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Tocqueville 2022 - Cultura, liberdade e fé cristã

Jorge Miranda

Jorge Miranda

Professor de Direito e jurisconsulto português

A história e a atualidade mostram uma incindável conexão entre a liberdade cultural, a liberdade religiosa e a liberdade política.

1. Cultura envolve:

  • tudo quanto tem significado espiritual e, simultaneamente, adquire relevância coletiva;
  • tudo que se reporta a bens não económicos;
  • tudo que tem que ver com obras de criação ou de valorização humana, contrapostas às puras expressões da natureza.

Cultura abrange a língua e as diferentes formas de linguagem e de comunicação, a religião, os usos e costumes quotidianos, o Direito, a arte, os símbolos e o património comunitários, as formas de apreensão e de transmissão de conhecimentos, as formas de cultivo da terra e do mar e as formas de transformação dos produtos daí extraídos, as instituições políticas, o meio ambiente enquanto alvo de ação humanizadora. Assim como cada homem ou cada mulher é, antes do mais, moldado ou moldada pela cultura em que nasce e se realiza.

Para além do que é universal, qualquer comunidade, por força de circunstâncias geográficas e históricas, possui a sua própria cultura, manifestação de uma identidade distinta, embora sempre em contacto com as demais e sofrendo as suas influências. E, nos dias de hoje, a circulação sem precedentes de pessoas e de instrumentos de comunicação conduz, algo contraditoriamente, a tendências uniformizadoras e de multiculturalismo.

Citando um texto do capítulo II da constituição conciliar Gaudium et Spes:

Tocqueville 2022 - Cultura, liberdade e fé cristã“A palavra «cultura» indica, em geral, todas as coisas por meio das quais o homem apura e desenvolve as múltiplas capacidades do seu espírito e do seu corpo; se esforça por dominar, pelo estudo e pelo trabalho, o próprio mundo; torna mais humana, com o progresso dos costumes e das instituições, a vida social, quer na família quer na comunidade civil; e, finalmente, no decorrer do tempo, exprime, comunica aos outros e conserva nas suas obras, para que sejam de proveito a muitos e até à inteira humanidade, as suas grandes experiências espirituais e as suas aspirações.

“Daqui se segue que a cultura humana implica necessariamente um aspecto histórico e social e que o termo «cultura» assume frequentemente um sentido sociológico e etnológico. É neste sentido que se fala da pluralidade das culturas. Com efeito, diferentes modos de usar das coisas, de trabalhar e de se exprimir, de praticar a religião e de formar os cos- tumes, de estabelecer leis e instituições jurídicas, de de- senvolver as ciências e as artes e de cultivar a beleza, dão origem a diferentes estilos de vida e a diversas escalas de valores. E assim, a partir dos usos tradicionais, se constitui o património de cada comunidade humana. Define-se também por este modo o meio histórico determinado no qual se integra o homem, raça ou época, e do qual tira os bens necessários para a promoção da civilização.” 1

2. Por outro lado, a cultura pode ser tomada em sentido estrito, recaindo em educação, ciência e arte. E a história e a atualidade mostram uma incindível conexão entre a liberdade cultural, a liberdade religiosa e a liberdade política. Só onde haja liberdade política pode haver liberdade cultural e liberdade religiosa. Só onde haja liberdade de cultura e liberdade de religião pode desenvolver-se a liberdade política.

Apoio-me, outra vez, na Gaudium et Spes:

“Pois a cultura, uma vez que deriva imediatamente da natureza racional e social do homem, tem uma constante necessidade de justa liberdade e de legítima autonomia, de agir segundo os seus pró- prios princípios para se desenvolver. Com razão, pois, exige ser respeitada e gozar duma certa inviolabilidade, salvaguardados, evidentemente, os direitos da pessoa e da comunidade, particular ou universal, dentro dos limites do bem comum.

“O sagrado Concílio, recor- dando o que ensinou o primei- ro Concílio do Vaticano, declara que existem «duas ordens de conhecimento» distintas, a da fé e a da razão, e que a Igreja de modo algum proíbe que «as artes e disciplinas humanas usem de princípios e métodos próprios nos seus campos respectivos»; «reconhecendo esta justa liberdade», afirma por isso a legítima autonomia da cultura humana e sobretudo das ciências.

“Tudo isto requer tam- bém que, salvaguardados a ordem moral e o bem comum, o homem possa investigar livremente a verdade, expor e divulgar a sua opinião e dedicar-se a qualquer arte; isto postula, finalmente, que seja informado com verdade dos acontecimentos públicos.

“À autoridade pública pertence, não determinar o carácter próprio das formas de cultura mas favorecer as condições e as ajudas necessárias para o desenvolvimento cultural de todos, mesmo das minorias de alguma nação. Deve, por isso, insistir-se, antes de mais, para que a cultura, desviando-se do seu fim, não seja obrigada a servir as forças políticas ou económicas.” 2

Tocqueville 2022 - Cultura, liberdade e fé cristã3. Não posso deixar de lembrar aqui o tratamento da matéria na Constituição portuguesa, onde se encontram:

  • o direito e o dever dos pais de educação dos filhos [arts. 36o, no 5, 67o, no 2, alínea f), e 68o, no 1];
  • a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respetiva confissão (art. 40o, no 5);
  • a liberdade de criação cultural (artigo. 42o)
  • a liberdade de aprender e ensinar (arts. 43o e 75o), com garantia de escolas particulares e cooperativas (art. 41o, no 4);
  • os direitos à cultura, à educação e à ciência (arts. 73o, 76o, 77o e 78o, e ainda arts. 69o, 70o e 71o).

Assim como, a liberda- de de religião (art. 41o), cujo exercício, em nenhum caso, pode ser afetado em estado de emergência ou em estado de sítio (art. 19o, no 6).

4. Tudo completado por:

  • a interpretação e a integração de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 16o, no 2)
  • o regime geral dos direitos fundamentais (arts. 18o e segs.).

5. Ora, espaço e tempo, por excelência, de encontro de educação, ciência e cultura em liberdade há de ser a Universidade. E mais e melhor Universidade há de ser a Universidade Católica.

Mais e melhor Universidade:

  1. Como convivência fraterna de professores, alunos e funcionários;
  2. Como ligação indestrutível aos que já se formaram, aos que aqui ensinaram e aos que, de qualquer modo, por aqui passaram;
  3. Como sentido de futuro, olhando para os jovens que, mais tarde, nela entrarão;
  4. Como incindibilidade da ciência e da cultura, compensando-se a especialização, inelutável e crescente na nossa época, por mais cultura e mais humanização;
  5. Como diversidade, harmonização e integração das pessoas e das matérias;
  6. Como abertura e complementaridade com outras instituições de ensino, ciência e cultura;
  7. Como abertura ao exterior, como sentido de comunidade entre universitários e não universitários.

6. A existência de uma Universidade Católica era uma aspiração antiga e, durante muitos anos, apenas se conseguiria a Faculdade de Filosofia de Braga de muito prestígio.

O centralismo burocrático do regime autoritário, dúvidas de muitos responsáveis e, porventura mesmo, divergências não lhe tinham sido favoráveis.

Apenas em 1967 se conseguiria avançar, quando o regime estava alquebrado e se faziam sentir mais em Portugal os ecos e as repercussões do Concílio.

Um papel de relevo na criação da Universidade Católica caberia ao Padre José Bacelar de Oliveira, vice-reitor de início.

7. Um ponto importante a salientar: a Universidade Católica não se situa, pura e simplesmente, no âmbito do ensino particular. Ela consta de um tratado internacional – a Concordata entre Portugal e a Sé de 2004.

Conforme prescreve a Concordata, a Universidade Católica Portuguesa, criada pela Santa Sé em 13 de outubro de 1967 e reconhecida pelo Estado Português em 15 de julho de 1971, desenvolve a sua atividade de acordo com o Direito português com respeito pela sua especificidadde institucional (art. 21o, no 3).

8. Nos anos seguintes, passando incólume através das vicissitudes do país, a Universidade Católica iria implantar-se solidamente:

  • ao estabelecer novos cursos e institutos, entre os quais o Instituto de Estudos Políticos;
  • ao estabelecer um pólo no Porto e outro em Viseu, e no Porto ao criar uma segunda Escola de Direito
  • ao construir este magnífico edifício, a Biblioteca João Paulo II, que o próprio visitou em maio de 1982, num momento de grande alegria para todos nós;
  • a construção também do edifício da Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais;
  • ao tentar adaptar-se o melhor possível ao chamado e lamentável “processo de Bolonha”
  • ao dotar-se de uma excelente editora;
  • ao dotar-se também de um excelente centro de sondagens;
  • ao lançar agora uma Faculdade de Medicina.

9. No respeitante a Direito, conseguiu-se trazer para a Universidade Católica alguns dos mais importantes professores das Universidades de Coimbra e de Lisboa e de ouras instituições.

Não posso deixar de evocar, pelo menos, três grandes professores já falecidos, três grandes mestres: João de Castro Mendes, Manuel Cavaleiro de Ferreira e António de Sousa Franco.

Este um rigoroso caminho, diverso do que, quase sempre, têm percorrido as Universidades privadas surgidas depois.

Nas renovações do corpo docente tornadas necessárias, o critério básico tem sido o de convidar recém-formados que aqui tenham sido alunos muito bem ou bem classificados.

Tal como, reconhecendo e comprovando a qualidade do curso, alguns dos seus licenciados têm feito carreira na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

10. Até por uma questão de princípio, nunca tive dúvidas quanto à necessidade e à possibilidade de uma Universidade Católica Portuguesa.

Numa tarde quente de junho de 1967, aqui estive com alguns amigos para assistir ao lançamento da primeira pedra em Palma de Baixo e para participar na missa celebrado pelo Cardeal Cerejeira.

Em 1970, com José de Oliveira Ascensão e António de Sousa Franco, integrei a comissão instaladora da Faculdade de Ciências Humanas. Quando esta começou a funcionar, no ano letivo de 1972-1973, fui assistente em Noções Gerais do Direito; e, desde então até 2021 (exceto num ano), ensinei em vários cursos e, naturalmente, no curso de Direito criado em 1976. E, quando a Faculdade de Ciências Humanas seria desdobrada em 1988, viria a ser contratado como professor catedrático da Faculdade de Direito, com reconhecimento da categoria que havia obtido na Universidade de Lisboa.

Viria a ser Deputado à Assembleia Constituinte em 1975-1976 e Deputado à Assembleia da República em 1980-1982, por altura da primeira revisão constitucional; mas a minha atividade política acabou aí, porque a Comissão Constitucional, de que fui membro de 1976 a 1980 era um órgão jurisdicional ou parajurisdicional.

A minha vida ativa foi sempre académica e em nenhum desses períodos deixei de dar aulas nas Faculdades de Direito da Universidade Católica e da Universidade de Lisboa, para mim duas Faculdades irmãs.

Deixem-me, no entanto, tocar três notas tristes:

  • faltar interdisciplinaridade no domínio dos direitos das pessoas (que não se reduzem a direitos fundamentais) entre os cultores da Teologia, da Filosofia, do Direito, da Ciência Política e das outras Ciências sociais;
  • serem poucas as ligações com as Universidades católicas do Brasil, de Angola e de Moçambique;
  • ocorrer uma utilização exagerada do inglês, em detrimento do português; internacionalizar não pode equivaler a desnacionalizar.

A par disso ainda, no âmbito geral da Igreja, sinto ser ser pequena ou pouco visível a sua presença nas demais Universidades. Que saudades tenho do Encontro, o jornal dos universitários católicos do meu tempo de estudante!

11. Termino, servindo-me de dois admiráveis textos: um, um pouco mais longo, de Joseph Ratzinger, o futuro Papa Bento XVI, no livro Fé, verdade, tolerância – O cristianismo entre as grandes religiões do Mundo 3 ; o outro, mais curto, do Papa Francisco, na encíclica Fratelli Tutti 4.

Diz Joseph Ratzinger:
“Existe uma posição inteiramente característica do Cristianismo na história espiritual da Humanidade. Poderíamos dizer que ela consiste em a fé cristã não separar esclarecimento racional e religião, não os pôr em confronto, mas ligá-los como que numa estrutura na qual, de modo continuado, ambos se têm de reciprocamente purificar e aprofundar. Faz parte da essência do Cristianismo esta vontade de racionalidade – que aliás sempre levou a razão a uma auto-superação que ela de bom grado se prestava a recusar. Podemos também dizer: a fé cristã, que nasceu da fé de Abraão, insiste inexoravelmente na questão da verdade e, assim, naquilo que diz respeito a todos os homens e os liga uns aos outros. Pois todos nós temos de ser peregrinos da verdade.

O mero pluralismo das religiões, enquanto posicionamento permanente de blocos lado a lado, não pode ser a última palavra na atual hora da história. Porventura, teremos que o substituir por um conceito melhor a palavra «inclusivismo» que, aliás, era até há pouco usada noutro sentido na investigação da história das religiões. Certamente não é declarada a absorção das religiões numa única, mas é necessário encontrar uma unidade que transforme o pluralismo em pluralidade.

A par disso há a maneira cristã de universalidade, que não vê o simplesmente inominável como a última realidade; esta, para o Cristianismo, é aquela unidade misteriosa originada pelo amor, e que se representa, para além de todas as nossas categorias, como a tri-unidade de Deus que, por sua vez, significa a mais alta imagem da reconciliação da unidade com a multiplicidade. A última palavra do ser já não é o absoluto inominável, mas o amor que se torna visível no Deus que se faz criatura e assim une a criatura ao Criador. Em muitos aspetos, esta forma parece mais complicada que a «asiática». Mas não acontece que todos entendemos, no fundo, o amor como a mais alta palavra, a verdadeira última palavra de todo o real?”

E ensina o Papa Francisco::
“A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mes- ma para o outro. Feitos para o amor, existe em cada um de nós “uma espécie de lei de ‘êxtase’: sair de si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser”. Por isso, “o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar apoio em si mesmo, deixar-se levar”.

Notas
Intervenção na cerimónia na Universidade Católica Portuguesa, em 17 de fevereiro de 2022, em que recebeu a medalha Fé e Liberdade por iniciativa do Instituto de Estudos Políticos.
1 Nº 53.
2 Nº 59.
3 Trad., Lisboa, 2006, págs. 77 e segs.
4 Nº 88, na trad. portuguesa, p. 62


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