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A Democracia Cidadã na ordem do dia…


Capa do livro Démocraties d'en Haut, Démocraties d'en Bas: Dans le Labyrinthe do Politique

Olivier Mongin, antigo diretor da revista “Esprit”, que comemorou em 2022 noventa anos de existência, reflete sobre a evolução das democracias hoje.

Démocraties d'en Haut, Démocraties d'en Bas: Dans le Labyrinthe do PolitiqueOlivier Mongin
La Couleur des Idées, 2023

Guilherme d'Oliveira Martins

Guilherme d'Oliveira Martins

Conselho de Administração, Fundação Calouste Gulbenkian; Conselho Editorial, Nova Cidadania

De facto, importa compreender as razões pelas quais assistimos a um recuo no número de democracias no mundo, o que obriga a uma séria ponderação sobre o progresso dos direitos humanos e sobre o aperfeiçoamento das instituições políticas e das funções sociais de mediação e de representação. A emergência dos populismos, longe de contribuir para uma maior participação dos cidadãos e para o aperfeiçoamento da qualidade das democracias, não só tem reduzido a capacidade de regulação de conflitos e da violência, mas também tende a favorecer a fragmentação das sociedades, a enfraquecer a coesão social e a confiança, bem como a fragilizar o capital social. Num tempo, em que as desigualdades se agravam em prejuízo da sustentabilidade económica, ambiental e cultural – com o egoísmo, o consumismo e o desperdício a porem em xeque a dignidade humana –, somos confrontados com questões de organização da sociedade e de grave risco planetário. A obra, agora publicada, intitula-se Démocraties d’en haut, démocraties d’en bas. Dans le labyrinthe du politique, Editions du Seuil, 2023, e apresenta uma análise aprofundada sobre as raízes da atual situação, partindo de reflexões do filósofo Paul Ricoeur sobre os paradoxos do fenómeno político. Sintomaticamente, a reflexão do pensador francês sobre o tema, foi publicada no primeiro número da revista portuguesa “O Tempo e o Modo” ( janeiro de 1963), que agora celebra sessenta anos. Apesar das especificidades históricas características de há mais de meio século, reencontramos hoje elementos que correspondem ao regresso de fenómenos dos tempos da guerra fria, hoje agravados pelo expansionismo do império russo, patente na tragédia da Ucrânia. Recordando o texto clássico de Paul Ricoeur sobre o “paradoxo político”, este era para o filósofo fonte de violência, mas também, pelo seu aperfeiçoamento, um fator possível de redução do mal, pela participação dos cidadãos e pela mediação das instituições. De facto, considerando que as sociedades humanas são imperfeitas por natureza, importa considerá-las como perfectíveis, exigindo-se a cidadania ativa como caminho de permanente progresso. E assim a sustentabilidade deixa de ser apenas económica ou financeira, para passar a ser fator de desenvolvimento humano e de equidade intergeracional. O recuo das democracias significa, por isso, uma forte ameaça à coesão social e ao desenvolvimento humano. O enfraquecimento das instituições, a crise da representação e o abuso dos poderes do Estado, a que assistimos, baseiam-se, assim, numa conceção empobrecida e estreita do fenómeno político. De facto, a ordem jurídica não deve aplicar-se, para Ricoeur, de forma abstrata e automática, mas sempre segundo a experiência comum e a prática das instituições.

A representação e a mediação dos cidadãos são, de facto, cruciais para superar a violência e a incapacidade de regulação dos conflitos. Importa prevenir o individualismo que se torna cada vez mais radical, a recusa do estrangeiro e do migrante, tornados ameaças à identidade nacional, o controlo dos cidadãos e a violência das autoridades, contrariando abusos, bem como os poderes autoritários e iliberais. As instituições não são somas de indivíduos isolados, mas sim ideias de obra e pontos de enexperiências e a compreensão da complexidade social. A “filosofia reflexiva”, que Olivier Mongin e Ricoeur referem, pressupõe o compromisso enquanto empenhamento, mas essencialmente como troca de experiências e como síntese criadora. Daí a ideia de consenso conflitual, que não pode confundir-se com simplificação ou uniformização de projetos ou mensagens. A ideia de pluralismo é fundamental e o primado da lei abrange a conceção de justiça como equidade de John Rawls e o conceito de pluralidade de bens de Michael Walzer. A fragilidade do fenómeno político é assim dupla – a um tempo do Estado e do espaço público. O Estado garante o efeito positivo do consenso conflitual, salvaguardando a autonomia e a sobrevivência do espaço público. E importa não esquecer “o princípio da responsabilidade”, formulado por Hans Jonas, enquanto respeito do futuro, doravante ameaçado ou fragilizado pelo progresso da sociedade e pela evolução das ciências e das técnicas. Se o homem se tornou perigoso para si próprio e a humanidade suscetível de perecer, a ideia de utopia deve ser vista no presente para melhor proteger as fragilidades do futuro. E a utopia, mais do que princípio de esperança, torna-se expressão da responsabilidade preocupada com o futuro. A utopia é, assim, para Paul Ricoeur menos a invenção de um futuro que salva o presente do que a preservação do futuro pela ação responsável no presente.

A Democracia Cidadã na ordem do dia…

Mais do que desesperar da modernidade, perante as suas fragilidades e incompletudes, torna-se necessário compreender a medida dos acontecimentos que nos podem afastar desse risco atual

Como afirmou Jonas: “age de modo que a humanidade sobreviva depois de ti no mais amplo prazo possível”. Daí a importância de ir além da ideia de proximidade, alcançando a necessidade de reciprocidade, como consequência do respeito mútuo. E, assim, como Olivier Mongin afirma, mais do que desesperar da modernidade, perante as suas fragilidades e incompletudes, torna-se necessário compreender a medida dos acontecimentos que nos podem afastar desse risco atual, e que revelam a importância das instituições de que dispomos e nas quais podemos reinvestir e recriar. E se, quando lemos Charles Taylor em Sources of the Self (1989), percebemos que temos de ir além da conceção da humanidade centrada nos consumidores e nos trabalhadores, devemos chegar aos cidadãos, que manifestam o desejo de viver com os outros, garantindo a não indiferença, o respeito comum e o princípio da responsabilidade. O recuo nas experiências democráticas, soma-se à incerteza económica, ao aquecimento global, à desconfiança relativamente à técnica e aos excessos do individualismo e da fragmentação, em prejuízo da liberdade e da solidariedade intergeracional. E o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, tem reafirmado que a destruição da natureza e da biodiversidade e a degradação dos ecossistemas trazem consigo um custo humano incalculável e irreversível. As alterações climáticas correspondem, de facto, ao desafio central do nosso século, sendo inaceitável, ultrajante e autodestrutivo colocá-las em segundo plano. O certo é que estes desígnios não são formais ou abstratos. Só uma cultura de direitos humanos e de democracia poderá assegurar o respeito real pelo desenvolvimento humano e pela salvaguarda do património cultural, na sua essência. Qualquer recuo na vida democrática representará, por isso, a aproximação de um dramático suicídio da humanidade.


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