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Sentimento de um Ocidental


 

 

Sentimento de um Ocidental

Para Niall Ferguson, o Ocidente não é uma mera designação geográfica, mas é essencialmente um conjunto de normas, comportamentos e instituições que, ao transcenderem a singularidade do lugar original, se transformaram numa presença universal e universalizante.

Niall Ferguson
Civilization
The Six Ways the West Beat the Rest

Allen Lane, 2011

Carlos Marques Almeida

Doutorando do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

A pergunta impõe-se como uma espécie de condenaçãoA pergunta impõe-se como uma espécie de condenação à lucidez – o que distingue então o Ocidente na confusão das ruínas de tantas civilizações? Em Civilization – The West and the Rest, Ferguson identifica um conjunto de seis elementos (“killer apps”) que estão na base da ascensão e domínio Ocidentais. Em primeiro lugar surge a Competitividade, entendida como a descentralização da vida política e económica dando origem aos estadosnação e à economia de mercado. Logo a seguir vem a Ciência, um modo de inquérito, de estudo e de compreensão que, em última instância, permitiram o domínio e a transformação do Mundo Natural. Em terceiro lugar são eleitos os Direitos de Propriedade, uma condensação do estado de direito como forma de protecção da propriedade privada e de resolução pacífica dos choques e dos naturais conflitos entre interesses legitimamente divergentes. Com esta categoria, o Autor justifica a formação do Governo Representativo enquanto expoente máximo da estabilidade do Governo dos Homens pela acção dos Homens. Segue-se na sequência a Medicina, um ramo da Ciência que permitiu o controlo da doença e a expansão do horizonte temporal da existência humana. Em quinto lugar é a Sociedade de Consumo que assume o protagonismo, a configuração de um modo de produção material que exponencia uma Revolução Industrial colossal nos seus efeitos de escala, economicamente avassaladora e imparável na resposta às necessidades materiais

de uma Sociedade de Bem-Estar. Finalmente, é a Ética do Trabalho, uma emanação directa do espírito do Cristianismo (na interpretação de Ferguson uma derivação essencialmente atribuível ao Cristianismo Protestante), e que encerra o elenco de categorias ao constituir a fibra moral que mantém a coesão e a unidade de um movimento dinâmico e potencialmente instável criado pela interacção das cinco primeiras categorias. Uma breve contemplação desta essência do Ocidente permite ao observador esclarecido identificar desde logo uma particular tradição da teoria política – John Locke, Adam Smith, o Iluminismo céptico e a moldura moral do Cristianismo. A novidade de Ferguson é apenas a reafirmação de uma identidade deliberadamente silenciada pela deriva relativista da auto-negação.

Quando o Autor afirma que se assiste ao fim de uma ascendência do Ocidente longa de 500 anos, tal significa que algumas destas categorias começaram a ser copiadas e aplicadas em regiões antes estagnadas por motivos culturais e ideológicos, nomeadamente, na imensidão do Império do Meio, a China. O paradoxo do declínio do Ocidente é assim a resultante do triunfo do Ocidente, uma força universal que pela sua abertura e expansão no Mundo se fragmentou até ao limite de uma potencial extinção. No entanto, Ferguson não é um historiador do fim dos séculos, não é um pensador dominado pelas neuroses do declínio, nem mesmo um profético intelectual intérprete do sentido da História.

A questão do entendimento da História merece uma reflexão mais atenta. O Autor sofre de uma profunda influência de um filósofo de Oxford que dá pelo nome de R.G. Collingwood. De modo sucinto, esta influência concretiza-se de diversas formas, nomeadamente, e numa ordem livre de exposição – a) O passado não é uma recorrência mo r t a no tempo, mas sim uma realidade inscrita no presente; b) Toda a História é uma História do pensamento; c) O processo de inferência histórica requer o privilégio da imaginação que se projecta no passado; d) O real significado da História resulta de uma sobreposição entre passado e presente; e) A função da História é a de permitir uma profunda penetração intelectual que ilumina e explica as incidências do presente; f) Os verdadeiros problemas da História nascem dos verdadeiros problemas práticos, uma eloquente “present-mindedness” que mantém a continuidade entre o passado e o presente. Há aqui uma óbvia vibração burkeana, uma dimensão conservadora que se propaga na visão do Mundo que Ferguson pratica e que se concretiza na presente reflexão sobre o Ocidente. A crença na História é também a crença na resiliência do espírito humano, logo o Autor não se abandona ao registo prolixo da literatura do declínio. Pelo contrário, é precisamente a falta de confiança, a pusilanimidade, a ignorância da causa da História, tudo convenientemente concentrado na recusa dos seis elementos elencados por Ferguson, que ameaçam o Ocidente com a degeneração, com o declínio e com a extinção. A grande ameaça ao Ocidente não parte de nenhuma outra civilização, nasce sim de um niilismo iluminado e auto-suficiente transformado em modo de vida.

Uma breve contemplação desta essência do Ocidente permite ao observador esclarecido identificar desde logo uma particular tradição da teoria política – John Locke, Adam Smith, o Iluminismo céptico e a moldura moral do Cristianismo

Assim, os “killer apps” de Ferguson são verdadeiramente os valores constituintes

Assim, os “killer apps” de Ferguson são verdadeiramente os valores constituintes da Civilização do Ocidente, categorias hoje separadas e dispersas pelo Mundo sem que alguma vez se entenda que a diferença Ocidental reside no ‘ensemble’ dos seis elementos combinados em graus múltiplos de complexidade. Refira-se aliás que o Autor não defende uma concepção de História cíclica, nem mesmo uma ideia de História movida por uma certeza dialéctica. A História, e fazendo uma transposição conceptual, a Civilização do Ocidente é entendida como um sistema complexo, caracterizado por longos períodos de ‘stasis’ seguidos por mudanças súbitas e radicais, comportamento este descrito pela ideia de um “equilíbrio pontuado”. A interpretação quase ‘naturalista’ de Ferguson reforça a estabilidade do Ocidente em uníssono com uma contínua capacidade de modificação e de adaptação. A flexibilidade Ocidental é a resposta para um futuro em aberto, a resposta que se desenha em permanência através de uma pluralidade de futuros possíveis. Nada é ainda definitivo porque nada está ainda definido.

No início e no final de Civilization, Ferguson não deixa de exibir uma profunda atracção pelo Oriente. Aliás, existe um espectro que vagueia silencioso por toda a obra, e esse espectro tem os exactos contornos de uma omnipotente China. Seja o passeio ao longo do Bund de Shanghai, seja o nevoeiro e a poeira de Chongquing, seja a encantatória música de Angel Lam na sua “Orientalização da música clássica” do Ocidente, o fascínio Oriental é uma variante dos fumos do ópio que prenderam múltiplas gerações a paraísos artificiais e que cativam a alma e o espírito do Autor. Neste ponto importa uma referência inspirada no livro Civilisation (1969) da autoria de Kenneth Clark. A nova face da cidade de Shanghai assemelha-se na violência e na dimensão do empreendimento a um imenso espectáculo da Natureza. A Natureza aqui é a representação do engenho do Homem à superfície do Planeta. Kenneth Clark escreve sobre as grandes catedrais Góticas e apetece sublinhar que Shanghai é uma imensa catedral edificada em glória da prosperidade do lucro ao serviço de uma nova engenharia social. Ao longe, Shanghai projecta o brilho e a imponência de uma cidade celestial. Ao perto, Shanghai absorve a metálica espiral da voracidade humana - fria, cruel, implacável nas ambições e parasita de todos os sonhos. Shanghai é a versão pósmoderna do “materialismo heróico” de que fala Kenneth Clark. O ‘vortex’ gerado pela ideia não deixa de quase confundir Ferguson. No entanto, o Autor permanece sobretudo consciente da fissura moral e intelectual da Civilização do Ocidente. Como escreveu W.B. Yeats, The best lack all conviction, while the worst / Are full of passionate intensity. A Niall Ferguson não lhe falta a convicção de que o Ocidente se confunde no tempo e na História com a Civilização da Liberdade. Eis uma rara percepção em tempos tão conturbados.


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