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Vermelho e Negro


 

Vermelho e Negro

Se é difícil contestar a pertinência de um “livro negro” do comunismo, é mais fácil antecipar hesitações quando se trata de um “livro negro” da Revolução francesa. É evidente que o “livro negro” aqui em apreciação sucede à publicação há não muito tempo de um outro dedicado à tragédia e horror da experiência comunista.
Renaud Escande
O Livro Negro da Revolução Francesa

Aletheia, 2010

POR MIGUEL MORGADO

Vermelho e NegroProfessor Auxiliar do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

Mas um “livro negro” não é um mero inventário de acontecimentos terríveis, nem uma apresentação seca de estatísticas de sofrimento humano e de degradação material. Um “livro negro” tem a intenção primordial de desmantelar mitos ou ilusões.

Nesse sentido, é menos óbvio um “livro negro” da Revolução francesa, já que, num olhar retrospectivo, se pode dizer hoje que o mito do comunismo se revelou bastante mais frágil do que o mito fundador de 1789. Depois da queda do muro de Berlim, ou da dissolução da União Soviética, a base de recuo de um número vasto de famílias políticas parecia ser precisamente a Revolução em França no final do século XVIII. A história da Humanidade continuou a ser dividida num antes e num depois, mas o momento separador rapidamente deixou de ser o Outubro de 1917. Voltou-se a encontrar um momento zero da história da Liberdade no Verão de 1789. E esta ideia voltou a converter-se quase numa crença instintiva em muitos sectores políticos e intelectuais europeus.

Por outro lado, a destruição do mito parece ser muito mais fácil no caso da Revolução francesa, na medida em que nela é mais flagrante a contradição entre a auto-interpretação e os factos – ou entre a teoria e a prática. Afinal, o comunismo, incluindoa teoria que o preparou, sempre avisou que antes da inauguração do reino da fraternidade viriam forçosamente a guerra e o terror. A apologia do terrorismo como política prática nunca foi segredo de círculos estreitos da vanguarda revolucionária. Pelo contrário, foi objecto de repetidas declarações públicas, tanto solenes como informais. Já com a Revolução francesa as coisas passaram-se de modo bem diferente. É verdade que temos também a apologia do terror nos discursos de Robespierre e de Saint-Just, bem como nos escritos de Jean- Paul “O Amigo do Povo” Marat. Mas essas exortações sanguinárias surgiram relativamente tarde na Revolução, facto que permitiu a sucessivas gerações separar a “traição” à Revolução da sua fase inicial e supostamente autêntica. Na realidade, a promessa da Revolução fora bem diferente; traçara uma conversão espontânea dos corações e das consciências ao mundo da fraternidade. Jules Michelet, o historiador que mais se esforçou por descrever a Revolução como uma epopeia popular deste género, viu essa conversão manifestar-se, sem outro recurso ou socorro que não a mais pura generosidade, na famosa Festa da Federação, que teve lugar em Paris no primeiro aniversário da tomada da Bastilha. Contudo, esse mundo da fraternidade nunca foi mais do que um mito, e a violência, a desordem e a sombra da tirania acompanharam a Revolução desde o seu início. A apologia jacobina do Terror apareceu para dar sentido ao que não tinha sentido segundo a retórica dita autêntica da Revolução. Foi, pelo menos neste aspecto, mais consistente do que as várias declamações dos seus sucessivos adversários políticos.

O Livro Negro da Revolução Francesa é uma obra colectiva. É, como quase todas as obras colectivas, desigual na qualidade dos vários contributos. Mas é assinalavelmente homogénea na perspectiva de análise escolhida. Não me refiro ao pendor crítico – e radicalmente crítico – no tratamento dos acontecimentos revolucionários e do seu significado. Refiro-me antes ao favor com que descreve o Antigo Regime, pelo menos nos seus últimos anos e na pessoa do seu último monarca Luís XVI, e claro no jogo comparativo com o que se lhe seguiu. Nota-se aqui uma diferença relativamente à abordagem igualmente crítica de François Furet e dos seus discípulos. Mas não existe diferença no argumento fundamental: que a divisão da Revolução entre 89 – a Revolução boa – e 93 – a Revolução má – é artificial quando permite alicerçar um julgamento global sobre o significado histórico da Revolução.

O livro procura reabilitar a figura de Luís XVI e fazer-lhe justiça diante da mitologia revolucionária que seria invocada para executá-lo como um déspota, coisa que ele manifestamente não era. Não se anda longe da verdade se se disser que Luís XVI, com todas as suas insuficiências políticas, foi o primeiro rei reformista e modernizador que a França tivera em mais de 100 anos. Escolheu o iluminista e progressista Turgot para governar a França e admitiu (por duas vezes) na governação o calvinista Jacques Necker. (Diga-se que Necker não é muito bem tratado neste volume, a meu ver não sem uma grande dose de injustiça). Os republicanos franceses, querendo vingar-se da monarquia enquanto tal, cometeram a iniquidade de executar o casal real, objectivamente inocente das acusações que lhes fizeram – algumas delas verdadeiramente aberrantes e que anteciparam com transparência as monstruosas iniquidades dos juízes soviéticos e nacional-socialistas no século XX –, e de abandonar o delfim, o menino Luís XVII, no Templo para morrer.

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Além disso, o volume procura situar no centro do problema a questão religiosa. A Constituição Civil do Clero, a sorte dos clérigos e dos crentes leigos, a falsa promessa de liberdade religiosa, a guerra sistemática a todas as instituições e sedes de autoridade que pudesse fazer frente ao absolutismo do “povo soberano”, a ligação da Igreja à “contra-revolução”, são aspectos considerados na obra com atenção. O seu estudo é orientado pela conclusão essencial de que a Revolução foi também uma tentativa deliberada de descristianização, primeiro da França, e depois, esperava-se, da Europa.

O Livro Negro da Revolução Francesa é muito útil na recapitulação da escala da violência e terror que marcou a Revolução. Sobretudo nos capítulos dedicados às “jornadas revolucionárias” do 10 de Agosto de 1792, e, como não podia deixar de ser, a guerra civil na Vendeia, um excelente candidato à categoria de genocídio, atendendo ao simples facto de que não há muito mais palavras alternativas para a matança metódica, massiva e exterminadora levada a cabo no Oeste francês pelo jacobinismo então triunfante. É útil para fazer perceber que as vítimas do Terror não foram apenas os privilegiados “aristocratas”, como a cultura popular de origem cinematográfica em tempos divulgou, mas incluíram gente de todas as classes sociais, ateus e religiosos, camponeses e citadinos, monárquicos e republicanos. Na Vendeia foi a gente comum, grande parte dela pobre e analfabeta, quem pagou.

Há todavia um tema que prima pela sua ausência. A ausência faz-se notar porque em obras desta índole e com esta orientação a sua referência tornou-se obrigatória. Falo evidentemente daquilo a que se convencionou chamar as origens intelectuais ou culturais da Revolução francesa. Estranhamente, não existe no volume qualquer consideração sobre a relação do pensamento político europeu no século XVIII (ou XVII) e a Revolução propriamente dita. Do mesmo modo que os revolucionários correram imediatamente à procura de uma linhagem intelectual que os justificasse, também não se falha no rigor histórico se se disser que a responsabilização da filosofia dos philosophes pela catástrofe revolucionária começou com a própria Revolução. Esta questão só aparece indirectamente na segunda parte intitulada “O Génio”, em que se analisam as reflexões de críticos da Revolução no século XIX, desde Balzac e Chateaubriand até Donoso Cortés, passando por Joseph de Maistre e Bonald. E também aqui se nota outra ausência, a de Tocqueville. Mas é preciso recordar que Tocqueville quis fazer vingar a tese da continuidade fundamental entre a centralização do absolutismo e a obra da Revolução. Vincou mais a continuidade do que a descontinuidade. Já este Livro Negro é um testemunho de uma radical descontinuidade.

Talvez o capítulo mais sintético seja o que foi intitulado “Festejar-se-á o Tricentenário da Revolução?”. Começando por ser uma crítica do que em França se fez em torno do Bicentenário da Revolução, o capítulo aponta para uma gradual dissipação na consciência colectiva da necessidade de comemorar o acontecimento, o que vale por dizer uma gradual desmitologização da Revolução. No fundo, talvez seja esse um modo particular de concretizar o aviso de Joseph de Maistre segundo o qual a França não precisava de uma “contra-revolução”, mas do “contrário de uma revolução”. Resta saber se a Vª República francesa sobreviveria à queda do mito.


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