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O Catolicismo, Portugal e a Europa


Capa do livro O Catolicismo, Portugal e a Europa

Sessão de Apresentação do livro do Magno-Chanceler da Universidade Católica Portuguesa, D. Manuel Clemente,”O Catolicismo, Portugal e a Europa – Uma relação criativa”.

Dom Manuel Clemente
O Catolicismo, Portugal e a Europa
UCP, 2022

José Manuel Durão Barroso

José Manuel Durão Barroso

Antigo Primeiro-Ministro, Antigo Presidente da Comissão Europeia e Diretor do Centro de Estudos Europeus do IEP

Excelência Reverendíssima, D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa e Magno Chanceler da Universidade Católica Portuguesa.

Magnífica Reitora da Universidade Católica Portuguesa, Prof. Isabel Capeloa Gil.

Ilustres convidados, minhas senhoras e meus senhores, caros amigos.

O Catolicismo, Portugal e a EuropaQuero começar por agradecer à Senhora Reitora da Universidade Católica Portuguesa, Prof. Isabel Capeloa Gil, o convite que me fez para participar nesta sessão de apresentação do livro do Magno Chanceler da Universidade, D. Manuel Clemente. O livro de D. Manuel Clemente, o Cardeal-Patriarca de Lisboa, seria sempre um acontecimento editorial relevante. Um documento da maior importância para o Catolicismo português. Mas neste caso quero dizer que, para além da posição religiosa e institucional do seu autor, se trata também de um notável contributo intelectual para o estudo do tema ou temas que a obra aborda: Catolicismo, Portugal e a Europa. Queria também felicitar sinceramente o Prof. Manuel Braga da Cruz pelo seu trabalho de edição e pela excelente introdução que escreveu para este livro. Agora mesmo o ouvimos justificando as escolhas que fez e abordando também alguns aspectos genéricos da obra.

Pelo meu lado queria, correspondendo ao convite/ desafio que me foi feito pela Senhora Reitora, dialogar com este livro sobretudo em torno do tema da Europa. Não apenas acerca do pensamento de D. Manuel Clemente acerca da Europa, mas também acerca desta peculiar relação que é identificada – Portugal, Europa e Mundo; porque também do mundo mais vas- to trata nesta obra D. Manuel Clemente com rigor e inteligência.

Sobre Portugal e o Catolicismo Português, atrevo-me a dizer que o mais interessante no livro é a análise do modo como se deu a recomposição do Catolicismo na sociedade liberal e na sociedade contemporânea, é o conjunto de elementos apresentados e as riquíssimas considerações sobre o movimento católico e a sobrevivência e a afirmação do Catolicismo num meio político e institucional, por vezes deveras hostil.

Claramente vista como essencial é a relação entre Catolicismo e Portugal. Como bem diz Manuel Braga da Cruz, cito: “Se o Catolicismo marcou Portugal, também o Catolicismo entre nós ficou marcado pela Portugalidade. Catolicismo e Portugal são realidades indissociáveis”. Esta relação que, no plano político e institucional está hoje consagrada na Concordata de 2004, Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa que eu tive a honra de assinar em nome de Portugal, é na realidade uma relação que não hesito em qualificar como especialíssima – a relação entre Portugal e a Igreja Católica, o que aliás me foi dito por Sua Santidade, o Papa João Paulo II, quando me recebeu na Santa Sé para essa mesma cerimónia de assinatura. Cerimónia essa que, aliás, significativamente, teve lugar no dia do seu 84º aniversário e, como eu também tive ocasião de sublinhar na altura, em data bem próxima dos 825 anos da Bula Papal, Manifestus Probatum, concedida em 1179 pelo Papa Alexandre III, que reconheceu a independência de Portugal. Uma muito antiga relação, como vemos. É também uma das características que D. Manuel Clemente refere, por vezes, no seu livro. Somos muito antigos, Portugal, e esta relação da Igreja Católica com Portugal é, aliás, anterior à nossa própria independência.

Quem fala de Portugal, fala da Europa. E é isso mesmo que faz D. Manuel Clemente em algumas das mais belas páginas deste livro

O Catolicismo, Portugal e a Europa

Mas quem fala de Portugal, fala da Europa. E é isso mesmo que faz D. Manuel Clemente em algumas das mais belas páginas deste livro. Sobre a Europa, D. Manuel Clemente afasta-se muito claramente das teses negativistas ou pessimistas que, hoje em dia, são correntes em alguns círculos, incluindo alguns meios intelectuais. É uma escolha pessoal a minha, mas se tivesse que escolher uma frase que resumisse o sentimento e a atitude de D. Manuel Clemente relativamente à Europa de hoje, essa minha escolha, certamente polémica, e que me desculpe o seu Autor, seria uma breve expressão que, quanto a mim, resume o essencial do argumento que podemos ter relativamente à Europa contemporânea. Diz D. Manuel Clemente: “só quem esqueceu o que éramos antes, pode achar pouco o que temos agora”. Várias vezes tenho referido, citando o autor, esta frase, porque penso que é importante quando falamos da Europa e das suas dificuldades, que certamente existem, pormos essas dificuldades em perspectiva. A perspectiva de uma História marcada por tantas guerras e por tanto sofrimento. Esta é a perspectiva do historiador. E é realmente como historiador que D. Manuel Clemente se apresenta nesta obra. E certamente também alguém que está em missão pastoral, é certamente também o teólogo. Mas é o intelectual e o historiador e, quem diz “só quem esqueceu o que éramos antes, pode achar pouco o que temos agora”, ao fim e ao cabo é a sabedoria do historiador, é o conhecimento do tempo longo que permite uma análise que muitas vezes nos surpreende, pelo menos a mim surpreendeu, pela sua serenidade, pelo seu sentido de perspectiva.

Na verdade, hoje, com todas as suas dificuldades e desafios, a Europa está bem melhor do que aquela que conhecemos no século XX, com uma das maiores tragédias da história da Humanidade que foi precisamente perpetrada aqui na nossa Europa.

Sobre a Europa e o Cristianismo, diz D. Manuel Clemente, com clareza e lapidarmente: “O Cristianismo criou a geografia europeia”. E desenvolve esse argumento. Permitam-me uma citação um pouco mais longa, mas que penso que tem manifesto interesse. Mais uma vez é o historiador que fala. “A Europa a que nos referimos hoje não nasceu como tal nem com os Gregos, nem com os Romanos, nem com os Germanos, nem com os Celtas, nem com os Eslavos, nem com os Árabes ou Judeus, embora todos estes contributos tenham estado presentes, mais aqui do que ali, na história do Continente, deixando herança e rasto. A Europa de que falamos não coincide com a Grécia cultural da Antiguidade que se projectava muito para além dela, quer na Ásia Menor, quer no Egipto Africano. Não coincide com o Império Romano, que não ultrapassou o Reno ou o Danúbio, e incorporava a Ásia Menor e toda a margem sul mediterrânica. Germanos, Celtas, Eslavos e mesmo Árabes tiveram e têm presença variável no Continente, mas nunca na totalidade dele ou maioritária”. E conclui D. Manuel Clemente. “A Europa de que falamos hoje é herdeira inicial e directa de um vasto e complexo movimento missionário cristão da segunda metade do primeiro milénio da nossa era”. Fim de citação.

Significativamente, o autor mais citado quando se fala de Europa é João Paulo II, cuja herança europeia e cujo contributo para a unidade europeia nunca será demais destacar. Disse João Paulo II nesse documento essencial sobre a Europa que é a Exortação Apostólica Pós-Sinodal, Ecclesia in Europa de 2003, e passo a citar também este trecho citado por D. Manuel Clemente: “Para dar novo impulso à sua história, a Europa deve reconhecer e recuperar com fidelidade criativa aqueles valores fundamentais adquiridos com o contributo determinante do Cristianismo, que se podem compendiar na afirmação da dignidade transcendente da Pessoa Humana, do valor da Razão, da Liberdade, da De- mocracia, do Estado de Direito e da distinção entre Política e Religião”. E a seguir, sendo também citado por D. Manuel Clemente, nesse texto matricial que define a relação entre Cristianismo e a Europa, João Paulo II aponta, ao fim e ao cabo, três exigências à Europa: a exigência de abertura, a exigência de participação activa na promoção e na realização de uma globalização na solidariedade e a exigência da construção da paz. A paz, aí está outro objectivo essencial da nossa Europa.

A este respeito, não posso deixar de invocar com saudade e reconhecimento, o Prémio Nobel da Paz que foi atribuído à União Europeia em 2012. Tive a honra, em nome da União Europeia, de proferir o discurso de aceitação, conjuntamente com o meu colega do Conselho Europeu. Não foi certamente por acaso que citei Karol Wojtyla quando ele dizia que “após a reunificação, a Europa podia respirar com ambos os seus pulmões”. É dessa Europa reunificada, Europa com problemas, mas uma Europa reunificada com verdadeira dimensão continental que falamos hoje quando falamos de Europa.

Mas se o Cristianismo reconhece o papel da Europa, como vemos com João Paulo II, será que a Europa reconhece devidamente o contributo do Cristianismo para a sua génese, a sua própria identificação, a sua afirmação, o seu devir ao longo dos séculos. Devo dizer que talvez não suficientemente. É certo que D. Manuel Clemente diz num texto intitulado “Uma Matriz Cristã da Constituição Europeia”, passo a citar, o seguinte: “realço positivamente a sobriedade do preâmbulo do novo Tratado Europeu”, quando o preâmbulo diz “inspiran do-se no património cultural, religioso e humanista da Europa” e acrescenta D. Manuel Clemente, “ficando-se pelo factual, sem o diminuir como na tentativa anterior, fez uma boa opção. A construção europeia depende tanto da honestidade educativa como da prudência projectiva”.

Talvez por me faltar a prudência, a sabedoria, a generosidade de D. Manuel Clemente, devo dizer que a formulação final do preâmbulo do Tratado de Lisboa me deixou insatisfeito. Estive aliás entre aqueles que procuraram na altura uma referência explícita ao Cristianismo como fonte da nossa Europa. Referência não exclusiva, obviamente, reconhecendo também outros importantíssimos contributos na definição da cultura e civilização europeia. Mas a verdade é que me parece pouco esta referência muito geral ao património cultural, religioso e humanista da Europa. É verdade que a própria palavra “religioso” foi na altura um problema, mas penso também que houve um problema que ficou e que ainda hoje se nota em alguns países europeus, nomeadamente na Polónia, que foi esta dificuldade da Europa assumir sem complexos as suas raízes e a sua tradição. Penso que não faria mal para a Europa nem para o Mundo se a Europa assumisse essa herança.

É certo que o Tratado sobre o funcionamento da União Europeia dispõe no seu artigo 17º e passo a citar que “reconhece as igrejas e associações ou comunidades religiosas nos Estados-Membros”. E no mesmo artigo, no seu nº 3, estipula o Tratado sobre o funcionamento da União Europeia, “reconhecendo a sua identidade e o seu contributo específico, a União mantém um diálogo aberto, transparente e regular com as referidas igrejas e organizações”. Entre estas organizações encontram-se aliás as chamadas filosóficas e não confessionais.

Este reconhecimento e diálogo são positivos. Aliás, D. Manuel Clemente num dos textos deste livro recorda encontros em que participou em Bruxelas, encontros que eu na altura promovi enquanto Presidente da Comissão Europeia, convidando líderes das diferentes confissões religiosas, incluindo muçulmanos, judeus, hindus e outros, entre os quais católicos, anglicanos e protestantes. Esse diálogo foi e é útil e positivo.

57 60 o catolicismo portugal e a europa 04Mas como diz o próprio D. Manuel Clemente, a secularidade dos Estados não deixa de fora da consciência pública a afirmação religiosa dos cidadãos e, outra citação, “a projecção social da crença é tão necessária como tudo o que ao Homem diz respeito, porque é dele e para ele que a sociedade parte e existe, por isso não haveria mal que se reconhecesse também de forma aberta esta dimensão espiritual ou religiosa, especificamente cristã na identidade europeia”. Porque quem não acredita nos seus próprios valores tem dificuldade em defendê-los, porque quem não mostra determinação nem vontade de reconhecer, certamente numa perspectiva crítica ou autocrítica, o que foi o seu passado, arrisca-se a perder a força para, com confiança, construir o seu próprio futuro. E quando hoje vemos o que se passa por esse mundo fora, com regimes que não aceitam os direitos humanos essenciais, nem respeitam o princípio essencial da dignidade da Pessoa Humana. Quando vemos esses regimes, procurando afirmar os valores da sua civilização, muitas vezes até, pelo menos implicitamente, afirmando a superioridade da sua história e da sua civilização sobre a história europeia ou ocidental eu pergunto-me se a Europa não teria vantagem em exportar alguma da sua autocrítica para outras paragens em que este espírito de autocritica faz falta. E se não deveríamos nós, como europeus, sem arrogância, mas porque não com algum orgulho, afirmarmos os nossos próprios valores. Os valores humanistas que tanto devem à herança cristã. A Europa não está sozinha no Mundo. Quando se fala do Cristianismo, não é só da Europa que se trata, é da nossa relação com o Mundo. É da Europa na globalização. A tal globalização subsidiária e solidária.

Quando se fala do Cristianismo, não é só da Europa que se trata, é da nossa relação com o Mundo. É da Europa na globalização. A tal globalização subsidiária e solidária

Como D. Manuel Clemente conjuga necessariamente com a economia e a globalização, dispondo a Europa e Portugal, na sua parte, de dois factores peculiares e promissores: um grande capital acumulado de sabor teórico e prático, nos variados campos, e uma ímpar experiência mundial nos cinco continentes de que ela fez um Mundo só. Foi a Europa que fez do Mundo o Mundo que ele é. E assim conclui D. Manuel Clemente o seu texto europeu: “Desta Europa sou, sendo aqui do Mundo inteiro”. Acho que é um belo final. Uma bela definição do que somos e devemos nós ser, os portugueses. Desta Europa e do Mundo inteiro. Muito obrigado pela vossa atenção.


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