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António Sousa Franco e a Liberdade


Capa do livro António Sousa Franco e a Liberdade de Educação

O pensamento de António Luciano de Sousa Franco foi, no tocante à liberdade de ensino, de uma grande coerência, resultando uma reflexão longa e aprofundada.

António Sousa Franco e a Liberdade de EducaçãoUCP e SNEC, 2022

Guilherme d'Oliveira Martins

Guilherme d'Oliveira Martins

Conselho de Administração, Fundação Calouste Gulbenkian; Conselho Editorial, Nova Cidadania

Desde os primeiros passos da sua atividade intelectual, académica e cívica, quando lemos os textos que escreveu sobre a matéria, notamos uma preocupação axiológica e não apenas formal, que articula de um modo dinâmico e substantivo o tema da evolução e aperfeiçoamento das diferentes gerações de direitos, desde a dimensão individual e subjetiva à pers- petiva social e de desenvolvimento humano, considerando as mais modernas orientações no tocante a tais temas. Assim, o pensamento complexo encontra-se presente, capaz de atribuir à reflexão económica e social uma atualidade suscetível de poder superar a limitação das lógicas utilitaristas ou das conceções meramente formalistas das liberdades.

“A liberdade do ensino é um direito (…), não um privilégio, resultante de mera tolerância do Estado ou da maioria da coletividade perante grupos sociais minoritários (porque ricos ou diferenciados da maioria da sociedade, em matéria de convicções ou de estatuto social, por exemplo). Só onde quer que se entenda que o ensino deve ser essencialmente estatal, o ensino não estatal seria não livre, mas tolerado: um privilégio, como tal incompatível com a igualdade perante a lei e a igualdade de oportunidades, e até com níveis excessivos de desigualdade desprovidos de justificação natural ou ética, que são características de sociedades humanistas e, no limite, democráticas. Mas tal conceção seria claramente totalitária…” (Cf. A. L. de Sousa Franco, “Para uma fundamentação da Liberdade de Ensino” in “Direito e Justiça” – Revista da F. Direito da Universidade Católica Portuguesa”, vol. IV, 1989-1990; pp. 59-92). Deste modo, estamos perante um verdadeiro direito, com carácter universal, consagrado no artigo 26º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, importando interpretar a liberdade de ensino em articulação com a liberdade de consciência e com todos os elementos que consagram a dignidade humana. Daí a ênfase posta na cidadania inclusiva, no respeito mútuo, na recusa da lógica de privilégio e numa conceção de serviço público não confundível com exclusividade estatal.

António Sousa Franco e a LiberdadeAssim, para Sousa Franco, a liberdade de ensino não retira a este “a natureza parcial de bem coletivo, pois estes (bens), como se sabe, podem ser oferecidos por entes públicos, privados ou cooperativos, devendo, na medida em que têm utilidade social genérica, ser financiados equitativamente por todos. Por outras palavras: tão ‘coletivo’ é o ensino privado como o público ou o cooperativo; e, assim sendo, tanto direito tem um à subvenção, como o outro ao financiamento direto, em função da utilidade social que respetivamente prestam por igual”. Deste modo, se inserem na nossa ordem jurídica os contratos de associação ou a complementaridade entre as diversas iniciativas na concretização do serviço público de educação. De facto, usa-se o elemento “público” não como sinónimo de estatal. O uso da expressão coletivo reporta-se à consideração do que podemos designar como bens financeiros públicos. De facto, só a lógica estatal poria em xeque a essência, o fundamento dos direitos fundamentais e a prevalência da autonomia individual e da dignidade pessoal dos seres humanos, numa sociedade aberta.

Daí que o nosso autor refira que “a liberdade tão pouco retira ao Estado as suas responsabilidades globais pelo sistema de ensino e formação”. Trata-se de responsabilidades que “supõem o exercício não discriminatório de certos poderes (normativos ou administrativos) relativamente a todas as instituições, agentes e sujeitos de ensino – públicos, privados ou cooperativos; mas elas hão de respeitar os direitos das pessoas, famílias, associações e movimentos legítimos, colocando-se, se necessário ao seu serviço, ao invés das doutrinas supra ou transpersonalistas de qualquer natureza (e subordinadas a quaisquer valores)” (Ibidem). Na prática, do que se trata é de conceber este direito como uma obrigação de justiça e de equidade na utilização dos recursos disponíveis, pondo-os ao serviço de todos.

Assim, “para que haja liberdade, o primeiro dos consequentes deveres do Estado é assegurar condições de igualdade de acesso, frequência e funcionamento, a par da liberdade, com respeito pela qualidade e pelos objetivos justos do sistema nacional de formação e ensino – entre o ensino público, por um lado, e o ensino privado e cooperativo, por outro; bem como entre as diferentes instituições destas várias formas de ensino, sem prejuízo das diferenciações legítimas baseadas na qualidade ou em valores relevantes de preferência social, os quais a sociedade pluralista pode admitir e encorajar, porque representam mérito e não privilégio, abertura e não monopólio” (Ibidem). A igualdade de acesso, frequência e funcionamento tem, assim, de ser assegurada para todos em estreita complementaridade com a liberdade de escolha, dentro das condições concretas existentes. Daí a importância do primeiro objetivo da UNESCO no tocante ao ensino no mundo: Educação para todos. Tudo, sem prejuízo das diferenças baseadas na qualidade ou em valores relevantes numa sociedade pluralista capaz de valorizar o mérito e não o privilégio, a abertura e não o monopólio.

A liberdade de ensino reporta-se à liberdade de fundação e de funcionamento, à liberdade docente e às condições para a formação e exercício de qualidade em condições dignas, bem como à liberdade de determinação dos conteúdos, com autonomia e objetividade. “Liberdade de aprender, liberdade de ensinar. Ambas integram necessariamente o objeto do direito fundamental da liberdade de ensino, e só quando elas se verifiquem – todas elas – em termos substanciais se pode dizer que existe, numa sociedade, verdadeira liberdade de ensino” (Ibidem).

João Paulo II, no discurso aos juristas católicos italianos, em 7 de dezembro de 1981, afirmou, neste sentido: “O princípio da liberdade de ensino tem o seu fundamento na natureza e na dignidade da pessoa humana. Como esta é uma realidade anterior a toda a organização social – embora destinada a inserir-se nesta – tem direito á prossecução do seu próprio desenvolvimento e aos meios necessários, sem que esta capacidade de autodeterminação seja limitada por imposições arbitrárias do exterior”. Se o dever de educar pertence primariamente à família, como educadora natural, precisa de ajuda de toda a sociedade. Assim, além dos direitos dos pais e de outros a quem os pais confiam parte do trabalho da educação, há deveres que competem à sociedade civil, enquanto pertencer a esta a ordenação do bem comum. Deve, pois, promover a educação da juventude, defender os deveres e direitos dos pais, segundo o princípio da subsidiariedade garantir uma educação para todos, defendendo os direitos das crianças e jovens, velar pela competência dos professores e educadores e pela eficácia dos estudos, promover o trabalho escolar e o sucesso dos estudantes, com salvaguarda do pluralismo e da liberdade de consciência.

Importa, no fundo, assegurar a concretização da primeira ordem dos fundamentos da liberdade de ensino, que corresponde à articulação do sistema de ensino e suas instituições com liberdade das pessoas, famílias e instituições sociais. É, assim, a pessoa humana o sujeito essencial da liberdade de ensino. Não haverá democracia pluralista sem que o sistema de ensino respeite a autonomia das pessoas e famílias, relativamente a preferências e convicções e sem que se dê expressão formativa às diversas conceções e correntes sociais. Numa sociedade aberta e democrática ensino e liberdade são inseparáveis. Mas importa ainda a satisfação das necessidades da sociedade, através de uma rede escolar, em que o Estado dê garantia da universalidade e acessibilidade do sistema de ensino. A educação e a cultura são indissociáveis, como, aliás, o eram na “paideia” grega. Sem liberdade de ensino, educação e formação não existe liberdade cultural, já que a liberdade do espírito é indivisível.

Urge, assim, ligar responsabilidades do Estado e fundamentos da liberdade de ensino, de modo a garantir o respeito efetivo de um direito fundamental, incompatível com a indiferença ou a abstenção do Estado. Importa garantir uma liberdade equitativa de ensino, com igualdade de condições, de escolha e oportunidade de acesso para todos. “Uma liberdade de ensino passiva ou formal (…) seria uma liberdade para uns poucos (dotados e ricos) e imposição para a maioria (a quem se não facultaria efetiva liberdade de opção)” (Ibidem). No fundo, para António Sousa Franco, a liberdade de ensino pressupõe: “condições de liberdade” para todos, “libertação” relativamente a uma lógica monopolista, qualquer que seja, “intervenção libertadora do Estado e da sociedade”. Em linguagem dos nossos dias, trata-se de uma demarcação plena relativamente ao que muitos designam como “democracia iliberal” – que não é democracia porque recusa a liberdade e a autonomia da pessoa humana. “Pois se até a liberdade de consciência impõe que se proteja a consciência de condicionamento ou coação – as liberdades de ação exigem mais complexa tutela e as liberdades de escolha de meios ainda se perfilam mais exigentes quanto aos meios económicos, jurídicos e políticos” (Ibidem). É assim muito clara a posição de princípio assumida por Sousa Franco: a liberdade de ensino e as condições concertas para a sua realização obrigam a entender que estamos perante uma liberdade, centrada na dignidade humana, que ou é social ou deixa de ser, pura e simplesmente, liberdade.


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