• +351 217 214 129
  • This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.

O princípio da subsidiariedade social


Capa do Livro Subsidiariedade: Doutrina política e modelo de estado

Apresentação do livro de Sílvia Mangerona na Feira do livro no dia 9 de Setembro de 2021.

Sílvia Mangerona
Subsidiariedade: Doutrina política e modelo de estado
Principia, 2021

Mário Pinto

Mário Pinto

Professor Catedrático Jubilado, Universidade Católica Portuguesa; Presidente do Conselho Editorial Nova Cidadania

Senhor Prof. Doutor Manuel Braga da Cruz; Senhora Prof.ª Doutora Sílvia Mangerona; Senhor Dr. Henrique Mota; Minhas Senhoras e meus Senhores:
1. Tenho muito gosto em tomar parte nesta apresentação pública do livro da Prof.ª Sílvia Mangerona, que trata do importante princípio da subsidiariedade social, especialmente na sua incidência de princípio político e constitucional. Publicado pela Editora Principia, nome este que, em latim, quer dizer Princípios.

É uma convergência assinalável, esta, de uma prestigiada Editora, de nome Princípios, com um novo livro sobre um magno princípio social, político e constitucional. Convergência que vem na linha de uma crescente importância que, desde a segunda metade do século passado, se tem dado às questões filosóficas e políticas, teóricas e práticas, que não cessam de fermentar na base dos sistemas políticos e constitucionais. Desde logo a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

2. Entre essas questões está necessariamente a já milenar querela entre o jusnaturalismo e o positivismo jurídico, agudizada que foi pelos chamados «crimes contra a Humanidade», cometidos sobretudo durante a guerra mundial de 1939-1945, que — nas palavras do Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos —, revoltaram a consciência da Humanidade e determinaram os povos das Nações Unidas a proclamar de novo a sua fé (sic) nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana.

Seja-me permitido sublinhar estas claríssimas formulações, que afirmam de modo categórico o direito da consciência humana a revoltar-se perante os crimes cometidos contra a pessoa humana, deste modo reconhecendo a consciência pessoal como lei humana que julga mundialmente segundo o Direito universal.

3. De facto, os crimes contra a Humanidade, judicialmente reconhecidos a partir do Julgamento de Nuremberga, vieram abalar mortalmente o positivismo jurídico. E além de suscitarem uma revalorização do jusnaturalismo, suscitaram também uma quase total substituição do positivismo por uma nova teoria, chamado pós positivismo — agora de pretendido fundamento do Direito na Moral, e não simplesmente na lei positiva.

Apesar da óbvia dificuldade que sempre afecta a fundamentação universal de uma moral, quando ela se recuse a reconhecer-lhe uma fonte naturalista, o pós positivismo jurídico tem vindo a constituir um progresso anti-positivista; contribuindo para abrir as teorias sociais e políticas a uma reafirmação de valores e princípios categóricos.

Valores e princípios que, então, se impõe estudar e aplicar na fundamentação do constitucionalismo. Como felizmente tem vindo a ocorrer.

4. Este novo aprofundamento do constitucionalismo moderno pensam alguns autores que deve ser assinalado pela sua nomeação como um neoconstitucionalismo. Não no sentido de um constitucionalismo diferente daquele que fundamentou as Declarações de Direitos dos fins dos século XVIII e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU. Mas num sentido mais profundo desse clássico constitucionalismo, que precisamente se caracteriza pela afirmação de novos e mais refinados princípios constitucionais.

Ora, é precisamente neste contexto sistemático que se destaca o (novo) princípio da subsidiariedade do Estado — entendido como irrecusável correspondência ao metaprincípio da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos e deveres humanos-pessoais.

O princípio da subsidiariedade social5. A génese e a história da ideia de subsidiariedade social remontam à Antiguidade, porque é uma ideia simples e lógica que guia comportamentos humanos elementares, como por exemplo no ensino e na educação das crianças. E por isso veio depois sempre aflorando, aqui e ali, ao longo da história do Ocidente, na sua aplicação à vida política. O livro de Sílvia Mangerona conta-nos isso.

Mas só muito mais recentemente (nos séculos XIX e XX, e pelo mérito de valiosos desenvolvimentos do pensa- mento católico sobre a vida social e política) é que ela mais limpidamente emergiu e se projectou agudamente sobre a teoria do constitucionalismo moderno.

6. Na continuação do seu já claro acolhimento na doutrina jusconstitucional do pós guerra, como princípio constitucional válido embora ainda não escrito (sobretudo na Alemanha mas também na Itália), foi pela primeira vez estabelecido por escrito nos Tratados Internacionais que progressivamente vieram a criar a actual União Europeia — que tiveram, como se sabe, uma decisiva influência dos grandes lideres políticos europeus da família dos Partidos da Democracia Cristã.

Os crimes contra a Humanidade, judicialmente reconhecidos a partir do Julgamento de Nuremberga, vieram abalar mortalmente o positivismo jurídico

7. Coisa extraordinária, e digna de ênfase, é que, depois desta novidade mundial concretizada num plano de relações constitucionais internacionais europeias, tenha sido na Constituição Portuguesa que, pela primeira vez mundial, o princípio da subsidiariedade do Estado tenha sido expressamente inscrito numa Constituição nacional, pela revisão de 1997. Vai fazer, para o ano, um quarto de século.

8. Depois deste nosso pioneirismo mundial nos progressos do neoconstitucionalismo, só a Itália, pela revisão constitucional de 2001, quatro anos depois de nós, também se juntou a Portugal, na expressa consagração do princípio da subsidiariedade do Estado na Constituição Italiana.

Facto este que, neste País, tem provocado uma maré cheia de estudos e debates, de artigos e de livros — e também já de uma notável modificação na vida política institucional italiana, muito pelo activismo dos movimentos regionalistas.

9. Ao contrário do que acontece entre nós. O que, entre nós, tem caracterizado a novidade mundial da consagração expressa do princípio da subsidiariedade do Estado no art. 6.º da nossa Constituição, pela revisão de 1997, tem sido uma maré cheia de silêncio e esquecimento.

Ora, é mérito absoluto do livro que aqui hoje nos congrega, de Sílvia Mangerona, ser o primeiro livro português a quebrar este silêncio da nossa política, dos nossos partidos, das nossas elites políticas e jurídicas — embora não seja um livro disciplinar de direito constitucional, mas sim um livro de ciência política, que a meu ver é uma ciência multidisciplinar, ou interdisciplinar, porque dialoga a filosofia, as ciências sociais e as ciências humanas e jurídicas.

Ora, é mérito absoluto do livro que aqui hoje nos congrega, de Sílvia Mangerona, ser o primeiro livro português a quebrar este silêncio da nossa política, dos nossos partidos, das nossas elites políticas e jurídicas — embora não seja um livro disciplinar de direito constitucional, mas sim um livro de ciência política, que a meu ver é uma ciência multidisciplinar, ou interdisciplinar, porque dialoga a filosofia, as ciências sociais e as ciências humanas e jurídicas.

O princípio da subsidiariedade social10. Como precedentes deste livro sobre o princípio da subsidiariedade social temos apenas relativamente poucos e breves artigos e comentários de alguns autores e autoridades. Entre os quais os contidos comentários jurídicos ao texto da Constituição dos clássicos textos de Jorge Miranda-Rui Medeiros e de Gomes Canotilho-Vital Moreira.

Em livro, e que eu saiba, é de registar apenas o precedente do livro da autoria da Prof.ª Margarida Salema, com o título de: O Princípio da subsidiariedade em perspectiva jurídico política. Que está focado nas relações entre a União Europeia e Portugal, descurando portanto a questão interna constitucional portuguesa.

11. A Constituição Portuguesa, após as suas muitas e importantes revisões (li recentemente que só 10% dos artigos do texto original de 1976 se mantêm inalterados) pode ser considerada — penso eu — como uma das Constituições representativas dos progressos do neoconstitucionalismo.

O que não abona a interpretação de que precisa, e urgentemente, de ainda mais severas revisões. Ela é, sem dúvida, uma das mais extensas e mais revistas constituições do mundo ocidental: tem 295 artigos; e desses só trinta manterão a redacção de 76. E destaca-se precisamente por conter uma expressa afirmação e uma clara defesa de grandes e importantes princípios constitucionais.

Uma das características mais notáveis da nossa Constituição é que, sem prejuízo de dedicar a sua Parte Primeira aos «Direitos e Deveres Fundamentais» da pessoa humana (de acordo com o constitucionalismo de raiz ocidental baseado na DUDH), ela antecedeu até mesmo essa Parte

Uma das características mais notáveis da nossa Constituição é que, sem prejuízo de dedicar a sua Parte Primeira aos «Direitos e Deveres Fundamentais» da pessoa humana (de acordo com o constitucionalismo de raiz ocidental baseado na DUDH), ela antecedeu até mesmo essa Parte

12. Por esta muito intencional opção da sua organização sistemática (cuja discussão está bem documentada no Diário da Assembleia Constituinte), a Constituição reconhece e afirma que os próprios «direitos e deveres fundamentais» — que imediatamente, logo na Primeira Parte vai enunciar e garantir —, não são criados pela própria lei constitucional, como defenderia uma concepção positivista do Direito; são, isso sim, provenientes e garantidos em virtude de princípios inicial e categoricamente reconhecidos e afirmados como anteriores e superiores à Constituição; e por isso textualmente chama- dos como «fundamentais» da e na Constituição.

13. E então quais são esses princípios constitucionais designados como fundamentais, que nesse apartado inicial se reconhecem e se proclamam categoricamente como programa principiológico normativo que precede e preside a toda a Constituição? Cujo regime depois começa pela enunciação e garantia dos direitos e deveres fundamentais?

O princípio da subsidiariedade social14. Não irei, evidentemente, agora aqui referir-me a todos os princípios constantes dos onze artigos deste apartado inicial e de outros ao longo do texto constitucional, cuja expressa enunciação, aliás, não exclui a validade de princípios constitucionais fundamentais não escritos. Como o nosso Tribunal Constitucional tem reconhecido, em consonância com a teoria internacional que afirma a validade de princípios constitucionais mesmo quando não escritos nas Constituições.

Direi apenas que, segundo penso, entre eles se destacam três, como verdadeiros metaprincípios.

15. Em primeiro lugar, antes e acima de todos, o metaprincípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1.º. É o princípio da categórica afirmação da primacialidade da pessoa humana, como «fim em si mesma» (na expressão de Kant) e como protagonista natural e responsável da vida social e política — portanto em oposição a todas as concepções colectivistas ou autoritárias que reduzem ou alienam a pessoa humana, bem como em oposição a quaisquer individualismos que a degradam. Pessoa por natureza titular de direitos e deveres inatos, invioláveis, inalienáveis e irrenunciáveis. O que implica que o metaprincípio da dignidade da pessoa humana inclua necessariamente a proclamação categórica e universal dos direitos e deveres humanos-pessoais — repito: inatos, invioláveis, inalienáveis e irrenunciáveis.

16. Imediatamente, em segundo lugar (agora constante do artigo 2.º da Constituição), vem o metaprincípio da democracia, enquanto genuíno, livre e efectivo exercício dos pessoais direitos e deveres humanos igualmente por todos os membros de uma sociedade. Portanto, insista-se, democracia como exercício pessoal dos direitos e deveres humanos, em liberdade e em igualdade de oportunidades. Uma tal democracia está expressamente qualificada pela nossa Constituição, no referido art. 2.º, como pluralista, integral e participativa. É esta democracia — assim definida, e não outra democracia qualquer — que é imposta pela Constituição Portuguesa ao Estado, no mesmo art. 2.º; para que, submetendo-se a ela, o Estado seja legitimado como Estado de Direito (isto é, submetido ao Direito universal que é princípio superior à Constituição) e ainda como Estado Democrático (isto é, submetido à Democracia, isto é, à soberania do povo).

17. Finalmente, em terceiro lugar (e por imperativo lógico a axiológico), vem o metaprincípio da subsidiariedade do Estado, no artigo 6.º.

Digo por imperativo lógico e axiológico porque o Estado é uma instituição socialmente criada pelas sociedades humanas. Não para ter e impor uma vida própria, distinta da vida da sociedade democrática; mas apenas para ser instrumento de garantia da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos e deveres humanos, inatos e invioláveis.

II

18. Creio que me perdoarão que, nesta altura da minha apresentação, intercale uma definição do princípio da subsidiariedade. Porque se trata de um princípio que, infelizmente, não entrou ainda num conhecimento alargado da comum vida política. E convém que nos entendamos bem, desde logo entre nós, neste encontro.

19. Segundo uma apreciação que é geral, a melhor definição que se conhece do princípio da subsidiariedade social é aquela que o Papa Pio XI incluiu na sua Encíclica Social, de 1931, ano este terrível, primeiro de uma década terrível de regimes totalitários. Encíclica que é designada como Quadragesimo anno, porque veio comemorar os quarenta anos da primeira grande encíclica papal sobre a questão social, ainda no século XIX, a famosa Rerum novarum de Leão XIII.

Escreveu assim Pio XI, em certa altura da sua Carta universal: «Ao falarmos na reforma das instituições, temos em vista sobretudo o Estado…». E logo adiante, sobre esta questão, afirmou: «permanece contudo imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem fazer com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à colectividade, do mesmo modo é uma injustiça, um grave dano e uma perturbação da boa ordem social, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir. O fim natural da sociedade, e da sua acção, é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los. Deixe pois a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer: dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam: quanto mais perfeita ordem hierárquica reinar entre as varias agremiações, segundo este princípio da função subsidiária dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação.»

20. Esta definição é também recordada, como seminal, pelo Prof. Manuel Braga da Cruz, no curto mas excelente Prefácio do livro de que estamos falando. E é amplamente comentada no próprio livro, pela sua Autora. É este um dos seus méritos. E é deste seu livro que, a propósito, cito as primeiras palavras do Resumo que logo na sua abertura ela oferece ao leitor. Dizendo assim.

«A subsidiariedade é um princípio de direito natural que regula as competências baseadas em responsabilidades próprias. É, também, um princípio democrático na medida em que a sua aplicação impede a omnipotência das instituições e do Estado.»

21. Devo dizer que já li bastante — embora, evidentemente, longe de ter lido tudo quanto há de bom sobre o princípio da subsidiariedade — e não me recordo de ter lido uma outra fórmula tão concisa e precisa como esta, de Sílvia Mangerona. Ao recorrer ao conceito de responsabilidade, depois de ter afirmado que a questão é de direito natural, a nossa Autora reconduz a problemática da subsidiariedade a uma ordem de justiça no cumprimento de deveres, antes que do exercício de direitos. O que me parece muito certo, iluminante e oportuno. Aplicada ao Estado, que tem por função constitucional (portanto como dever) a garantia dos direitos e dos deveres humanos inalienáveis e irrenunciáveis das pessoas, essa formulação acentua que o Estado, apenas e por delegação, cumpre subsidiariamente deveres de subsidiariedade dos cidadãos.

22. Convém recordar, porque raramente se fala disso, que a DUDH afirma categoricamente que «[Todos os seres humanos] Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade». Isto é, que todos os seres humanos têm inatos deveres humanos, e não só direitos humanos. O que aliás seria absurdo, porque não há direitos sem deveres nem deveres sem direitos. A nossa Constituição também titula a sua Parte Primeira exactamente com a expressão «Direitos e Deveres Fundamentais».

23. Isto tem duas consequência imediatas.

A primeira é que, pela própria natureza estritamente pessoal dos deveres de fraternidade humana, que incluem os deveres de solidariedade social (os quais justificam os chamados direitos sociais), o seu cumprimento tem sempre e necessariamente um carácter de subsidiariedade. Doutro modo, o cumprimento do dever pessoal de fraternidade dominaria ou alienaria o titular pessoal do correspondente direito de fraternidade.

E a segunda consequência é que, quando o chamado Estado Social vem satisfazer direitos fundamentais dos cidadãos a que chama direitos sociais, só pode vir realizar esse cumprimento como delegado dos cidadãos titulares dos correspondentes deveres de fraternidade — e não como titular de um direito seu original, que cria um dever de aceitação aos cidadãos. Ora, se os deveres de fraternidade humana que delegadamente cumpre são deveres de carácter subsidiário, por maioria de razão os deveres do Estado Social são deveres de subsidiariedade e de segundo grau.

24. Em rigor, a função do Estado é toda ela e sempre uma função de subsidiariedade, mesmo quando exercita exclusivamente poderes públicos, ou poderes de soberania. Porque a exclusividade do Estado no exercício destes poderes públicos ou de soberania (necessários designadamente para a defesa externa, a ordem interna e a justiça pública), é subsidiariamente necessária como supletiva perante a impossibilidade de os cidadãos executarem directa e imediatamente essas funções. Insista-se: o exclusivo exercício destes poderes de soberania é requerido pelo princípio da subsidiariedade. Não o contraria.

25. Quanto aos deveres de fraternidade, agora pensando-os na sua expressão como deveres de solidariedade social, são deveres exclusivamente pessoais, inatos, inalienáveis e irrenunciáveis.

Diríamos que são deveres de personalidade. Garanti-los delegadamente, como tais, é função do Estado. Mas apropriar-se do cumprimento desses deveres, sob pretexto de os garantir, é um acto de despotismo.

E nem se diga que o pode fazer alegando a delegação de poderes em democracia representativa, porque nem os próprios cidadãos poderão fazer uma delegação nesses termos, dado que, como já se disse, os seus deveres humanos-pessoais são inatos, inalienáveis e irrenunciáveis. Uma delegação no seu efectivo cumprimento sim, pode conceber-se: mas então só como função meramente executiva, sem alienação da responsabilidade pessoal dos delegantes, e sem qualquer apagamento ou mudança dos direitos pessoais correspondentes a esses deveres pessoais.

Minhas Senhoras e meus Senhores:
26. Até aqui, eu procurei apresentar um quadro de referências conceituais e constitucionais que, em meu entender, reclamam uma maior valoração constitucional, e uma mais efectiva aplicação institucional e prática, do princípio da subsidiariedade, nas democracias pluralistas, como a nossa, que se reclamam estar baseadas no megaprincípio da dignidade da pessoa humana e dos seus direitos e deveres humanos-pessoais — tal como está categórica e universalmente reconhecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na nossa Constituição.

Porque, como suponho já ter deixado claro, o princípio da subsidiariedade do Estado é, irrecusavelmente, uma consequência e uma exigência lógicas daquele megaprincípio.

27. Atente-se bem: se, na vida social e política, primeiro e acima de tudo está a dignidade da pessoa humana e o pleno exercício, por ela, dos seus direitos e deveres humanos-pessoais, então (e sob pena de contradição), a função do Estado, enquanto garantidor daquele megaprincípio de dignidade e de direitos e deveres de personalidade humana, só pode ser de natureza protectora e auxiliar do efectivo exercício daqueles direitos e daqueles deveres pessoais. Só pode ser uma função — numa palavra —subsidiária.

28. Assim, e considerando que o livro da Prof.ª Sílvia Mangerona (agora publicado) é, entre nós, a primeira monografia académica dedicada à directa incidência deste princípio na democracia portuguesa (passado que vai quase um quarto de século que o dito princípio da subsidiariedade do Estado foi consagrado no art. 6.º da nossa Constituição), o que deixei dito é prova do justo reconhecimento de um mérito que lhe é devido. E se o livro, para alguns (e penso especialmente agora nos constitucionalistas e nos magistrados) não satisfizer ainda (mais rigorosa e aprofundadamente) o necessário inteiro tratamento jusconstitucional do princípio da subsidiariedade do Estado — porque a sua autora escreve como politóloga, e não como jusconstitucionalista — isso só pode ser invocado contra a nossa omissão colectiva.

29. Não irei alongar-me ainda mais, descrevendo os conteúdos desenvolvidos no livro de Sílvia Mangerona. Penso que a apresentação pública de um livro deve justificar o convite ao seu conhecimento posterior por uma leitura pessoal. Isso sim, deve justificar. Mas não tem de já antecipar uma leitura crítica dele.

Direi apenas que o leitor deste livro vai encontrar generosas informações sobre a longa e larga história da ideia da subsidiariedade social, que tardou muito em se revelar mais clara e operativamente no pensamento social e político moderno. Vai ficar mais informado sobre a importância verdadeiramente revolucionária deste megaprincípio, para o progresso das democracias baseadas na dignidade da pes- soa humana, como a nossa.

30. E finalmente também poderá vir a compreender melhor as dificuldades políticas, partidárias e ideológicas do reconhecimento e da aplicação constitucionais do princípio da subsidiariedade, porque é manifesto que — como já dissemos que a Autora anunciou no seu Resumo inicial —, ele é «um princípio democrático na medida em que a sua aplicação impede a omnipotência das instituições e do Estado». Ora este é um magno problema actual: o das relações entre a Sociedade Civil e o Estado.

31. De facto, minhas Senhoras e meus Senhores, o Estado é um Leviatã.

Foi-o sempre historicamente. Foi-o lapidarmente na filosofia de Hobbes, um dos pais precursores do constitucionalismo moderno — embora melhores do que ele tenham sido Locke e o pensamento católico sobre a moral social.

O princípio da subsidiariedade é um princípio democrático que impede a omnipotência das instituições e do Estado

Foi-o ainda, mais tarde, na teoria de Karl Marx, pelo que Lenine depois desenvolveu a teoria da necessária extinção do Estado para advento da final e desejável chamada «sociedade terminal», isto é, uma sociedade sem Estado.

32. A relação entre (por um lado) o Direito justo, e (por outro lado) a Força de Estado que o garante, contém uma íntima contradição.

Porque se o Direito justo precisa da força de Estado em seu favor, isto é, para sua garantia; entretanto sucede que a força de Estado também tem um outro direito, que é chamado o direito da força.

O direito da força é sempre uma coisa grave, porque significa dizer que «não há direito», por si mesmo. Por isso, esta expressão é muitas vezes usada como crítica aos abusos da força, ao absolutismo, ao «quero, posso e mando». Mas, outras vezes, é uma coisa que se aceita, como quando o povo diz, com óbvia ironia mas com triste conformismo: «Quem manda, manda bem». Ou ainda, e agora já em sede de pretendida racionalidade, quando se defende um positivismo jurídico.

33. Eis a questão nuclear e substantiva do Direito, da democracia política constitucional e do Estado. É esta magna questão que o princípio da subsidiariedade vem resolver, ao lado do primeiro megaprincípio da dignidade da pessoa humana (na integralidade dos seus direitos e deveres humanos) e do segundo megaprincípio do bem comum em democracia.

Ler este livro de Sílvia Mangerona estimula-nos para a compreensão crítica desta magna questão.

Terminei.

Muito obrigado pela atenção que me dispensaram.


1000 Characters left


Please publish modules in offcanvas position.