder imenso e tutelar”. Aqueles que “desejam a comunidade” precisam de liberdade, e basta olhar para a América para o perceber.


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