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Heróis do Mar


Heróis do Mar

Poder-se-ia dizer que o novo livro de Nuno Severiano Teixeira é sobre a história do hino e da bandeira nacionais. Seria, contudo, simplificar.

Nuno Severiano Teixeira
Heróis do Mar.
História dos Símbolos Nacionais
Lisboa, A Esfera dos Livros, 2015

por Teresa Pinto Coelho Teresa Pinto Coelho

Professora Catedrática, Universidade Nova de Lisboa

Partindo do etno-simblismo, que põe em destaque o papel desempenhado por mitos, valores e símbolos, assim como tradições e memórias na construção e na existência das nações, o autor estuda de que forma o hino e a bandeira se revestem de ricos e complexos significados político-simbólicos, sendo indissociáveis da ideia de nação, do nacionalismo e da identidade nacional portuguesa.

Para levar a cabo este objectivo, Severiano Teixeira utiliza não só fontes históricas e jornalísticas, mas também uma interessante e vasta bibliografia teórica sobre nacionalismo e símbolos nacionais, identidade nacional e comemorações, que, inovadora e inteligentemente, aplica ao caso português.

O sugestivo título do livro – Heróis do Mar – remete de imediato para o Ultimatum britânico de 11 de Janeiro de 1890, episódio que Severiano Teixeira conhece bem, e de há muitos anos, tendo constituído o tema da sua tese de mestrado.

No calor do violento protesto anti-britânico contra o Ultimatum, entendido como vexante capitulação perante a velha aliada, Alfredo Keil e Henrique Lopes de Mendonça juntar-se-iam para criar A Portuguesa, marcha patriótica que exalta o passado marítimo português cantado em Os Lusíadas, o passado dos que: “Por mares nunca dantes navegados / Passaram ainda além da Taprobana”. A imagética marítima partilhada pelo épico de Camões e a composição da dupla Keil-Mendonça não é coincidência, sendo reforçada em A Portuguesa pelos versos: “E o teu braço vencedor / Deu novos mundos ao mundo”.

No que diz respeito a Keil, a composição enquadra-se na sua produção artística de cariz nacionalista, nomeadamente, musical representada, por exemplo, pelas óperas Dona Branca, ou Irene, de inspiração garretiana; quanto a Lopes de Mendonça, havia já escrito poemas de resistência patriótica anti-britânica, como “Delenda Albion”, incluída na colectânia A Pátria: A Luís de Quillinan.

A literatura anti-britânica é, pois, anterior ao Ultimatum glosando igualmente os Descobrimentos, o que teria continuidade na Pátria de Guerra Junqueiro, cujo subtítulo é o verso de Os Lusíadas: “Esta é a ditosa pátria minha amada”.

Revolucionário e inflamatório, o poema dramático junqueiriano dava voz ao descontentamento generalizado. No seguimento do 11 de Janeiro, a população agita- -se nas ruas injuriando a Inglaterra, manifestando-se contra o ensino da língua inglesa, repudiando a presença de actores britânicos nos teatros portugueses, exigindo o fim das exportações inglesas. Se em Lisboa se apedreja a casa do cônsul britânico, no Porto, o cônsul Oswald Crawfurd acabaria por ser afastado.

Então em Paris, Eça, que consideraria o Ultimatum a maior crise enfrentada pela sua geração, escrevia a Oliveira Martins em 28 de Outubro de 1890: “Esse inteligente patriotismo que leva os jornais a não quererem receber mais periódicos ingleses (!!), os professores a não quererem ensinar mais o inglês, os empresários a não quererem que nos seus teatros entrem ingleses, os proprietários de Hotéis a não quererem que nos seus quartos se alojem ingleses – parece- -me um invenção do inglês Dickens”.

E ainda: “Não estou certo do que deva pensar desse renascimento do Patriotismo, esses gritos, esses crepes sobre a face de Camões, esses apelos às Academias do mundo, esses renunciamentos heróicos das casimiras e do ferro forjado, essas jóias oferecidas à Pátria pelas senhoras, essas pateadas aos Burnays e Mózers, esse ressurgir de uma ideia colectiva, toda essa barafunda sentimental e verbosa, em que o estudante do liceu e o negociante de retalho me parecem tomar de repente o comando do velho Galeão Português”.

“A Portuguesa” responderia a esta crise da identidade nacional apelando a um passado glorioso, uma Idade do Ouro mítica, e estimulando o orgulho nacional.

Como demonstra Nuno Severiano Teixeira, ao apropriar-se da marcha patriótica de 1890, a jovem República dá continuidade à simbologia dos Descobrimentos. Como explica, é ao som de “A Portuguesa” que, no dia 5 de Outubro de 1910, os revolucionários descem a Avenida da Liberdade.

A republicanização da marcha já tivera antecedentes quando da revolta do Porto de 31 de Janeiro de 1891; o decreto de 19 de Junho de 1911 consagrá-la-ia hino nacional. A República sacralizava um dos seus novos símbolos.

Outro seria o destino da bandeira azul e branca da Monarquia Constitucional. Ao invés do que aconteceria com o hino, a escolha da bandeira não foi pacífica. Severiano Teixeira inclui ilustrações com muitos projectos de bandeiras, então apresentados e ilustrativos da “querela da bandeira”. A bandeira por fim escolhida ilustra continuidade e ruptura. A primeira revela-se ao nível dos símbolos - o escudo com as quinas e os sete castelos; a ruptura consiste na alteração das cores – a substituição do azul e branco (curiosamente defendidos por Junqueiro) pelo verde e vermelho.

Os símbolos remetem para a Fundação da nação, evocando D. Afonso Henriques e a lenda de Ourique, assim como para os Descobrimentos, representados pela esfera armilar, instrumento náutico presente na bandeira pessoal de D. Manuel. Quanto às cores, muito debatidas pela jovem República, rompem com a monarquia brigantina corrupta “e a alusão ao culto católico da padroeira, no respeito da mais estrita tradição antimonárquica, laica e anticlerical do republicanismo”.

Assim, conclui o autor, sumarizando: “O vermelho, herdado das bandeiras do 31 de Janeiro e de 5 de Outubro, é a cor dos movimentos revolucionários e populares, marca indelével da matriz política democrática da tradição republicana.

O verde, igualmente herdado das bandeiras revolucionárias, é a cor destinada por Auguste Comte aos pavilhões das nações positivistas do futuro, ‘a cor que mais convém aos homens do porvir’, como o relatório da própria comissão deixa transparecer. O verde marca, assim, a matriz ideológica e cultural positivista do republicanismo” (p. 62).

Embora só oficialmente consagrada em 19 de Julho de 1911, a nova bandeira seria desfraldada no dia 1 de Dezembro de 1910, comemorado enquanto Dia da Bandeira, trazendo para a República a mitologia político-simbólica da Restauração, que se juntaria às da Fundação e dos Descobrimentos.

Por seu turno, recuperando o nacionalismo do discurso republicano, o Estado Novo manteria os símbolos nacionais, embora passassem a servir uma outra concepção de nação, “moldada nos princípios ideológicos do catolicismo e da direita conservadora e nacionalista” (p. 69).

Após o estudo das origens do hino e da bandeira e da transformação dos mesmos em símbolos de identificação e legitimação da República, a discussão é trazida para os dias de hoje, o que torna o estudo de Severiano Teixeira não só actual, mas muito interessante e gerador de reflexão.

A bandeira por fim escolhida ilustra continuidade e ruptura. A primeira revela-se ao nível dos símbolos; a ruptura consiste na alteração das cores

O autor mostra como se alterou a relação dos portugueses com estes símbolos, que se mantêm como definidores da ideia de nação, e de que forma contribuem para a identidade nacional. Os exemplos que apresenta dizem respeito ao desporto, mostrando como, a partir do Euro 2004, a bandeira passa a ser exibida nas janelas das casas, em carros, ou em t-shirts. Assim, conclui que, enquanto durante muito tempo eram distantes, estabelecendo com os portugueses uma relação que vinha “a partir de cima”, do Estado, os símbolos nacionais foram apropriados pela sociedade civil, tendo sido criada uma relação de proximidade - “a partir de baixo”.

Neste ponto, Severiano Teixeira adopta a terminologia de T.H. Erikson (reputado especialista sobre simbolismo das bandeiras e nacionalismo) - “flag waving from above / flag waving from below” - e alarga-a, apropriadamente, ao estudo da tipologia do hino, também ele cantado “a partir de baixo”.

A conclusão é que, mantendo inalteráveis a bandeira e o hino, a nível mítico-simbólico, a Democracia continua a assentar na mitologia da Fundação e no império, ou seja, no regime simbólico moderno, de acordo com a tripartição proposta por Gabriella Elgenius (citada por Severiano Teixeira), para o estudo das bandeiras europeias e dos hinos: pré-moderno, moderno e pós-imperial. “O regime pré-moderno remonta às origens medievais e a narrativa é de matriz, essencialmente, religiosa e monárquica. O regime moderno remonta à Revolução Francesa, glorifica os valores revolucionários e a narrativa, pelo contrário, é de matriz laica e republicana. O regime pós-imperial remonta ao pós-Primeira Guerra Mundial e à dissolução dos impérios europeus, e a sua narrativa glorifica a independência das nacionalidades” (p. 15).

Mas, se hinos e bandeias traduzem concepções de nação, poderíamos, então, perguntar porque motivo / motivos o hino e a bandeira nacionais não foram adaptados ao Portugal pós-imperial. A resposta conduziria, contudo, a outra discussão.


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