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Convergências e Divergências


 

Para quem queira fazer um curso hiper-intensivo de história económica portuguesa no período posterior à Segunda Guerra Mundial, não são mais de meia-dúzia os factos que precisa de conhecer. No final de todas as  contas, o resumo do curso poderia ser o seguinte. De 1960 até 1973 Portugal registou um crescimento  económico assombroso.

 

POR MIGUEL MORGADO

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

 Convergências e Divergências

Seja qual for a perspectiva que se adopte, ou os indicadores escolhidos. Cresceu a galope mais rápido do que as restantes economias do mundo, elas próprias a crescer na sua época mais dourada. Crescemos muito mais do que o Norte da Europa – daí que o chamado “processo de convergência” com as economias do núcleo europeu tenha sido muito mais acentuado do que o que tivemos durante o período democrático. Em certos anos crescemos até mais do que os pujantes “Tigres” asiáticos, que começaram sensivelmente a sua notabilíssima expansão no mesmo período. Nesta década e meia, o País registou elevadas taxas de investimento, uma profunda aceleração do movimento de urbanização, de industrialização e terciarização da economia, crescimento constante do rendimento nacional tanto agregado como per capita. Tudo isto sem desequilíbrios externos de relevo. A respeitável poupança no sector privado e a parcimónia no sector público garantiam uma sólida posição externa.

Na verdade, estes 13 anos foram apenas a intensificação de um crescimento económico iniciado nos anos 40. Como resume Luciano Amaral, “durante a [II Guerra Mundial], o PIB per capita português era apenas de cerca de 30% do PIB per capita dos países mais ricos; em 1973, alcançou um nível de mais de 50%, uma recuperação de 20 pontos percentuais”. Com outras séries, Abel Mateus, por exemplo, chega a conclusões equivalentes. Em 1950, o PIB per  capita português era 47% do PIB per capita da média do PIB per capita da União Europeia a 15. Em 1973 era já 67%. Em 1992 era ligeiramente superior – 69% – para regredir em 2005 para 68%. Esta história seria ainda mais embaraçosa se comparássemos os nossos números da “convergência real” com os de países como a Irlanda, a Espanha e até a Grécia, para não mencionar a Polónia, a República Checa ou a Eslováquia.

Nazaré, 1940
Nazaré, 1940
Campo Grande,Lisboa 1950
Campo Grande,Lisboa 1950

Depois, caiu a autocracia, caiu o império ultramarino e veio a Revolução. Além disso, todos estes acontecimentos, que por si mesmos já acarretariam sérias consequências económicas, coincidiu temporalmente com o primeiro choque petrolífero que afectou o crescimento económico um pouco por toda a parte no mundo e pôs fim à chamada segunda Belle  époque. Como se sabe, a revolução política foi mais do que isso. Foi também a transformação súbita do modo de organização económica. O desenvolvimento do regime democrático em Portugal foi simultâneo com a  perturbação mais ou menos regular, mais ou menos profunda, dos mecanismos e instituições  económicos nacionais. Sem surpresas, os efeitos fizeram-se sentir imediatamente. O que não se sabia então era que o desempenho económico português jamais voltaria a ser o mesmo, e que 36 anos depois o País assistiria impassível à travagem do processo de convergência que se julgava adquiridos.

Seja como for, em 1986 a perspectiva não era essa. Era verdade que Portugal tivera dez anos  difíceis, inevitáveis no contexto revolucionário e de construção de novas instituições políticas e sociais, mas que agora – 1986 – o País retomaria a sua trajectória de enriquecimento, estabilidade e de aproximação aos padrões de vida das nações mais desenvolvidas. 1986 foi um ano especial que podia alimentar essas esperanças. Havia um novo governo com ímpeto reformista e o primeiro Chefe de Estado não sujeito à tutela militar. A revisão constitucional de 1982 era assim  politicamente confirmada e o PREC oficialmente terminado. No plano económico, esse ano foi também o da verificação da resposta muitíssimo positiva dada pela economia portuguesa à segunda crise financeira (com a correspondente intervenção do FMI) em 6 anos. Finalmente, foi o ano da adesão formal à Comunidade Económica Europeia que daria um apoio e fulgor à reforma económica do País (abertura dos mercados, liberalização do comércio externo, privatizações) que de outra forma teria sido provavelmente impossível, ou pelo menos não teria sido tão rápida. Parecia que a partir de 1986 Portugal seria um país cada vez mais europeu, isto é, mais estável e mais próspero.

O livro procura responder à pergunta do momento: Porquê? Em particular, “porquê” do ponto de viragem em 1993, do agravamento inopinado por volta de 1997 e o da estagnação desde 1999 até hoje

Supermercado Pão de Açucar nos Olivais, Lisboa, 1977
Supermercado Pão de Açucar
nos Olivais, Lisboa, 1977

E não foi isso que aconteceu? De facto, foi… até 1992- 1993, o ano de (mais uma) viragem na trajectória da economia portuguesa. Entre 1986 e 1992, Portugal voltou a “convergir” com a Europa mais rica, com boas taxas de crescimento, embora não ao nível do período de 1960-1973, e sem desequilíbrios externos. Foi o último período globalmente positivo da economia portuguesa, e que ainda serve para demonstrar que o País não sofre de uma misteriosa doença de paralisia colectiva, e que, pelo contrário, responde muito bem a contextos institucionais e estruturais sãos. Mas terminou em 1992-1993, uma vez mais em coincidência com uma crise internacional que afectou sobretudo a Europa. Desde então praticamente todos os indicadoresa económicos de referência deterioraram-se. Portugal nunca mais voltaria a conhecer crescimento económico elevado e persistente. E nunca mais voltaria ao equilíbrio externo. Até chegarmos às aflições do presente.

A nossa democracia foi muito mais lesta a reproduzir as instituições políticas e as que constituem o Estado-Providência do norte europeu do que a imitar o tecido económico e a produtividade, que em última análise sustentam aquelas instituições, dos seus pares na União Europeia

É esta narrativa que A Economia Portuguesa, As Últimas Dé-cadas apresenta de modo admirável. Sucinta, com a informação que é indispensável e com outra que é sempre pertinente e que conta uma história perfeitamente compreensível. Além disso, o livro procura responder à pergunta do momento: Porquê? Em particular, o “porquê” do ponto de viragem em 1993, do agravamento inopinado por volta de 1997 e o da estagnação desde 1999 até hoje. As explicações do autor são várias e muitas vezes caracterizadas por uma subtileza que uma leitura mais apressada pode fazer perder de vista. Sobretudo, permitem-nos perceber que as nossas dificuldades não são temporárias nem “cíclicas”.

Convergências e DivergênciasEm retrospectiva, a história económica portuguesa durante experiência democrática foi marcada por um desfasamento entre aquilo a que Amaral chama “convergência política e institucional”, por um lado, e “convergência económica”, por outro. Isto é, a nossa democracia foi muito mais lesta a reproduzir as instituições políticas e as que constituem o Estado-Providência do norte europeu do que a imitar o tecido económico e a produtividade, que em última análise sustentam aquelas instituições, dos seus pares na União Europeia. Esteve mais atenta a estruturas e serviços que, de um modo ou de outro, precisam de financiamento do que às fontes derradeiras desse mesmo financiamento. Neste sentido, os anos 90 foram importantes na produção desse desfasamento, assim como do crescimento do sector público administrativo e das despesas a ele associado.

1992 foi também o ano em que a política cambial nacional começou a desistir da sua autonomia. Primeiro com a introdução do escudo no Mecanismo de Taxas de Câmbio do Sistema Monetário Europeu, que atravessou nos anos 92 e 93 tempestades sucessivas e crises cambiais quase semanais, e mais tarde com a integração de Portugal na União Monetária que criou o euro. Esta decisão política foi decisiva. Não acompanhada por outras compensações para o sector dos bens transaccionáveis, que teriam de provir da disciplina do orçamento do Estado, dos incentivos à poupança, da contenção salarial e dos preços, a renúncia a uma política cambial independente, o que vale por dizer dependente apenas das condições internas da economia portuguesa, pôs em marcha um processo de apreciação real da economia. Ou, em termos mais rigorosos, de apreciação da taxa de câmbio real efectiva que se revelaria desastroso para as  indústrias exportadoras, para os níveis de poupança/endividamento da economia como um todo e para a hipertrofia do sector dos bens não transaccionáveis.

Luciano Amaral não termina o livro sem comentar três cenários possíveis de superação do impasse actual. Uma das soluções possíveis, se é que o termo solução é minimamente oportuno neste caso, consiste em Portugal desistir de o ser, e converter-se numa província subsidiada pelos – imensamente relutantes – parceiros de União ou talvez até por um imaginário Estado centralizado europeu. Não vale a pena perder uma palavra a comentar esta “solução”. O autor menciona-a a título polémico, para que se compreenda bem o que está em jogo. Um outro cenário seria o abandono do euro e a retoma de uma moeda nacional. Os riscos de uma tal decisão em termos financeiros (pois basta pensar na difícil situação do nosso sistema financeiro e que a saída da União Monetária implicaria quase necessariamente o incumprimento da dívida externa, tanto pública como privada), e a confissão de derrota política que ela significaria para os dois principais partidos da democracia portuguesa, tornam-na bastante improvável. A outra saída seria, claro, reestruturar a posição e peso do Estado e do sector público na sociedade portuguesa. Esta, desconfio, seria a solução que colheria a preferência do autor. Mas ele acaba por considerá-la de certo modo implausível pela simples razão de que a democracia nunca conheceu outro Estado que não o que está em perpétuo crescimento e que pretende aparecer em toda a parte. Mais, a democracia portuguesa, receia o autor, é provavelmente inseparável deles.


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