• +351 217 214 129
  • This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

Agustina Bessa-Luís A Vida como Romance


 

Agustina Bessa-Luís é no panorama da literatura portuguesa um caso especial.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

Guilherme d'Oliveira Martins

Conselho de Administração, Fundação Calouste Gulbenkian; Conselho Editorial, Nova Cidadania

Lendo-a e em longas con- versas com Alberto Vaz da Silva foi-me fácil com- preender o carácter in- confundível e fulgurante da criação literária e cultural de Agustina. Nos alvores da revista “O Tempo e o Modo” houve debates épicos sobre a importância da romancista de “A Sibila”, de “Os Incuráveis” ou de “O Manto”. Foram usa- dos argumentos ideológicos e literários. E com a evolução do tempo ficou demonstrado que a sua escrita marcou o pano- rama cultural português, pe- las qualidades literárias, mas também pelo modo de descre- ver a vida. A sua escrita densa, a interrogação permanente do género humano, o confron- to entre as raízes e as marcas inexoráveis do tempo, o culto das contradições e dos enigmas, tudo nos leva, enquanto leitores da sua vasta obra, a uma relação contrastada en- tre permanências e mudanças profundas, tendo como ponto de partida o encontro de valo- res, personalidades, interes- ses, circunstâncias. Foi essa capacidade de recusa do espe- rável ou das receitas repetidas que apaixonou literária e cul- turalmente o grupo inicial de “O Tempo e o Modo”, ciente de que estava longe das tradi- ções da genealogia camiliana, da omnipresença queirosiana ou, naturalmente, da lógica realista, e mais perto de uma tendência para arejar a literatura no sentido da compreensão da singularidade da existência e da influência de novos ventos.

Agustina Bessa-Luís A Vida como RomanceContudo, como afirmou Manuel Poppe, a propósito de “O Manto”: Agustina Bessa Luís permanecia como “o caso mais im- portante da nossa atual literatura em prosa de ficção, e um dos casos mais sérios da nossa literatura de sempre” (nº 1, 1963, p. 79). Num sentido coincidente, quando lemos os testemunhos de escritora, compreendemos que essa qualidade e essa originali- dade vêm da procura da razão de ser da realidade humana. Dos- toievski era o autor que mais apreciava, ao lado de Kierkegaard. “Crime e Castigo” era para a escritora uma obra maior. E no seu percurso individual entendeu bem “O Jogador”, sendo ela filha de um jogador, com todas as vicissitudes inerentes a uma tal ex- periência. Daí a recusa pessoal da dependência das salas de jogo e da lógica da sorte e do azar… “É a existência que luta com a existência”. O romance tem de lidar com esse confronto. E sente- -se a dualidade entre os sentidos e a aspiração do infinito, como dirá em entrevista a Anabela Mota Ribeiro. A cabana de Kier- kegaard é claramente preferida ao palácio de cristal de Hegel e daí as múltiplas incertezas e sobressaltos de ritmo e de estilo que encontramos na narrativa de Agustina, que mais não são do que expressão da própria imperfeição humana. O percurso da ro- mancista é, assim, por si mesmo, inconformista e contraditório. “O humano, para se reconci- liar com a própria natureza, nega a própria sabedoria” – afirmando em “Um Cão que Sonha”, surpreendentemen- te: “Nasci adulta, morrerei criança”. Como? Através do apuramento da atenção, que é domada ao longo da vida, com perda evidente de vir- tualidades. Agustina fala da descoberta do mundo e da lin- guagem e lembra que “se vive todos os tempos ao mesmo tempo”.

À medida que o tempo passa, vai prevalecendo a ba- nalidade, e é essa mesma que importa contrariar. E, chega- mos à presença dos enigmas, que preenchem o mundo ro- manesco de Agustina, impor- tando ter em consideração o que a própria sempre disse: “Eu não aprecio enigmas, gosto de desvendar os enig- mas (…) Quando aparecem enigmas, corro a resolvê-los! Quem vive na província tem muito a noção do enigma a resolver. E num plano mais mesquinho, está incluído na convivência da vizinhança, de saber o que se passa, en- trar na casa dos outros, na confiança dos outros. (…). No fundo é esclarecer o mistério humano” (para citar a entre- vista já referida).

A sua escrita marcou o panorama cultural português, pelas qualidades literárias, mas também pelo modo de descrever a vida

Agustina Bessa-Luís A Vida como RomanceE eis a chave da oficina da romancista, percebendo-se como é difícil ensinar o que é o amor, sem cuja compreen- são não se entendem os cami- nhos da paz. A atenção à rea- lidade que a cercava permi- tia-lhe seguir os vários cami- nhos que a vida nos reserva. “Precisaria de viver 300 anos para fazer tudo o que gostaria de fazer”. E Agustina confessa assim o seu apego à complexa realidade humana. Daí estar sempre disponível para, pelo menos em imaginação, par- tir para um outro destino. E nessa disponibilidade ape- nas precisaria da memória para levar consigo. Essa era a verdadeira matéria-prima que constituiria o barro do oleiro em cima da bancada para ser moldada na roda, com o uso da imaginação. De facto, as musas são filhas da memória, e esta com a inteligência e a vontade, constitui o conjunto das virtudes cardeais… Se a pessoa huma- na tem consciência do que distingue uns dos outros, a verdade é que à medida que a história evolui e se civiliza toma consciência de que o outro deixa de ser inimigo. Contudo, ao olharmos os acontecimentos mais recentes, percebemos que a relação con- flitual regressa. À medida que a humanidade pensa e se civi- liza, o outro deixa de ser inimigo, passando a ser diferente, e pode ser possível pensar num sentido de paz… Mas como deixar de considerar a paz como uma convenção? Como entender a paz como um valor, em lugar de uma realidade apenas possí- vel nos cemitérios? Hobbes ou Rousseau quem terá razão? O lobo do homem ou o bom selvagem? Somos sempre tudo isso, paradoxalmente. A humanidade corresponde à coexistência desses elementos que determinam a perversidade da vida. E o universo romanesco de Agustina considera o contraponto en- tre a perversidade reflexiva e uma perversidade ativa. “Os sen- timentos são como um bailado: servem para dar um colorido àquilo que é muitas vezes difícil de exprimir e muitíssimo difícil de relacionar através das palavras”. E Agustina confessa ainda que «“A Sibila” foi produzida num transe agudo de memó- ria. Todo esse mundo até aí baço e repartido pela peque- na história doméstica tomou ascendente sobre a memória. Os personagens que eram só pitorescos ou afetuosos, ganharam um recorte trans- cendente, que os libertava da simples função humana”. Aqui está a explicação cabal do processo criador – tudo nasce numa lembrança, de- pois essa referência caseira torna-se um momento digno de invocação moral, e então a circunstância projeta-se num episódio romanesco, que a memória eterniza… Não há romance sem projeção da memória…


1000 Characters left


Please publish modules in offcanvas position.