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Carl Gershman

Carl Gershman

Presidente e fundador, National Endowment for Democracy

TRADUÇÃO Maria Cortesão Monteiro

Quando saiu o primeiro número do Journal of Democracy, em Janeiro de 1990, uma revolução democrática percorria o mundo. O Muro de Berlim tinha caído dois meses antes, protesto popular tinha derrubado os regimes comunistas na Europa Central e de Leste, e a União Soviética tinha começado a democratizar-se (e colapsaria no espaço de dois anos). Aquilo a que Samuel P. Huntington mais tarde chamaria de “terceira vaga” estava no seu pico, com a democracia e espalhar-se por todos os países da América Latina e das Caraíbas e com inúmeras transições democráticas a acontecer em Ásia e na África subsaariana. Com a queda do comunismo, a democracia tinha-se tornado a única forma de governo amplamente vista como legítima, e a sua expansão contínua parecia inexorável. Amartya Sen chamou à ascensão da democracia o evento mais importante do século vinte: numa mudança ideológica drástica, as pessoas tinham passado a acreditar que a democracia era “a forma de governo ‘normal’ a que qualquer nação tinha direito – quer na Europa, América, Ásia, ou África.” 1

Trinta anos mais tarde, tal optimismo sobre o futuro da democracia parece ser profundamente irrealista. 2 O mundo está hoje no centro daquilo que é frequentemente chamado de recessão democrática, estando os direitos políticos e as liberdades civis a diminuir há treze anos consecutivos, de acordo com o último estudo global da Freedom House. Muitos países que eram democracias emergentes ou democracias eleitorais têm nos últimos anos ficada cada vez mais autoritários – de entre eles actores regionais importantes como o Bangladesh, a Hungria, as Filipinas, a Tailândia, a Turquia e a Venezuela. Até nos Estados Unidos e noutros países ocidentais o apoio à democracia diminuiu, e movimentos populistas iliberais e movimentos nacionalistas têm surgido em reacção às ansiedades provocadas pela erosão das normas culturais tradicionais e mudança demográfica disruptiva e tecnológica. Polarização política aguda e um declínio da confiança na eficácia do governo democrático tem feito com que alguns analistas alertem acerca da possível “desconsolidação” de democracias ocidentais há muito estabelecidas cuja estabilidade foi em tempos tida como garantida. 3

O Instinto para a LiberdadeOs problemas que afectam as demo- cracias actuais têm sido acompanhados de uma projecção muito mais ousada de poder e influência por parte de estados autoritários como a China e a Rússia. Estes e outros regimes despóticos não estão apenas a ficar mais repressivos internamente, estando também a expandir o seu poder internacionalmente, preenchendo vácuos deixados pelo declínio da influência, unidade e auto-confiança do Ocidente democrático. Os governos autoritários estão a usar uma combinação de pressões militares e económicas, bem como ferramentas de informação e vigilância cada vez mais sofisticadas, para aumentar a sua influência internacional; para monitorizar e controlar as suas próprias populações; para dividir e enfraquecer as democracias com a aplicação de “sharp power”; e para criar uma ordem mundial pós-democrática na qual as normas de direitos humanos e regência da lei seriam substituídas pelo princípio de soberania estatal absoluta. Os autoritarismos estão também a cooperar uns com os outros para bloquear o progresso democrático e reforçar os regimes autocráticos pelo mundo.

A ressurgência do autoritarismo, a ascensão do iliberalismo, e a perda de auto-confiança do Ocidente levaram a uma acentuada reversão do progresso democrático e um novo pessimismo acerca das suas perspectivas. Em 2017, cerca de 300 importantes activistas e intelectuais, alarmados pelas tendências antiliberais na política mundial e no crescente cinismo relativamente à democracia que alimentou a ascensão do movimentos políticos e partidos antissistema, aprovaram uma declaração intitulada Apelo de Praga para a Renovação Democrática. 4

O Apelo começa por declarar “A democracia liberal está sob ameaça, e todos os que a estimam devem defendê-la.” Este apela à criação de uma nova Coligação Internacional para a Coligação Democrática que poderia servir de catalisador moral e intelectual para a renovação da ideia de democracia.

Tal coligação existe hoje sob a liderança do Forum 2000, uma organização sediada em Praga fundada pelo falecido Presidente checo, Václav Havel, em 1996 para fortalecer a cooperação democrática global. A coligação estabeleceu grupos de trabalho de resposta a novos desafios à democracia, incluindo o enfraquecimento das relações transatlânticas e os perigos colocados por uma ascendente República Popular da China. Mas estes esforços da sociedade civil ainda têm que estimular uma resposta dinâmica dos governos e líderes políticos do Ocidente. Em vez disso, aqueles que com mais força se juntaram à causa foram activistas nas linhas da frente da luta democrática em países autoritários.

Em primeiro lugar entre estes defensores da democracia têm estado os milhões de pessoas que ocuparam as ruas de Hong Kong desde Março de 2019, quando os protestos começaram por causa de uma lei de extradição que sujeitaria os residentes e visitantes de Hong Kong à jurisdição dos tribunais da China continental. Estes protestos, encabeçados por jovens, rapidamente evoluíram para um desafio continuado a Pequim, que se manifestou nos impressionantes resultados dos partidos pró-democracia nas eleições para o conselho distrital, a 24 de Novembro. Nas palavras de uma especialista em assuntos da China, Elizabeth Economy, “o ‘modelo Chinês’ está a estalar sob o peso dos protestos de Hong Kong e da acumulação de outras crises. Estas incluem o abrandamento da economia chinesa, a guerra comercial com os Estados Unidos, as críticas internacionais à enorme repressão à população Uyghur em Xinjiang por parte de Pequim, a resistência em Taiwan à coerção forçada da RPC, e as crescentes controvérsias em muitos países associadas à invasiva Iniciativa Faixa e Rota. 5

Ganhos democráticos significativos são possíveis. Os próximos anos serão definidos pela tensão entre a recessão democrática e a sua surpreendente resiliência

O Instinto para a LiberdadeTambém Moscovo foi palco de protestos maciços em meados de 2019, depois de as autoridades desqualificarem dezenas de candidatos às eleições para a Duma local ou Câmara Municipal. Tal como em Hong Kong, os manifestantes não mostraram medo e a cada dia “amadureciam e ficavam mais fortes, como afirmou um jornalista russo. 6 Putin ficou na defensiva, e os candidatos do seu partido Rússia Unida foram forçados a concorrer como independentes nas eleições à Duma de Moscovo, por “receio de serem associados a uma marca tóxica”, de acordo com o activista reformista Vladimir Kara Murza. 7 Depois de vinte anos no poder, Putin já não parece invencível: a sua postura de homem forte perdeu a atractividade durante o período de declínio económico e demográfico na Rússia que está a gerar um pessimismo generalizado relativamente ao futuro do país. Uma recente sondagem do Carnegie Moscow Center e da Levada Center mostra que desde 2017 o número de inquiridos que é a favor de “mudanças decisivas e de grande escala” na Rússia aumentou de 42 para 59 porcento, sendo que 53 porcento afirma agora que as reformas só são possíveis com “mudanças sérias no sistema político”. 8

UM INSTINTO INVENCÍVEL

Os regimes autoritários de Pequim e Moscovo não parecem estar em risco de colapso iminente, e os movimentos de protesto que actualmente os desafiam podem ser reprimidos ou simplesmente perder força no caso de um impasse político prolongado. Não obstante, estes movimentos confirmam a validade actual da observação feita pelo Presidente Ronald Reagan em 1982 no seu Westminster Address de que “o desejo instintivo [das pessoas] pela liberdade e auto-determinação surge e vai ressurgindo” em sistemas repressivos. 9 Hoje em dia vemos exemplos em muitos outros países autoritários. Na Venezuela, onde a economia está num caos, e mais de 10 porcento da população fugiu para estados vizinhos, uma oposição unida foi reconhecida como governo legítimo pelos Estados Unidos e mais de cinquenta outros países. O instinto para a liberdade também surgiu no Nicarágua, onde o regime do homem forte Daniel Ortega continua instável depois dos protestos que que deflagraram em Abril de 2018. O governo de Ortega provavelmente não sobreviveria ao colapso do seu parceiro populista e antigo patrono Nicolás Maduro na Venezuela – nem mesmo a um acordo negociado que levasse a eleições livres na Venezuela. A demissão do presidente cada vez mais autocrático na Bolívia, Evo Morales, depois de acusações de fraude das eleições presidenciais de Outubro foi mais um golpe no populismo na América Latina.

O Instinto para a LiberdadeO regime islâmico no Irão é outro exem- plo de uma ditadura cuja sobrevivência está sob ameaça, neste caso por causa dos protestos maciços contra a corrupção e a miséria económica em cidades como Qom e Mashhad que têm sido, tradicionalmente, bastiões da Guarda Revolucionária do regime. Os protestos em mais de uma centena de cidades motivados por um aumento no preço dos combustíveis (que são definidos pelo estado) foram “a mais dramática expressão de hostilidade para com os ayatollahs no poder” desde a Revolução Verde de 2009, de acordo com o Economist. 10 Recep Tayyip Erdogan, na Turquia, também tem sido desafiado como nunca antes depois das derrotas do seu partido em eleições locais no início do ano, especialmente depois da repetição das eleições para o Presidente da Câmara de Istambul. As expulsões de 2019 de Abdelaziz Bouteflika na Algéria, Omar al-Bashir no Sudão, e Saad Hariri no Líbano, resultado de revolta popular demonstram que, apesar do falhanço da Primavera Árabe em 2010-2011, a resistência ao autoritarismo no Médio Oriente não está extinta.

Em alguns países, a resistência popular ao governo autocrático criou aberturas para transição democrática. Em 2018, por exemplo, desenvolvimentos surpreen- dentes ocorreram na Arménia, Etiópia e Malásia, todos eles países de influência considerável nas respectivas regiões. Em cada um dos casos, regimes autocráticos profundamente enraizados sucumbiram à revolta da população com a corrupção e governação abusiva e inerte. No Sudão, surgiu ainda outra oportunidade de transi- ção com o recente acordo entre o exército e as Forças da Liberdade e Mudança (o grupo unido de oposição que ganhou forma durante os protestos que levaram à queda de Bashir) numa declaração constitucional e um órgão governativo conjunto. Em todos estes países, os obstáculos a uma transição democrática bem-sucedida são tremendos, mas a mera existência desta possibilidade em tantos lugares representa um importante passo em frente.

Protestos populares em vários países da Europa Central e de Leste desafiaram as políticas iliberais mais visivelmente promovidas pelos governos da Hungria e Polónia. Na Eslováquia, por exemplo, o assassinato que ocorreu em 2018, do jornalista de investigação Ján Kuciak e da sua noiva levaram a manifestações maciças que provocaram a queda do corrupto primeiro ministro Robert Fico. Um ano depois da saída de Fico, o político marginal e reformista liberal Zuzana Caputová venceu as eleições presidenciais Na Roménia, questões levantadas pela resposta da polícia ao rapto e assassinato de uma menina de quinze anos provocaram uma explosão de repulsa pública contra um governo corrupto de homens poderosos e instigaram a adoção de medidas para fortalecer a independência judicial. E na República Checa, em Junho de 2019, os escândalos à volta do primeiro ministro bilionário Andrej Babiš levaram à maior manifestação anti-governo desde a Revolução de Veludo de 1989. Manifestações maciças em Novembro de 2017, o trigésimo aniversário da Revolução, provaram que amplos segmentos da sociedade estão prontos a defender activamente a democracia. Como argumentou um artigo do Financial Times, o populismo iliberal na região teve que se colocar na defensiva “principalmente porque centenas de milhares de cidadãos da região, impacientes com os políticos que alimentam a corrupção e moldam a justiça à sua conveniência, se insurgiram contra ele.” 11

SEIS PRIORIDADES NO APOIO À DEMOCRACIA

Os protestos maciços contra a corrupção e o governo autocrático que têm acontecido em tantos países por todo o mundo não reverteram a recessão democrática dos últimos anos, mas mitigaram os seus piores efeitos, e deram-nos razões para acreditar que ganhos democráticos significativos são possíveis no período que aí vem. Os próximos anos serão definidos pela tensão entre a recessão democrática e a sua surpreendente resiliência. Neste contexto, as organizações e os indivíduos que estão a trabalhar globalmente para fortalecer a democracia devem focar-se em seis prioridades urgentes.

1 • APOIAR AS TRANSIÇÕES DEMOCRÁTICAS

O Instinto para a LiberdadeComo vimos acima, um dos desenvolvi- mentos mais surpreendentes e mais encorajadores durante este recente período de recessão democrática foram uma séria de revoltas populares contra os regimes autocráticos corruptos e abusivos. Estes levantamentos criaram oportunidades para transições democráticas em muitos países, incluindo a Tunísia, a Ucrânia, a Etiópia, a Arménia, a Malásia, o Sudão, e a Bolívia. Ajudar a assegurar que estas transições são bem-sucedidas é o desafio mais urgente com que devem lidar aqueles que trabalham pela renovação democrática. Embora os recentes desenvolvimentos tenham levado a ganhos imediatos em termos de direitos humanos e liberdade de imprensa, este progresso não terá influência política duradoura – e fará muito pouco em termos de reversão da recessão democrática – se não levar a reformas sociais e económicas reais que vão de encontro às necessidades e aspirações das pessoas. Para que isso aconteça, os países que se encontram agora em transição precisarão de desenvolver novas instituições democráticas que protejam os direitos das pessoas comuns; de capacitar os cidadãos a responsabilizar líderes políticos e elites económicas; promover crescimento económico e a oportunidade; e permitir que as sociedades resolvam de maneira pacífica questões decorrentes de divisões éticas e outras divisões. Só construindo tais instituições podem estes países tornar-se democracias inclusivas e estáveis.

O desafio é hercúleo porque um regime autoritário deixa muitas vezes os países com um legado de instituições oficiais degradadas, bem como uma sociedade civil que é inexperiente e não está preparada para aproveitar as oportunidades que as novas circunstâncias criam. Tais situações requerem uma abordagem multissectorial que apoie simultaneamente o desenvolvimento de partidos políticos, associações empresariais, sindicatos, e outras instituições.

Estabelecer pólos de transição para fornecerem assistência rápida e acessível nas áreas de reforma económica, desenvolvimento de partidos políticos, anticorrupção e reforma do sector da segurança é especialmente importante. É ainda crucial ajudar os activistas a cultivar capacidades que habilitarão alguns deles a “passar para o outro lado”, o da liderança política e serviço governamental, mesmo que outros permaneçam na sociedade civil para relembrar os novos governos das suas promessas de reforma e para os responsabilizar pelo seu desempenho.

A transição democrática é um processo de longo prazo, e as organizações internacionais que lhe dão apoio precisam de se manter envolvidas com os reformadores democráticos mesmo quando estes estes passam por contratempos inevitáveis. Os activistas ucranianos que lutavam por reforma e contra a corrupção não pararam os seus trabalhos depois do falhanço da Revolução Laranja em 2004. Os grupos internacionais que se mantiveram activos na Ucrânia estavam numa melhor posição para apoiar o processo de reforma, mais bem-sucedido, que se seguiu à Revolução da Dignidade de 2014-2014 do que estariam se não estivessem estado lá nos anos anteriores. É ainda importante a construção de redes de cooperação locais, nacionais e internacionais que possam fornecer aos activistas os recursos de que eles precisam para desenvolver plataformas de comunicação das suas mensagens. Tais redes podem também organizar encontros e promover actos de solidariedade internacional, fortalecendo assim o apoio político aos movimentos de reforma e tranquilizando os que estão na linha de frente da luta democrática de que não estão sozinhos.

2 · APOIAR A LIBERALIZAÇÃO DE SISTEMAS AUTORITÁRIOS

O Instinto para a LiberdadeHá diferenças significativas entre os regimes autoritários, e é importante adaptar o apoio às circunstâncias e oportunidades específicas de cada país. Os protestos na Rússia e em Hong Kong, por exemplo, ocorreram em ambientes relativamente abertos em que, embora houvesse inúmeras detenções, os activistas usaram as ferramentas digitais mais actuais para localizar os movimentos da polícia de intervenção, manter o público e os meios de comunicação informados, definir advogados para se defenderam da repressão, e organizar sofisticadas campanhas nas redes sociais. Embora os activistas na China continental, “estado de vigilância”, têm que lidar com um panorama mais fechado, há mesmo assim grupos que trabalham em múltiplos sectores – incluindo trabalho e ambiente – de forma a responsabilizar os líderes locais; a desenvolver práticas de forte segurança digital; a salvaguardar acesso a informação independente e treinar novos jornalistas cidadãos; e a mobilizar pressão internacional para defesa dos direitos humanos. Mesmo num país tão isolado como a Coreia do Norte, há provas de que o descontentamento vai aumentando devido à maior consciência do mundo exterior entre as elites, participantes em mercados privados, e jovens cativados por música popular e séries televisivas sul coreanas. Devemos tentar aumentar a quantidade de informação que entra e sai da Coreia do Norte, e chegar a membros da elite que tenham acesso à internet e visitem outros países asiáticos.

Apoio a grupos da sociedade civil, jornalistas independentes e defensores dos direitos humanos é importante em todos os países autoritários

Apoio a grupos da sociedade civil, jornalistas independentes e defensores dos direitos humanos é importante em todos os países autoritários, tal como é reunir apoio internacional para activistas que passam por violência e repressão. Estes corajosos activistas precisam desse apoio – mas também têm muito para ensinar ao Ocidente sobre como lidar com regimes como os de Moscovo e Pequim, que são cada vez mais hábeis a usar informação e recursos financeiros estatais para manipular a política internacional. “Uma geração de dissidentes de Leste”, escreve Anne Applebaum, “pensou mais seriamente do que nós sobre como se auto-organizar, como operar num mundo dominado elites secretas e cleptocráticas que fazem todos os possíveis para criar distracção e apatia.” Applebaum exorta-nos a aprender com estes dissidentes sobre “como competir num mundo em que o mundo está offshore, onde o poder é invisível e a apatia está generalizada.” 12

A cleptocracia transnacional é o pilar do autoritarismo moderno. Tendo em conta que se sustém em redes internacionais, é vulnerável a jornalistas interligados e grupos da sociedade civil que possam detectar actividade cleptocrátcia além fronteiras, partilhar informação, expôr transacções ilícitas, e pôr a cleptocracia na agenda pública por todo o mundo. É preciso que construir tais redes e ajudá-las a formar alianças com jornalistas de investigação dos estados cleptocráticos seja uma parte da estratégia para liberalizar os sistemas autoritários modernos, para tornar as suas operações mais transparentes, e fazer avançar a regência da lei.

3· COMBATER A INFLUÊNCIA MALIGNA DO AUTORITARISMO

O Instinto para a LiberdadeOs regimes autoritários modernos como os de Moscovo e Pequim – tecnologicamente sofisticados, economicamente integrados, e globalmente ligados – tentam minar as normas democráticas e manipular as instituições educativas e culturais, os meios de comunicação, os think tanks, e as associações cívicas por todo o mundo. Estes estados autoritários não estão apenas a aproveitar-se da abertura das democracias estabelecidas; usam ainda a sua influência multifacetada para oprimir os países em desenvolvimentos com recursos limitados que não são capazes de analisar, muito menos combater, essa actividade. A China usa ferramentas de informação e programas económicos de “sharp-power” como a Iniciativa Faixa e Rota para penetrar em sociedades externas e fazer avançar os seus objectivos geopolíticos. A Rússia, entretanto, tem alegadamente manipulado dezenas de eleições em países em África e na América Latina de forma a avançar os seus interesses comerciais e políticos. 13

É urgente fechar este iato de conhecimento relativamente à China e à Rússia, pois a informação a respeito das estratégias internacionais destes poderes é escassa em muitas das sociedades onde Pequim e Moscovo estão profundamente envolvidos. Esta assimetria coloca muitos países vulneráveis em desvantagem estratégica. O desafio de responder a uma influência autoritária crescente é agravado pelo facto de, com excepção de uns poucos países, poucos recursos foram alocados para este tema pelos meios de comunicação locais, think tanks, universidades, ou órgãos governamentais.

Os apoiantes da democracia devem dar prioridade ao estudo das várias formas de influência autoritária e os seus efeitos em instituições, normas e valores democráticas. São também fundamentais os esforços para aumentar a consciencialização, principalmente nos países e nas regiões que não estão familiarizados com as múltiplas dimensões da influência autoritária. Para isto, é essencial apoiar em países vulneráveis o treino e desenvolvimento de especialistas locais, que entendam como funcionam internamente os sistemas chinês e russo, bem como a sua capacidade crescente de influenciar internacionalmente.

4 · DEFENDER OS VALORES DEMOCRÁTICOS FACE AO CRESCENTE ILIBERALISMO E INTOLERÂNCIA

O líder do Partido Verde alemão, Ralf Fuecks, argumento no seu novo livro que a globalização e a revolução digital dividiram as sociedades modernas entre vencedores e perdedores. “Aqueles que tiveram uma boa educação, falam várias línguas, têm contactos internacionais e são literados tecnológicamente”, escreve, “são mais pro- pensos a ver mercados abertos, migração e diversidade cultural como uma oportunidade. Os restantes são mais passíveis de ver como ameaça.” Neste contexto, os movimentos populistas que se autopromovem como revoltas contra as elites globalistas têm estado em ascensão. Segundo Fuecks, os apoiantes destes movimentos vêem a defesa de uma cultural homogénea imaginada e a evocação da família, nação e estado como os bastiões contra a ameaça do seu desaparecimento.” 14

Um das respostas à diminuição do apoio à democracia liberal tem sido a promoção de educação cívica ampla e desenvolvimento da capacidade de liderança como forma de estimular uma nova geração de líderes cívicos e cidadãos participativos. Education International, uma associação internacional de sindicatos da educação que representa 32.5 milhões de educadores em 170 países, produziu recentemente um novo guia de educação cívica baseado na crença de John Dewey de que “a Democracia tem que nascer de novo em cada geração, e a educação é a sua parteira.” 15

É urgente fechar este iato de conhecimento relativamente à China e à Rússia, pois a informação a respeito das estratégias internacionais destes poderes é escassa

Tais esforços são importantes, mas precisam de ser complementados por uma estratégia intelectual e política que desafie o a mentalidade globalista que, nas palavras do economista Dani Rodrik, torna possível que “os populistas de extrema direita se apropriem do patriotismo para fins destrutivos.” 16 O Apelo de Praga para a Renovação Democrática incita os democratas liberais a defender o nacionalismo e patriotismo cívicos como alternativa ao nacionalismo iliberal que é o instrumento preferido dos mais determinados inimigos da democracia. Como escrito no Apelo:

Embora a democracia incorpore valores universais, existe num contexto nacional particular, aquelo a que Václav Havel chamou “as tradições intelectuais, espirituais, e culturais que o enchem de substância e lhe dão significado.” A cidadania democrática, enraizada em tais tradições, precisa de ser fortalecida, não podendo ser permitido que atrofie numa era de globalização. A identidade nacional é demasiado importante para ser deixada não mãos da manipulação de déspotas e populistas demagogos.

Como escreveu nestas páginas William Galston, “os democratas liberais devem fazer as pazes com a soberania nacional.” 17

5 · VENCER A NOVA BATALHA PELA TECNOLOGIA E INFORMAÇÃO

As esferas da informação e da tecnologia têm se tornado arenas crucias na contestação entre democracia e autoritarismo. Da desinformação às fake news, da vigilância ao “fim da privacidade”, a revolução na tecnologia digital está a criar ameaças à democracia. O desafio atravessa muitas dimensões diferentes da vida nas sociedades modernas, mas o seu efeito é talvez mais acentuado na informação e espaço mediático e nos processos políticos. Aqui, ferramentas como big data, inteligência artificial, e algoritmos que decidem que informação chega a cada audiência cada vez mais moldam a forma como os cidadãos vêem o mundo – e a forma como votam.

Os poderes autoritários e os regimes iliberais em ascensão percebem o poder da tecnologia digital, e já a usaram com grande eficácia para manipular os espaços da informação, para semear desconfiança popular na democracia, para dividir públicos, para desafiar noções partilhadas de verdade. Estão a construir na internet estruturas mais repressivas e a melhorar as suas técnicas de vigilância e censura.

No entanto a arena da informação e da tecnologia também fornece recursos precisos para os democratas, permitindo que estes investiguem abusos, combatam as narrativas iliberais, e informem e organizem os cidadãos usando formas emergentes de meios de comunicação independentes online. Tendo em conta que um segmento crescente da actividade cívica se articula na tecnologia, e particularmente na internet e nas redes sociais, a capacidade de adaptar a tecnologia a fins democráticos é essencial. Uma resposta abrangente ao desafio autoritário deve incluir iniciativas para exposição dos perigos da manipulação autoritária dos processos políticos e da informação; de fortalecimento de investigação jornalística de fonte aberta e dados de acesso livre que exponham a corrupção e os abusos; de protecção da liberdade da internet em termos nacionais e globais; implantação de tecnologias tecnologias anti-censura e anti-vigilância de ponta; de fortalecimento das redes de apoio à segurança digital; e de intensificação a nível global dos esforços para influenciar as políticas dos órgãos de governação da internet e principais firmas tecnológicas. É fundamental assegurar que a esfera digital pública, que está em constante evolução, é governada por normas democráticas.

O Instinto para a Liberdade

6 · RESTABELECER A VONTADE POLÍTICA

Nos Estados Unidos e noutras das principais democracias, tem havido uma diminuição da vontade política de defesa da liberdade e de apoio àqueles que lutam pela democracia pelo mundo. Esta diminuição de vontade política é resultado de vários factores, incluindo a ascensão de movimentos iliberais e da crescente polarização política que minou o ânimo e a auto-confiança dos países democráticos. Igualmente danosa é a visão comum de que defender a democracia deixou de ser necessário como fim da Guerra Fria. Seymour Martin Lipset argumentou contra esta complacência em 1995, muito antes da crise democrática actual. O “conflito global” entre a liberdade e os seus inimigos persistia, escreveu, mesmo que a sua dimensão militar se tivesse tornado menos pronunciada. Lipset afirmou que “em quase todo o lado fora das democracias mais antigas há um partido democrático e um anti-democrático,”, e afirmou que seria extremamente imprudente “abandonar o campo de batalha no contínua e muito menos dispendioso esforço de construção de sociedades livres no século XXI e depois.” 18

Desenvolvimentos recentes, incluindo o retrocesso global da democracia liberal e a emergência de uma nova internacional autoritária cujos líderes incluem a Rússia, a China e o Irão, tornam claro que a batalha das ideias não acabou e que continua a ser essencial ajudar as pessoas que lutam para construir sociedades livres.

Restabelecer o espírito do activismo democrático e da esperança no Ocidente é um desafio imenso. Crescente consciencialização da ameaça colocado pelo autoritarismo global ressurgente pode ter o efeito construtivo de contrariar a complacência e tornar claro às pessoas que vivem em democracias estabelecidas que já não podem tomar como garantida a sobrevivência da liberdade. Além disso, as manifestações que estão agora a acontecer nas ruas de Hong Kong e da Rússia, na Venezuela, no Sudão, e noutros locais podem despertar o compromisso para com a renovação democrática em pessoas por todo o mundo. A bravura e o empenho das gerações actuais de activistas são tão cativantes como a coragem dos dissidentes soviéticos, como a Solidariedade polaca, como o movimento “poder popular” nas Filipinas foram em décadas já passadas.

Como a ascensão do autoritarismo tem sido acompanhado por um recuo do poder e liderança dos EUA no palco mundial, é mais importante que nunca fortalecer a cooperação democrática entre as democracias europeias, bem como a Índia, Japão, Coreia do Sul, Canadá, Austrália e Taiwan. Mas seria uma ilusão pensar que tal cooperação pode compensar as consequências danosas da retirada e isolacionismo dos EUA. A democracia não existe num vácuo geopolítico. Tal como avisou Huntington há um quarto de século, quando a democracia parecia triunfante, um mundo sem a liderança americana “será um mundo com mais violência e desordem e menos democracia e crescimento económico que num mundo onde o Estados Unidos continuem a ter mais influência que qualquer outro país a moldar os acontecimentos internacionais.” 19

activistas por todo o mundo que estão a liderar na linha da frente da luta global pela democracia podem ajudar a reavivar a vontade política nos Estados Unidos e noutras democracias estabelecidas. Mas a sua coragem e determinação na defesa dos valores democráticos contra grandes adversidades sugerem que a democracia é inerentemente resiliente, e que a sua renovação é possível nos países relativamente abastados e estáveis que passam hoje por maior tensão e tumulto do que em qualquer outra ocasião desde a Segunda Guerra Mundial. No seu Westminster Address, o Presidente Reagan disse “a democracia está a provar ser uma flor nada frágil”. Que as suas palavras se provem verdadeiras por todo o mundo, e especialmente no problemático coração da democracia – o Ocidente e, acima de tudo, os Estados Unidos.


Referências

1 Amartya Sen, “Democracy as a Universal Value,” Journal of Democracy 10 (Julho 1999): 4.
2 See Marc F. Plattner, “Is Democracy in Decline?” Journal of Democracy 26 (Janeiro 2015): 5–10.
3 Roberto Stefan Foa and Yascha Mounk, “The Danger of Deconsolidation: The Democratic Disconnect,” Journal of Democracy 27 (Julho 2016): 5–17.
4 International Coalition for Democratic Renewal, “The Prague Appeal for Democratic Renewal,” 26 Maio 2017, www.forum2000.cz/en/coalition-for-democratic-renewal- 2017-event-coalition-for-democratic-renewal.
5 Anna Fifield, “China Is Threatening to Use Force in Hong Kong—and Hoping Threats Will Suffice,” Washington Post, 14 Agosto 2019.
6 Ben Aris, “Kremlin Ups Its Game with Police Violence at Moscow Protests,” bne IntelliNews, 29 Julho 2019, www.intellinews.com/moscow-blog-kremlin-ups-its-game- with-police-violence-at-moscow-pro-tests-165069/?source=russia.
7 Vladimir Kara-Murza, “Vladimir Putin’s Party Just Lost an Election—Even After Blocking Opponents from the Ballot,” Washington Post, 11 Setembro 2019.
8 Ilya Arkhipov and Anya Andrianova, “Most Russians Now Want ‘Decisive’ Change in Country, Study Shows,” Bloomberg, 6 Novembro 2019, https://news.yahoo.com/most- russians-now-want-decisive-101328470.html.
9 “Text of President Ronald Reagan’s Westminster Address,” www.ned.org/promot- ing-democracy-and-peace.
10 “Rises in the Price of Petrol Are Fuelling Unrest in Iran,” Economist, 21 Novembro 2019.
11 Tony Barber, “The Tides of Illiberalism Are Beginning to Ebb in Eastern Europe,” Financial Times, 13 Agosto 2019.
12 Anne Applebaum, “Hong Kong and Russia Protesters Fight for Democracy. The West Should Listen and Learn,” Washington Post, 16 Agosto 2019.
13 Christopher Walker, “What Is ‘Sharp Power’?” Journal of Democracy 29 (Julho 2018): 9–23; Shanthi Kalathil, “China in Xi’s ‘New Era’: Redefining Develop- ment,” Journal of Democracy 29 (April 2018): 52–58; Ilya Rozhdestvensky and Ro- man Badanin, “Master and Chef: How Evgeny Prigozhin Led the Russian Offensive in Africa,” Proekt, 14 Março 2019, www.proekt.media/investigation/evgeny-prigozhin- africa; Roman Badanin et al., “Coca & Co.: How Russia Secretly Helps Evo Morales to Win the Fourth Election,” Proekt, 23 Outubro 2019, www.proekt.media/investigation/morales-rosatom-eng.
14 Ralf Fücks, Defending Freedom: How We Can Win the Fight for an Open Society, trans. Nick Somers (Medford, Mass: Polity, 2019), 7–8.
15 John Dewey, “The Need of an Industrial Education in an Industrial Democracy,” in Dewey, The Middle Works: 1899–1924, Vol. 10, 1916–1917, ed. Jo Ann Boydston (Carbondale: Southern Illinois University Press, 2008), 139.
16 Dani Rodrik, “Why Nation-States Are Good,” Aeon, 2 Outubro 2017, https://aeon. co/essays/capitalists-need-the-nation-state-more-than-it-needs- -them.
17 William A. Galston, “The Populist Challenge to Liberal Democracy,” Journal of Democracy 29 (Abril 2018): 15.
18 Seymour Martin Lipset, “Democratic Linkage and American Aid,” Washington Times, 11 Junho 1995.
19 Samuel P. Huntington, “Why International Primacy Matters,” International Security 17 (Primavera 1993): 83. 


Vasco Rocha Vieira

General e último Governador de Macau

Sessão Cultural Comemorativa na Academia da Marinha, a 26 de Novembro de 2019.

A diferença de escalas torna natural que esta relação nunca se tenha colocado em termos de poder ou de disputa de áreas de influência, mas sim em termos de cooperação e de organização de vontades e de recursos para a concretização de finalidades comuns.

Quando Portugal chega à China, está num processo de expansão e procura relações comerciais depois de um longo percurso pelas rotas marítimas, que percorreu nas suas expedições dos descobrimentos.

Mas quando a China recebe Portugal, ficou confrontada com um desafio ao que era a sua concepção tradicional de afirmação e de exercício do poder baseada numa plataforma continental, que tem de gerir os equilíbrios de forças internas e de se proteger contra as invasões externas, mas não tem nem a necessidade, nem a ambição, da expansão.

É o encontro de um projecto de expansão marítima com uma concepção de poder continental terrestre.

Das circunstâncias deste desafio, deste confronto de orientações estratégicas, vão decorrer consequências relevantes que se manifestam durante o período longo que vem desde este primeiro encontro até ao presente.

A história mundial teria sido muito diferente se no século XV, quando se intensifica a expansão europeia, também a China tivesse prosseguido as suas primeiras viagens marítimas e tivesse iniciado o seu próprio processo de expansão.

Mas não foi isso o que aconteceu, a China não formulou um projecto de descobrimentos, optando por consolidar a sua base territorial continental e baseando as suas políticas de desenvolvimento na grande escala dos seus mercados internos.

Enquanto para os Estados europeus a sua pequena escala era um factor que estimulava a expansão, para a China era a sua grande escala que tornava mais atractivo o projecto de consolidação do poder continental.

A alternativa, que implicaria a aplicação de recursos na configuração de um império marítimo, onde os responsáveis chineses não encontravam vantagens potenciais que fossem superiores ao que obteriam com a consolidação da estabilidade interna, não foi considerada uma prioridade estratégica.

Em 1500, Portugal e a China tiveram de fazer a escolha entre os projectos dos que querem partir e os projectos dos que preferem ficar. O modo como cada um resolveu esta escolha definiu as circunstâncias que deram origem a dois percursos históricos muito diferentes, produzindo culturas políticas e dinâmicas estratégicas muito distintas.

Porém, o dilema entre os que querem partir e os que querem ficar, entre os sedentários que preferem a consolidação continental e os nómadas que assumem o risco das rotas da expansão, pode encontrar resoluções conjunturais que se revelam estáveis por períodos longos, mas a evolução das circunstâncias acabará por reabrir essa questão central, esse dilema estratégico entre ficar e partir.

Mais de cinco séculos depois, os impérios produzidos pela expansão europeia já não existem.

As condições de configuração de uma estrutura de ordem mundial efectiva, dotada de instituições de coordenação na escala mundial sob a orientação de um centro hegemónico responsável pela sua regulação, estão em crise.

É mais fraco o poder de dissuasão em que se baseia a estruturação de uma ordem mundial que assegure as condições de estabilidade que se mantenham por períodos longos, que são essenciais para que haja confiança nas relações de aliança e horizon- tes bem definidos para o desenvolvimento das relações económicas.

São estas circunstâncias do nosso tempo presente, quando se acumulam os sinais de desordem mundial nas relações económicas e nas relações de segurança, que reabrem para a China o dilema entre a terra e o mar, entre a óptica continental e a óptica marítima, entre a escala nacional e a escala global.

Mas são também estas circunstâncias do nosso tempo presente que abrem um dilema crítico para a estrutura de ordem mundial.

Esta fica confrontada com a necessidade urgente de saber como conciliar os equilíbrios de poderes do passado, com o seu centro hegemónico e as suas redes de instituições, quando se torna necessário responder ao desafio que é constituído pela entrada de um novo poder relevante, com a escala social, económica, cultural e militar que tem a China, depois desta ter feito a escolha de se afirmar na escala global.

Quando, em 1985, com o Presidente Ramalho Eanes, se iniciam conversações com a China sobre a Questão de Macau e, em 1987, com o Primeiro-Ministro Cavaco Silva, se assina a Declaração Conjunta sobre o processo de transferência de Macau para a China, que se concretizará em 20 de Dezembro de 1999, estas circunstâncias do nosso tempo presente ainda estão numa fase inicial de formação, mas já são elas que estabelecem o que é o potencial das relações futuras entre Portugal e a China.

Macau 20 anos da transferência da administração para a República Popular da China Tratava-se, afinal e só, de prosseguir a linha de coerência estabelecida desde que, em 1557, as autoridades chinesas permitem que os portugueses ocupem gradualmente Macau (e são estes os termos usados na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, documento promulgado para entrar em vigor no dia 20 de Dezembro de 1999) para que aí abrissem e administrassem uma porta comercial.

Esta linha de coerência evoluiu, ao longo de séculos, até à abertura das portas do entendimento que teria o seu momento simbólico na transferência da administração portuguesa de Macau para a República Popular da China.

Torna-se necessário responder ao desafio que é constituído pela entrada de um novo poder relevante, com a escala social, económica, cultural e militar que tem a China, depois desta ter feito a escolha de se afirmar na escala global

Portugal tinha concretizado o seu desígnio de administrar um território chinês em condições de fazer dele uma porta aberta ao Mundo, provando que era possível ter dois sistemas num só país, e contribuindo assim para que a China pudesse manter abertas as suas oportunidades de escolha, entre o sistema orientado para o interior e o sistema orientado para o exterior.

Quando a China escolhe a opção da globalização e abre as suas rotas da expansão, Macau já está dotado das suas condições próprias para poder participar nessa estratégia, depois de confirmar que as bases da cooperação entre Portugal e a China estão consolidadas, e que a linha de coerência que liga o passado com o futuro é uma base sólida de entendimento de cooperação estratégica.

Cada projecto é ele e as suas circunstâncias, mas para passar do projecto ao desígnio é preciso trabalhar as circunstâncias de modo a que o potencial se concretize.

Macau foi para Portugal um desígnio nacional e constitui hoje a exemplificação do que é possível continuar a realizar na cooperação e no entendimento entre Portugal e a China.

Mas foi a mudança das circunstâncias que veio criar valor adicional a este desígnio nacional português.

Quando hoje a China se desloca no Mundo e encontra os sinais do que foi a expansão portuguesa e do que foi a sua capacidade para estruturar nações e para criar condições de desenvolvimento em diversas regiões, encontra temas de reflexão sobre o que pode ser o papel modernizador dos interesses chineses nas regiões onde agora investem e passaram a operar.

O que, desde o primeiro encontro com portugueses, foi para os chineses um factor de curiosidade, é agora um factor de reflexão sobre o que serão os modos mais eficazes, seguros e duradouros, de estabelecer relações de cooperação que sejam favoráveis e justos para todas as partes.

Por isso mesmo, as portas do entendimento entre Portugal e a China continuarão abertas para benefício mútuo.

Esta relação singular seria vantajosa em todas as circunstâncias, mas assume um valor adicional nos tempos de crise da estruturação do sistema de ordem mundial que hoje vivemos.

Nestes tempos de incerteza e de instabilidade, todas as reflexões sobre o passado serão úteis, porque contribuem para evitar a repetição de erros e porque permitem reforçar o que teve sucesso.

O tempo longo de relação entre dois Estados que têm escalas e histórias muito diferentes, mas que sempre souberam resolver os diferendos preservando a dignidade de cada um e privilegiando o entendimento, criou um património comum que lhes permite estabelecer uma colaboração, activa e conjunta, na reconstrução de plataformas de entendimento entre os Estados e entre os povos que a actual crise da ordem mundial está a ameaçar.

No processo de transferência das responsabilidades administrativas de Macau de Portugal para a China, estes foram os vectores orientadores das decisões tomadas e das obras projectadas, mesmo quando eles eram apenas possibilidades que aguardavam a sua confirmação na evolução dos factos.

Agora que o potencial se concretizou, não é altura para se debater o circunstancial.

Conseguiu-se, é o principal.

A legitimidade e os direitos dos portugueses em Macau foram reconhecidos, a língua portuguesa, o direito, a administração da justiça e o quadro das instituições políticas ficaram estabelecidos no sistema próprio da Região Administrativa Especial de Macau por um período de 50 anos.

Nestes tempos de incerteza e de instabilidade, todas as reflexões sobre o passado serão úteis, porque contribuem para evitar a repetição de erros e porque permitem reforçar o que teve sucesso

Macau 20 anos da transferência da administração para a República Popular da China Foram construídas as infraestruturas e os equipamentos necessários para uma cidade moderna, mas preservou-se e valorizou-se o património histórico e arquitectónico que é parte integrante da identidade de Macau.

Foi atingido o objectivo principal que era adaptar a histórica vocação de Macau, como plataforma de cooperação que articula a China com o exterior, ao que é a realidade dos tempos modernos com as suas novas circunstâncias da globalização e, de um modo muito especial, com o que isso implica como oportunidades estratégicas para os países que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP.

Mais importante, porém, é que as Portas do Entendimento que se abriram há mais de cinco séculos continuarão abertas por um período muito mais longo do que o prazo de 50 anos que começou a contar em 20 de Dezembro de 1999.

Para a cultura chinesa, seguir a propensão das coisas também é saber aproveitar a complementaridade das diferenças até completar o círculo perfeito do yin e do yang.

Esta é base sólida em que se constrói o entendimento, que reconhece e respeita as diferenças, mas que tem como objectivo último estabelecer a complementaridade de interesses em que se fundamenta a convergência da cooperação.

Os tempos de incerteza, que caracterizam o nosso presente de instabilidade e de insegurança, anunciam a necessidade de uma nova ordem mundial, que responda ao desafio de encontrar na complementaridade das escalas e dos interesses a condição de convergência que promova e garanta a continuidade da cooperação estratégica.

Na resposta a esta necessidade, a China terá certamente uma função estruturante e uma posição de primeiro plano.

É para este futuro próximo que o exemplo histórico de Macau, com o seu contributo para a qualidade das relações entre Portugal e a China, mostra que é possível complementar escalas e interesses para construir plataformas de cooperação estratégica na base do respeito mútuo e no reconhecimento das diferenças.

Este será o círculo perfeito da cultura chinesa e a síntese dialéctica da cultura ocidental – e nenhum destes objectivos é atingível sem a cooperação do outro.


Manuel Braga da Cruz

Manuel Braga da Cruz

Professor Catedrático e antigo Reitor (2000-2012) da Universidade Católica Portuguesa. Membro do Conselho Editorial de Nova Cidadania

Lisboa, 24 de Outubro de 2019

Felicito, antes de mais, os organizadores deste debate por trazerem à reflexão pública o problema do multilateralismo, quando precisamente o multilateralismo está em crise a nível mundial.

E felicito ainda os promotores da iniciativa por terem escolhido para abordar este tema, um dos nossos melhores diplomatas contemporâneos que, para além de Secretário-Geral das Necessidades e, nessa qualidade, um privilegiado observador dos nossos problemas diplomáticos, é “sem sombra de dúvida um dos mais experientes e qualificados diplomatas portugueses no âmbito multilateral”, nas palavras insuspeitas do Embaixador Seixas da Costa.

O Embaixador Álvaro Mendonça e Moura começou precisamente a sua carreira diplomática em Genève, junto da EFTA e do GATT. Foi aí que começou a ocupar-se das relações multilaterais, domínio onde haveria de desenvolver a sua experiência, primeiro como representante português nas Nações Unidas, em Viena de Áustria, seu primeiro posto como Embaixador, depois de ter sido Chefe de Gabinete de Durão Barroso, como Ministro dos Negócios Estrangeiros, e depois, mais tarde, de novo em Genève, e sobretudo em Nova York, onde, na qualidade de Embaixador de Portugal, desempenhou um papel de primeira importância na eleição de António Guterres como Secretário Geral da ONU, numas eleições difíceis, de improvável sucesso, e onde, no dizer de um qualificado observador, “se excedeu”. Nas Nações Unidas, disse-o o Embaixador e Ministro Martins da Cunha, “era o único que tinha o termómetro na mão para saber qual a temperatura da eleição, qual a tendência e as dinâmicas”, para “as saber interpretar para passar a mensagem correta que Portugal tinha de dar”. Desempenhou aí funções de Vice-Presidente da Assembleia Geral da ONU.

Este percurso nas relações multilaterais, foi ainda enriquecido com a ocupação do lugar de Embaixador em Bruxelas junto da União Europeia, onde liderou a REPER, a partir de 2002, nos anos decisivos que antecederam e se seguiram à assinatura do Tratado de Lisboa, e onde jogou relevante papel, quer na eleição de Durão Barroso para a presidência da Comissão Europeia, quer na Presidência portuguesa da União Europeia em 2007.

Esta vasta experiência multilateral torná-lo-ia num dos mais notáveis diplomatas portugueses, que muito contribuiu para êxitos assinaláveis da nossa diplomacia na colocação destes dois portugueses em posições chave a nível europeu e mundial, sem esquecer a eleição de António Vitorino para a presidência da Organização Mundial para as Migrações da ONU, que muito lhe ficou igualmente a dever.

Álvaro Mendonça e Moura é hoje, reconhecidamente uma autoridade nas questões do multilateralismo, não apenas por esta vasta experiência profissional, recheada de resultados de grande sucesso, mas também pelo estudo que tem dedicado a estas questões, que o tem levado a pronunciar notáveis conferências em Universidades, onde gostaria de destacar as que proferiu na Universidade Católica, nos últimos anos, precisamente sobre a eleição de António Guterres e sobre as relações entre a EU e as Nações Unidas.

A sua experiência universitária, que começou, por certo, nos bancos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde se licenciou em 1974, foi ainda enriquecida pela passagem pela Universidade Lusíada, onde leccionou Relações Internacionais de África, a convite de Durão Barroso, nos anos em que, em Lisboa, dirigiu os Serviços de África do Ministério dos Negócios Estrangeiros e, nessa qualidade, participou, nas negociações que levariam à assinatura dos Acordos de Roma e de Bicesse, primeiras tentativas de pôr cobro à guerra civil em Moçambique e em Angola, que deflagraram após a proclamação das Independências.

Esta sua competência específica em questões africanas nascera, anos antes, quando esteve, ainda muito novo, como Encarregado de Negócios na África do Sul, em tempos de “apartheid”, na década de 80 do século passado.

Para além do seu vasto currículo e experiência multilateral, o Embaixador Mendonça e Moura desempenhou também importantes missões diplomáticas bilaterais. Para além de representante português em Viena de Áustria, a que já fizemos referência, que acumulou com a representação em Liubliana na Eslovénia, foi ainda Embaixador de Portugal em Madrid, onde sucedeu a Martins da Cruz, e onde assistiu aos últimos anos do reinado de D. Juan Carlos.

A vida diplomática do Embaixador Mendonça e Moura é pois multifacetada, e rica de experiências decisivas, onde teve oportunidade de por à prova e demonstrar as excelentes qualidades, que o Embaixador e Ministro António Monteiro lhe apontou recentemente, de “capacidade de mediação, poder negocial, e defesa hábil das posições portuguesas”.

É desta figura notável de diplomata português, que o Presidente da República quis condecorar, de surpresa, perante todo o corpo diplomático português, com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, na apresentação de cumprimentos de ano novo, em 2016, que eu tenho o privilégio de ser amigo, única razão pela qual fui convidado para fazer esta apresentação.

Conferências do Chiado IntroduçãoEsta vasta experiência multilateral torná-lo-ia num dos mais notáveis diplomatas portugueses, que muito contribuiu para êxitos assinaláveis da nossa diplomacia na colocação destes dois portugueses em posições chave a nível europeu e mundial

E como amigo, tenho obrigação de relevar uma faceta menos conhecida, mas da maior importância para a compreensão da sua personalidade e do seu percurso. Tal como os homens globais, que actuam a nível mundial, Álvaro Mendonça e Moura tem também o seu “local”, o seu centro do mundo, onde volta sempre que necessita de aurir forças telúricas e energias ancestrais. Embora nascido no Porto, onde estudou no Colégio Alemão, Álvaro Mendonça e Moura tem as suas raízes em Barcel, pequena aldeia dos arredores de Mirandela, em Trás-os-Montes. Esta matriz transmontana é imprescindível para perceber a constante e tenaz defesa e promoção dos interesses portugueses no mundo, e é da maior importância para entender, na sociedade global onde actua e intervém, o seu sucesso profissional, a sua reconhecida competência, o seu brilhante curriculum, e o prestígio de que goza junto dos seus pares, que o levaram, muito consensualmente, ao desempenho actual das funções de Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Minhas Senhoras e meus Senhores, vamos ouvir o Embaixador Álvaro Mendonça e Moura.


Álvaro Mendonça e Moura

Embaixador e Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros

A evolução da política internacional recente tem levado a generalidade dos observadores e muitos dos seus próprios atores a anunciarem ou a recearem o fim do multilateralismo, pelo menos tal como o conhecemos na segunda metade do séc. XX. Vários comentários focam-se no curto prazo e rapidamente atribuem ao atual Presidente dos EUA a responsabilidade central do distanciamento da prática diplomática multilateral. De acordo com esta visão, o principal país da cena internacional ter-se-ia desviado inopinadamente de um rumo multilateral e das regras, aliás por si largamente inspiradas quando não criadas, que governaram as relações internacionais desde os finais da 2a Guerra Mundial.

Problemas e oportunidades da Diplomacia Multilateral, face às experiências recentesNesta matéria múltiplas questões se podem colocar mas, se apenas dermos como empiricamente demonstrada a existência de uma turbulência nas relações internacionais sem precedente no corrente século, as questões mais óbvias serão certamente as de saber se estamos perante uma alteração pontual e portanto passageira da matriz principal das relações internacionais, se esta é uma alteração que afeta essencialmente a principal potência mundial e apenas por arrastamento os seus principais parceiros ou se, sendo uma alteração estrutural, ela envolve diretamente a generalidade dos atores internacionais. Depois importa compreender que fatores explicam estes desenvolvimentos e, sobretudo, que consequências se podem daqui prever e quais as medidas que podem ser tomadas para potenciar a procura de soluções globais para os problemas com que nos vemos confrontados.

A teoria predominante defende que desde os finais da 2a Guerra Mundial as relações internacionais se regeram essencialmente por um multilateralismo virtuoso que, com as Nações Unidas no seu centro, estabeleceu um conjunto de regras, organismos e mecanismos merecedor de um largo apoio de países e sociedades civis e por eles legitimado. Legitimação que advinha não só de ser pensada e depois construída pelos vencedores da Guerra, mas da sua aceitação quase universal. Embora isto seja largamente correto, uma visão muito focada no presente e no passado mais recente corre o risco de nos fazer perder a perspetiva histórica e atribuir a fatores conjunturais ou mesmo voluntaristas a responsabilidade principal, quando não exclusiva, de um desvio do multilateralismo anteriormente prevalecente, esquecendo três elementos essenciais: a) as pulsões desde sempre existentes no seio daquela que tem sido no último século a principal potência mundial; b) o final de um confronto global não apenas entre duas superpotências mas também entre duas formas opostas de organização das sociedades, com uma vitória de uma delas mas sobretudo e de forma radical do respetivo modelo organizativo; e, c) em terceiro lugar, o surgimento de novos problemas , que não são apenas novos por serem diferentes mas que são-no também por serem globais.

Com efeito, convirá antes de mais recordar que os EUA mesmo nos seus períodos de mais claro apego ao multilateralismo, e não podemos esquecer que sobretudo a eles devemos terem-no promovido eficazmente após a 2a Guerra Mundial, foram sempre ambíguos a seu respeito. Fruto aliás de um confronto de tensões internas que vêm da criação do país. Lembremo-nos da recomendação de George Washington no seu discurso de despedida em 1896 “devemos manter-nos afastados de alianças permanentes com qualquer parte do mundo” pois “a situação afastada convida e permite-nos seguir um curso diferente”. Mesmo o claramente internacionalista Presidente Wilson ao decidir entrar na 1a Grande Guerra fez questão de sublinhar que a Grã-Bretanha e a França não são aliados, mas apenas “poderes associados”. E todos sabemos que quando Wilson, depois de a idealizar e preparar, quis entrar para a Sociedade das Nações o Congresso não o autorizou e os EUA mantiveram-se afastados do centro da cena internacional até ao ataque a Pearl Harbour, iam decorridos mais de dois anos da 2a Guerra Mundial. É que ao internacionalismo wilsoniano sempre se opuseram quer a perspetiva jeffersoniana, receosa que um grande envolvimento dos EUA na politica internacional implicasse um reforço da autoridade presidencial e consequente diminuição do controle dos eleitos do povo, quer a visão patriótica de Andrew Jackson que se declina num nacionalismo forte que não pretende intervir mas que responde com ferocidade se provocado.

O período do pós-guerra é de facto o período áureo de multilateralismo, em que os EUA se envolvem na política mundial de forma global e os esforços de reconstrução da ordem internacional são conduzidos através e apoiados no multilateralismo, instrumento essencial sobretudo pela necessidade de conter a expansão da União Soviética. Este desenvolvimento do multilateralismo verifica-se tanto na área política (ONU, NATO) como económica, com a criação do sistema de Bretton Woods, o GATT, o FMI e o Banco Mundial. Os EUA empenham-se então na criação de instituições e mecanismos inter- nacionais, investem no desenvolvimento das respetivas regras e fornecem-lhes recursos tanto humanos como financeiros. Porém, mesmo neste período a visão multilateral dos EUA foi uma visão instrumental (e não se veja aqui qualquer crítica da minha parte), o seu multilateralismo era de facto tendencialmente global nas matérias económicas mas geograficamente limitado nas áreas politicas e manifestava-se sobretudo em relação aos europeus, mas já não assim em relação ao Médio Oriente ou à Ásia, por exemplo, onde poucas vezes os seus parceiros foram consultados. E mesmo esse multilateralismo não impediu o abandono unilateral do padrão-ouro em 1971 ou o envolvimento militar no Vietname apesar de múltiplos conselhos em sentido contrário de importantes aliados europeus.

Problemas e oportunidades da Diplomacia Multilateral, face às experiências recentesQuero com isto sublinhar que ao analisarmos a situação internacional atual nos devemos afastar de avaliações impressionistas ou bufónicas

Muito mais tarde, já com o Presidente Clinton, muito venerado por alguma “intelligentsia” europeia, os EUA envolvem-se de forma multilateral na Somália, mas retiram por via exclusivamente unilateral, recusam intervir no Ruanda em resposta ao genocídio apesar de fortíssimas pressões internacionais e mesmo na Bósnia só intervêm em apoio dos acordos de Dayton depois de apelos vários no sentido de uma intervenção multilateral. Pelo contrário, os EUA ignoraram o Conselho de Segurança quando este se recusou a autorizar uma intervenção no Kosovo e utilizaram a via da NATO. A doutrina clintoniana encontra-se lapidarmente definida pelo seu conselheiro de segurança nacional Anthony Lake, que vários anos mais tarde viria a ser diretor-executivo da Unicef, “ only one overriding factor can determine whether the US should act multilateraly or unilateraly, and that is America’s interests. We should act multilaterally where doing so advances our interests, and we should act unilaterally when that will serve our purpose. The simple question in each case is this: what works best?”

Quero com isto sublinhar que ao analisarmos a situação internacional atual nos devemos afastar de avaliações impressionistas ou bufónicas e procurar distinguir quais são e a que se devem padrões comportamentais regulares e de que maneira eles estão ou podem vir a estar a evoluir. O compromisso dos EUA com o multilateralismo não era no passado nem uma questão de princípio nem tão pouco horizontalmente consistente. Como potência largamente hegemónica, aliás, os EUA são no âmbito multilateral simultaneamente os criadores das regras, “rule maker”, mas também um país apenas de forma imperfeita ou parcialmente subor- dinado a essas mesmas regras, “rule taker”, e a violação de regras pela potência hegemónica era tolerada com maior ou menor boa-vontade. A lógica implícita é a de que por terem a responsabilidade primeira da manutenção do sistema e da sua estabilidade estão acima da aplicação estrita das regras que se aplicam aos outros. Veja-se , por exemplo, no domínio financeiro as vantagens de um sistema baseado ainda hoje no dólar, que permite aos EUA enormes défices porque sabem que os outros países continuarão a querer ter dólares nas reservas dos seus Bancos Centrais, ou as justificações avançadas sobre as suas particulares responsabilidades de segurança e consequente mobilização no exterior de militares norte-americanos para explicarem posições limitativas em relação ao Tratado sobre minas terrestres ou ao Tribunal Penal Internacional.

Problemas e oportunidades da Diplomacia Multilateral, face às experiências recentesO que temos vindo a assistir neste século, mais do que o abandono de uma convicção profunda, é à alteração de estilos e retórica acompanhada de mudanças no tipo de mul- tilateralismo, em prejuízo de organizações sedimentadas e em benefício de coligações ad hoc, acompanhada de uma ligação direta de comportamentos unilaterais à política interna dos EUA, em que o comportamento unilateral deixa de ser a resposta à pergunta acima referida “ what works best?” para passar a ser ele próprio uma estratégia de política interna. A meu ver, temos uma alteração de comportamento externo ditada largamente por duas razões: a avaliação dos seus efeitos em termos de política interna e o cansaço resultante do envolvimento prolongado em guerras longínquas, onde não estão hoje em causa interesses fundamentais e que Washington entende que a via multilateral não consegue resolver sem uma liderança claramente hegemónica ( Afeganistão, Iraque ), alteração esta possível pela conjugação da manutenção de uma enorme diferença de poder entre os EUA e os demais parceiros internacionais com o desaparecimento de uma ameaça expansionista credível e global.

Foi o desaparecimento desta ameaça - por isso sustento que as alterações que temos vindo a observar no comportamento externo norte-americano radicam no final da guerra-fria - que fez com que a análise custo/benefício em termos de política externa passasse a ser diferente. Desapareceu da coluna “benefícios” a contenção do expansionismo soviético e consequente manutenção da ordem estabelecida. Um bom exemplo desta mudança , de novo recorro ao exemplo clintoniano para intencionalmente me afastar de considerações que pudessem ser apresentadas como meras posições radicais de Presidentes como George W.Bush ou Donald Trump, foram as declarações da Representante Comercial Charlene Barshefsky que , em 1996, dizia “ with the cold war over, trade agreements must stand or fall on their merits. They no longer have a security component. If we do not get reciprocity, we will not get freer trade”.

Ao mesmo tempo, convém ter isto também presente, pela mesma razão do desaparecimento da ameaça soviética os aliados igualmente diminuíram a sua tolerância para com um menor cumprimento das regras por parte do poder hegemónico. Durante a guerra fria, para os aliados o ponto prioritário era garantir que não haveria abandono por parte do poder hegemónico, depois a importância do poder militar diminuiu e o receio de um excessiva predominância norte-americana tornou-se mais palpável, ou seja, a deterioração da relação resulta tanto de um unilateralismo norte-americano como de uma maior afirmação dos aliados. Alguns autores falavam já no início do século de um “novo multilateralismo”, para se referirem a um sistema em que haveria menor complacência para algum país se furtar à aplicação das regras.

Mas, chegados a este ponto, é vital não passarmos daqui para conclusões de ordem ética ou moral. Não há aqui bons e maus. Mesmo se para os EUA o multilateralismo foi sempre encarado sob o prisma da sua eficácia para resolver questões ( fossem elas a contenção do expansionismo soviético, da reconstrução da Europa, etc) e do prisma europeu houvesse a preocupação de garantir que todos tivessem direito à expressão da sua vontade ( multilateralismo como forma democrática entre estados), o unilateralismo dos EUA ou o multilateralismo europeu resultam antes de mais, não de considerações de “dever ser”, mas de “poder”. Por isso é que para os europeus as instituições e as regras são tão importantes, porque essa é também a forma de circunscrever o poder.

Desta noção de “poder”, como explicação para as posições de uns e outros resulta aconselhável abstermo-nos de considerações de superioridade moral nas relações com países terceiros, normalmente muito reticentes a aceitarem uma qualquer superioridade moral por parte dos europeus. Defendamos os nossos valores com convicção, mas não nos coloquemos numa posição de superioridade moral que poucos nos reconhecem.

No quadro que procurei traçar quis deixar clara a insuficiência de análises pontuais ou, pior, caricaturais para explicar algum afastamento entre aliados de décadas e salientar a previsibilidade de que esta menor cumplicidade se mantenha ou até se aprofunde , independentemente de quem sejam os principais atores, uma vez que ela resulta antes de mais de alterações estruturais. Com as consequências evidentes em termos de maiores dificuldades de funcionamento multilateral, pelo menos em áreas como a da manutenção da paz e da segurança (já não tanto em áreas como os direitos humanos, em que as alterações parecem ser bastante pontuais).

Mas antes de passar à abordagem dos elementos novos que antevi acima, permitam-me que procure eliminar qualquer saudosismo que possa existir em relação ao multilateralismo da 2a metade do sec. XX, que podemos hoje ter a tentação de idealizar “a posteriori”. Lamentar a falta de previsibilidade da política externa atual é compreensível, preocuparmo-nos com os múltiplos e intermináveis conflitos no Médio Oriente é natural, temermos a expansão do radicalismo islâmico no Sahel e mesmo até à Nigéria é prudente, desiludirmo-nos com o arrastar da situação na Venezuela é humano, mas recordar com saudade a ordem existente desde o final da 2a Grande Guerra é reduzir o mundo ao espaço do Atlântico Norte e da Europa Ocidental e esquecer os conflitos devastadores que assolaram a Península da Coreia, o Vietname, as guerras entre a Índia e o Paquistão, entre o Irão e o Iraque ou entre a Etiópia e a Somália, os confrontos repetidos entre Israel e os seu vizinhos, a guerra permanente no Afeganistão desde 1979, as lutas na América Latina, o Sudão, a Jugoslávia, os genocídios no Cambodja e no Ruanda, as invasões da Hungria e da Checoslováquia, os mortos em nome de “amanhãs que cantam”, tudo isto enquanto as organizações multilaterais funcionavam antes de mais ao serviço das potências hegemónicas, que na maior parte dos casos se neutralizavam mutuamente. Ou seja, quando recordamos com saudade esses tempos tenhamos consciência que o fazemos reduzindo o universo ao conforto da nossa área geográfica.

Problemas e oportunidades da Diplomacia Multilateral, face às experiências recentesFeita esta ressalva, passemos então à introdução de, pelos menos, três elementos estruturais novos, sem os quais não podere- mos procurar prever a evolução do sistema internacional. O primeiro, é o aparecimento fulgurante de uma nova superpotência, a China, com ambições em domínios sectorial e geograficamente globais, acompanhada pelo crescimento de países como a Rússia e a Índia que podem permitir-se contestar pontualmente a hegemonia norte-americana; o segundo, é a importância crescente de problemas capazes de afetar diretamente a segurança dos principais atores ( EUA, Europa, China, Rússia, etc.) e que não podem ser combatidos unilateralmente ou sequer bilateralmente, como as alterações climáticas, o terrorismo, a cibersegurança, algumas pandemias, etc. O terceiro, menos aceite ainda nos círculos diplomáticos e até no seio dos governos, é o aparecimento de atores não estatais que se tornaram incontornáveis, pelas capacidades técnicas e recursos económicos de que dispõem, e sem cuja colaboração alguns dos novos problemas não podem ser resolvidos.

Se estes são os elementos estruturais novos com que temos de lidar, haverá igualmente que ter em conta os fatores circunstanciais atuais e aqui é óbvio existir hoje por parte da administração norte-americana uma clara política de reduzir ou limitar o poder e a influência das organizações internacionais, na procura de ganhos imediatos e por vezes até mediáticos, que vai para além da resultante dos elementos estruturais que acima referi. A atual administração entende que o sistema atual já não serve os seus interesses e que se impõe reavaliar as relações bilaterais e maximizar as vantagens competitivas, aliás de uma forma muitas vezes exclusivamente virada para o comércio e até reduzida ao comércio de bens. Vejam-se desde logo os problemas na área do comércio e a marginalização da OMC. O risco, real, é o da desestabilização da ordem internacional por parte da potência que a criou.

Problemas e oportunidades da Diplomacia Multilateral, face às experiências recentesDe tudo isto me parece resultar que, perspetivando o futuro, temos de compreender que nem tudo se situa no mesmo plano e importa distinguir entre a resolução de crises agudas, sobretudo nos domínios da paz e segurança, onde o multilateralismo institucional previsto na Carta das Nações Unidas tem poucas possibilidades de ser eficaz e portanto tenderá a ser marginalizado, e outras áreas como a prevenção de crises, o desenvolvimento, o próprio comércio- pese embora a atitude da atual Administração-, etc., em que um multilateralismo institucional mas aberto a novos atores (ONGs, sector privado, fundações privadas, etc., etc.) continuará a desempenhar um papel fundamental, mesmo se por vezes longe dos holofotes.

Lamentar a falta de previsibilidade da política externa atual é compreensível, (...) mas recordar com saudade a ordem existente desde o final da 2a Grande Guerra é reduzir o mundo ao espaço do Atlântico Norte e da Europa Ocidental

Uma questão central será sempre a da legitimidade do sistema, porque da sua maior ou menor legitimidade, entendida como a aceitação por um muito largo número e desde logo pelos atores principais, dependerá a maior ou menor probabilidade de manutenção e de respeito pelas regras. Ora o mundo mudou radicalmente, mas não tão radicalmente que a base da legitimidade primeira possa deixar de ser a da soberania do Estado. Basta desde logo imaginar o que seria um regresso a uma situação pré-westfaliana. E, portanto, o pilar central de qualquer futura ordem internacional terá de continuar a ser a soberania dos estados. Só que, precisamente porque o mundo mudou, aquilo que se passa dentro das fronteiras dos estados deixou, não agora, mas felizmente desde há décadas, de ser automaticamente considerado “off-limits” para os outros estados (pense-se pelo menos na Convenção contra o genocídio ou na declaração Universal dos Direitos do homem). A noção de que a comunidade internacional tem um direito (aliás, uma obrigação) de intervir, embora em circunstâncias excecionais, em assuntos no interior de outros Estados ( assuntos a que não chamarei internos precisamente porque pela sua natureza eles deixam de se situar no domínio da competência exclusiva do Estado em cujo território ocorrem) levou à noção do R2P ou Direito a Proteger, de que tivemos o exemplo mais conhecido no caso da intervenção militar na Líbia em 2011. Apesar dos inúmeros problemas na aplicação concreta do conceito e das reações negativas que uma desafortunada tentativa de extravasar da proteção cirúrgica para uma intervenção alargada visando a alteração de regime provocou em potências ainda muito relutantes em relação ao próprio conceito, a verdade é que uma ordem internacional estável deixou de ser imaginável sem um elemento deste direito de proteger. A globalização da informação, a atenção geral para problemas humanitários de larga escala, a capacidade de mobilização da sociedade civil, nomeadamente das redes sociais, faz com que os Estados não se possam permitir ficar indiferentes perante situações limite passadas no interior de outros Estados. Só que mesmo esta entorse ao princípio do respeito da soberania dos estados não é hoje suficiente para responder aos desafios globais com que os estados se veem confrontados. Não se trata apenas de termos uma nova consciência dos problemas, no sentido de a informação globalizada nos dar acesso em tempo real ao que efetivamente se passa no terreno, não é só uma maior centralidade dos direitos humanos, é muito mais do que isso, trata-se efetivamente de problemas novos, problemas que não existiam anteriormente ou cuja dimensão os tornou incontornáveis. E muitos, talvez todos, estes novos problemas não são solucionáveis por uma visão soberanista do estado, o que implica que a soberania do estado terá de ser completada por alguma forma de colaboração obrigatória. Pense-se, por exemplo, no óbvio caso das pandemias. Pode esperar-se que um estado não intervenha em caso de grave risco de pandemia com origem num estado vizinho? Mas os exemplos são vários e menos óbvios, sendo que as alterações climáticas são porventura o mais conhecido. Neste caso não se trata de admitir uma qualquer intervenção de um estado, mas de reconhecer a existência de uma obrigação de colaborar. O que teremos aqui é a legitimidade que advém da aceitação de novos limites ao livre arbítrio dos estados, dentro do espaço da sua soberania tradicional, aceitação que não pode ser imediata e diretamente imposta mas que tem de ser paulatinamente construída, através de persuasão, de ajuda , de incentivos, de pressão de atores não estatais, mas que terá igualmente de envolver em casos mais difíceis alguma forma de coação. Esta legitimidade em construção implica desde logo que as grandes potências nela participem, que aceitem as suas regras e, portanto, as limitações que ela lhes impõe. Estas novas obrigações impostas aos estados dificilmente serão compagináveis com uma estrutura única e centralizada, do tipo onusiano, mas tal não terá que ser necessariamente negativo se for possível manter um mínimo de coordenação entre os vários processos em que as discussões se materializam (multilateralismo ad hoc ou regional).

Problemas e oportunidades da Diplomacia Multilateral, face às experiências recentesA legitimidade de um sistema reforça-se quando as regras se aplicam, mas pode ser afetada não apenas pela sua não aplicação como pela inadequação superveniente das mesmas.

A legitimidade de um sistema também se constrói evolutivamente, não procurando resolver hoje problemas que podem de momento não ter solução. Por isso é que processos como o da reforma do Conselho de Segurança, por muito justificada que indubitavelmente seja, não devem tomar um papel central pela impossibilidade prática de a concretizar num futuro próximo. O nosso é um mundo imperfeito e a melhor base para o reformar é aceitar que é imperfeito! E temos a grande vantagem de não estarmos hoje confrontados como nenhuma ameaça realmente séria de expansão ilimitada (o islamismo radical não tem dimensão para poder ser classificado nesta categoria).

Permitam-me agora ir um pouco mais longe, porventura num realismo que pode surpreender alguns. Se é certo que a legitimidade do sistema tem de ser um objetivo permanente e intervenções militares não autorizadas pelo CS criem sempre perturbação no sistema e maiores dificuldades na sua aceitação para-universal, não podemos pura e simplesmente afastar intervenções militares mesmo unilaterais. Porque tal não seria realista e porque, por muito que as mesmas sejam vocalmente criticadas, elas podem ser necessárias quiçá indispensáveis. Importante é que elas apresentem sempre uma clara e objetiva superioridade das vantagens sobre os inconvenientes e não sejam apenas determinadas por aquilo que nos parece idealmente desejável. Em política externa o ideal está muito longe daquilo que se pode ou deve fazer. E por isso poderemos ter de conviver com reali- dades de facto que não coincidem com as realidades de direito.

Estamos numa fase em que, nas questões centrais de paz e segurança, o sistema multilateral atual tem-se revelado impotente, de tal forma que Timor é talvez o único resultado positivo concreto que se pode apresentar a crédito. Mas também é certo que na sua grande maioria os problemas foram criados por atuações unilaterais e igualmente não puderam ser resolvidas por qualquer outra via. Conseguiram-se acalmias aqui ou acolá, fez-se uma contenção pontual de danos, quer por via multilateral sistémica quer por via multilateral ad hoc, mas as soluções unilaterais igualmente se revelaram incapazes mesmo quando à partida a desproporção de forças criou nos seus promotores a ilusão de uma solução rápida (vide caso do Iémen).

 Problemas e oportunidades da Diplomacia Multilateral, face às experiências recentes

Dito isto o multilateralismo como nós o conhecemos está de facto em crise, uma crise cuja extensão é difícil de prever e que sabemos não voltará ao modelo da segunda metade do séc. XX porque alguns dos fatores estruturais que o sustentavam se alteraram, mas simultaneamente não temos precedentes de tanta e tão profunda cooperação internacional. E é este multilateralismo pervasivo, com as NU e as respetivas agências no seu centro, mas sem exclusividade e adaptado a um novo multipolarismo, que tem de ser defendido. Procurando, nomeadamente através de mecanismos multilaterais regionais, uma alternativa ao multilateralismo centralizado nas NU e no Conselho de Segurança sempre que este, dominado pelos P5, se encontre bloqueado, e procurando desenvolver redes multilaterais com alguma ligação ao centro e mesmo entre elas.

Questão central é a de saber a quem aproveita hoje uma defesa do multilateralismo e, no que nos diz respeito, se interessa e em que medida a Portugal e à UE. Por uma vez temos aqui uma resposta simples. O multilateralismo é de longe o melhor sistema internacional para Portugal ou para a UE, a ponto de se poder sustentar que nem um nem outra têm alternativa razoável à defesa do multilateralismo nas relações internacionais. Mas não podemos ficar agarrados a esquemas conceptuais do século passado e portanto importa que a defesa e prática do multilateralismo não se resuma nem a profissões de fé nem sequer ao necessário apoio às Nações Unidas e suas agências, cuja centralidade importa na medida do possível preservar, mas antes inclua sem pruridos nem reticências a adesão e apoio a fórmulas regionais multilaterais ou a inovadoras soluções pragmáticas de patamares diferenciados onde atores estatais e não-estatais possam trazer valor acrescentado às discussões. Com flexibilidade para coligações ad hoc quando úteis ou necessárias. No fundo trata-se de complementar o sistema existente através de novas ramificações de base multilateral. Tudo isto tendo como pano de fundo a noção exata de que mesmo este multilateralismo pluricêntrico será necessariamente completado com intenso relacionamento bilateral com atores específicos e nomeadamente com os vizinhos. Seja no caso dos EUA o relacionamento com Canadá e México, seja no caso Europeu o relacionamento com a Rússia ou a vizinhança tanto a Sul como a Leste. Em suma e ironicamente, a preferência pelo multilateralismo resulta da resposta à pergunta acima formulada por Anthony Lake, “what works best (para nós,claro)?

O multilateralismo é de longe o melhor sistema internacional para Portugal ou para a UE

Problemas e oportunidades da Diplomacia Multilateral, face às experiências recentesExiste uma notória falta de confiança entre os diversos líderes mundiais e entre eles e as organizações internacionais, por vezes não diretamente em relação aos respetivos dirigentes, mas à capacidade das mesmas para apresentarem soluções ou contribuírem para a resolução dos problemas atuais. A recuperação da confiança tem assim de ser um objetivo central da política externa. Este é um ponto, porém, que pode depender largamente das personalidades em causa, mas é importante que quando não existam condições para uma recuperação da confiança não se quebrem pontes que dificultem no futuro, com outros personagens, a procura dessa mesma confiança.

Na posição de defesa ativa do multilateralismo a UE terá certamente de assumir que nem sempre contará com o apoio ou sequer a indulgência dos EUA, da China ou de outras potências importantes, mas tem de estar preparada para interiorizar não só que no futuro previsível os EUA estarão menos disponíveis para assumir um papel internacional ativo em zonas onde os seus interesses essenciais não estejam em causa, mesmo se essa zonas forem áreas de interesse primeiro para a Europa, como que a sua aliança com os EUA, cujo importância real não pode ser desvalorizada, não foi apenas o resultado do poder real norte-americano antes se justificou também por uma comunhão de valores. Ora, as alianças em política internacional, mais ainda do que os casamentos, têm de ser constantemente alimentados nessa comunhão de valores. Donde decorre que nas atuais circunstâncias de turbulência e de debate no seio da sociedade norte-americana a UE tem de multiplicar os canais de comunicação muito para além da Administração (com o Congresso, com os governos estaduais, com as universidades ou as grandes empresas, com o mundo da cultura, etc.). mas também tem de estar preparada para aceitar em nome dos seus valores que as alianças com os EUA dependem precisamente do respeito pelos mesmos e tirar daí todas as consequências. Estaremos indiscutivelmente ao lado dos EUA enquanto defendermos os mesmos valores e trabalharemos para que essa comunhão se mantenha!

Para a UE continuar a ser, porém, um parceiro relevante em matérias globais tem de preencher duas condições sine qua non: a primeira é que os europeus, em geral e incluindo futuramente também o Reino Unido, assumam muito maiores responsabilidades, nomeadamente em matéria de despesas, desde logo na área da defesa, e consigam evitar que esses seus maiores gastos sejam duplicações. Mas também têm de lutar para que a NATO não se preocupe apenas com problemas de defesa da área, antes inclua igualmente os riscos fora da área, nomeadamente do Sul, e as ameaças híbridas. Em segundo lugar, os europeus têm de manter e aprofundar a sua unidade, quiçá por vezes perante esforços de amigos e adversários para nos dividirem. Só seremos relevantes unidos e isso também implica uma muito maior exigência na aceitação de novos sócios no clube e a clarificação definitiva de relações de namoro antigo que, manifestamente, dificilmente terminarão em casamento. Não temos margem para divisões, mas igualmente não nos podemos permitir nem a paralisia nem o abandono de valores fundamentais, pelo que pode vir a ser necessário, embora nada desejável, operar através de grupos limitados de europeus.

Problemas e oportunidades da Diplomacia Multilateral, face às experiências recentesE terminaria com uma palavra específica sobre o nosso país. Vivemos todo o período de democracia no conforto de uma aliança militar, para a qual durante muito tempo uma parte do nosso território constituiu uma peça de primeira importância, completada pela opção estratégica de partilharmos soberania na construção de um modelo novo de cooperação entre Estados, que assumiam em comum o seu património cultural, religioso e humanista e davam primazia à pessoa humana, à liberdade, à democracia ,à igualdade e ao estado de direito. Com a vantagem acrescida, de que largamente beneficiámos, de este conjunto de Estados estar disponível para investir no desenvolvimento harmónico do conjunto, no entendimento de que tal resultaria numa vantagem para todos. Este ambiente internacional era sustentado, e é um muito importante terceiro elemento, pelo largo apoio popular que quer aquela aliança militar quer as comunidades europeias, primeiro, e a União Europeia, depois, conseguiam a nível interno tanto no nosso país como na generalidade dos estados-membros. Como vimos acima, a conjugação virtuosa destes três elementos alterou-se substancialmente, não só com as interrogações que os nossos amigos norte-americanos hoje se colocam em relação ao multilateralismo em geral, mas também por via de forças centrípetas dentro da própria União Europeia que nalguns casos abertamente defendem o regresso ao âmbito nacional, ironicamente preocupadas em encontrar soluções nacionais a problemas resultantes antes de mais da própria globalização.

Teremos que saber navegar nestes mares agitados, na certeza, porém de que “não há nunca bom vento para quem não conhece o rumo”. E o nosso terá de ser, sem hesitações, em primeiro lugar, o do reforço do quadro europeu e dos seus valores, o da defesa do que nos pode unir, deixando de lado tudo o que não sendo essencial arrisque a criar divisões, sejam elas políticas, económicas ou sobretudo culturais, e portanto o de ter a habilidade para aceitar para cada um áreas de autonomia que o conjunto deve respeitar, sem obsessões centralistas ou dirigistas que só podem ser contraproducentes. Como qualquer organização, a União Europeia tem inevitavelmente uma tendência de crescimento e multiplicação, mas a sua melhor defesa não consiste no apoio automático a qualquer nova competência, a qualquer nova extensão, antes consiste em obrigá-la a concentrar-se no essencial, a aprofundar os vetores de solidariedade e a abdicar de incursões evitáveis em áreas tradicionalmente reservadas aos estados, sobretudo quando ligadas às suas tradições histórico-culturais.

Esta nova atmosfera internacional impõe da nossa parte um esforço adicional, uma atenção acrescida, antes de mais e obviamente junto dos nossos parceiros europeus, mas também de forma muito marcada nos EUA, procurando manter e desenvolver laços de proximidade que a política não sustenta mas que a economia e a cultura podem justificar e que a existência de largas comunidades portuguesas pode potenciar. Portugal tem, diferentemente da maioria dos nossos parceiros europeus, interesses, cidadãos e história espalhados um pouco por todo o mundo, conseguimos criar uma Comunidade de países de língua portuguesa, temos, agora mais do que antes, de a solidificar e desenvolver, mas temos de ir muito mais além e traduzir em relações concretas os laços históricos e culturais que nos ligam não apenas a tantos países africanos mas a múltiplos países na América Latina e na Ásia.

Não temos em Portugal objeções popu- listas significativas a uma nossa acrescida presença internacional, quero acreditar que teremos políticos com a visão necessária para encontrar os recursos necessários a essa nossa presença. O conforto acabou, mas

Change is the law of life. ... those who look only to the past or present are certain to miss the future. John F. Kennedy

(Tomorrow) the future will be better. Dan Quayle

Muito obrigado pela vossa atenção.


Pedro Sanchez da Costa Pereira

Embaixador, Diretor-Geral de Política Externa do Ministério dos Negócios Estrangeiros

SESSÃO NO INSTITUTO DE ESTUDOS POLÍTICOS, a convite de José Manuel Durão Barroso

O propósito deste nosso encontro é falarmos sobre a política externa de Portugal. Quais são as suas principais linhas de força? Quais são as suas prioridades? Procurarei responder a estas questões, e em primeiro lugar à questão de saber porquê esta e não outra política externa para Portugal.

É este um ponto de esclarecimento prévio útil já que as prioridades assumidas na nossa política externa não são o fruto do acaso ou apenas de opções pontualmente tomadas, mas decorrem sobretudo de imperativos da nossa geografia e da nossa história, e isto é ainda mais evidente porque somos um país com uma já longa existência.

Centro de Estudos Europeus - As Principais Linhas de Força da Política Externa Portuguesa Uma análise geopolítica mostra que as condicionantes geográficas foram e são de facto realmente muito importantes. Portugal é um país europeu, mas não continental. É sobretudo um país atlântico. Mas mais do que apenas atlântico, Portugal – embora periférico na Europa – é um país com centralidade atlântica (Fernando Pessoa dizia-nos ser Portugal o rosto com que a Europa fita o ocidente, e o ocidente imediato para Portugal é o Atlântico). Mas apesar de Atlântico, Portugal é culturalmente inscrito no mundo latino e mediterrânico, e não no anglo-saxão. Tem apenas uma fronteira terrestre, com Espanha, estável há muitos séculos.

Para além destes imperativos geográficos, que são fundamentais para compreender a forma em como se desenvolveu e consolidou a política externa de Portugal, temos que tomar igualmente em conta a forma em como a história do nosso país se desenvolveu nessa mesma geografia.

E, olhando para essa história, temos que desde antes do século XV que a política externa portuguesa se construiu no equilíbrio possível a cada momento, entre a pressão continental e as possibilidades que o oceano oferecia. Daí resultaram ciclos de aproximação ou afastamento ao continente europeu, a criação de alianças que obstassem ao peso de Espanha, a procura de um espaço próprio fora do continente europeu que viabilizasse a existência de Portugal enquanto nação soberana, no Atlântico e bem para além do Atlântico.

Assim nasceu e se consolidou o mundo de expressão portuguesa, eixo sobretudo materializado na relação especial com os países africanos de língua oficial portuguesa e com o Brasil e Timor-Leste, congregados hoje na CPLP.

Após 1974, com o fim do Estado Novo e a estabilização do Portugal democrático, a prossecução destes três eixos – o europeu, o Atlântico e o mundo de expressão portuguesa - tornou-se assumida e consensual, e desde 1976 que todos os governos os têm enunciado nos seus programas.

Portugal envolveu-se empenhadamente na Europa, onde naturalmente se inscreve, e no projeto europeu, que trouxe também uma profunda mudança de paradigma das relações luso-espanholas e densificou a sua presença – fundadora – na NATO; e, na linha do que já existia com o Brasil, e ao mesmo tempo que integrava ativamente o espaço da ibero-america, desenvolveu relações profundas com os novos Estados de língua portuguesa.

A estas três prioridades, o Governo confirmou programaticamente na legislatura cessante três outras para a sua ação externa. Em primeiro lugar, assumiu a tarefa prioritária de responder às necessidades das várias comunidades de origem portuguesa geradas pelas sucessivas vagas migratórias que ocorreram a partir do final do século XIX. É que cerca de um terço da população com nacionalidade portuguesa, ou que a ela tem direito pelo nascimento, vive hoje fora de Portugal, em comunidades muito diversas, em geral bem-vindas, bem integradas e economicamente estáveis. A relevância destas comunidades para a ação externa do país tem-se aprofundado a tal ponto que passou a constituir de per se um quarto eixo orientador da ação externa.

Para além desta quarta dimensão, uma análise rigorosa da política externa portuguesa não pode ignorar que, nas últimas décadas, o país tem experimentado um forte movimento de internacionalização da sua economia. Este desenvolvimento tem merecido uma atenção crescente e justifica plenamente a criação da nova Secretaria de Estado da Internacionalização no Ministério dos Negócios Estrangeiros. A internacionalização da economia portuguesa constitui-se hoje como uma verdadeira linha de ação autónoma de política externa e um eixo essencial para a compreensão e o sucesso global desta última.

Simultaneamente, assistimos também a uma presença crescente de Portugal no plano multilateral, em variadas organizações, mas sobretudo no quadro das Nações Unidas. Esta presença é a face visível de uma opção consciente e valorativa em defesa do multilateralismo enquanto princípio, objetivo e prática no exercício de uma política externa à escala global. O reforço do multilateralismo constitui-se como o sexto principal eixo orientador da política externa portuguesa.

Conceptualmente, são estas as seis dimensões que ilustram a ação exterior de Portugal tal como é hoje prosseguida. Vejamos cada uma delas com maior detalhe.

A. O ESPAÇO EUROPEU

Centro de Estudos Europeus - As Principais Linhas de Força da Política Externa PortuguesaQuando falamos sobre prioridades da nossa política externa a Europa surge em primeiro lugar. Contudo, como referiu em 2016 o Ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva, “a Europa é e não é um tema de política externa”. É na medida em que constitui uma das questões capitais em que se define o posicionamento internacional do Estado português; mas a Europa é também uma realidade supranacional sui generis, que tem e formula a sua própria política externa, e muitas das questões são comuns aos seus Estados-membros e são portanto internas ao espaço da União.

Após 1974, com o fim do Estado Novo e a estabilização do Portugal democrático, a prossecuçao destes três eixos — o europeu, o Atlântico e o mundo de expressão portuguesa — tornou-se assumida e consensual

Seja como for, definitivamente terminado o ciclo imperial, a Europa voltou a ser o espaço natural onde Portugal se insere. Desde a sua adesão às então Comunidades Europeias, em 1986, Portugal tem consistentemente sido um país muito empenhado na construção e no aprofundamento do projeto europeu. A União Europeia constitui hoje, aos nossos olhos, o mais eficaz instrumento para garantir a paz e a prosperidade na Europa e para preservar e promover os valores fundamentais em que acreditamos, para além de ser o meio de resposta mais adequado para fazer face aos complexos desafios cuja natureza cada vez mais transnacional crescentemente obriga à procura de soluções conjuntas.

Portugal beneficiou extraordinariamente com a sua participação no projeto europeu. Consolidou a sua democracia, sendo esta, aliás, a principal razão que motivou a sua decisão de aderir às então Comunidades Europeias, e não tanto, como muitas vezes se julga, as vantagens económicas e financeiras – embora muito reais – proporcionadas pelos fundos europeus estruturais e de coesão.

Portugal modernizou-se, desenvolveu-se, e sobretudo reinventou-se em torno de um projeto consensual para a generalidade da sociedade portuguesa.

Neste nosso percurso europeu passámos por tempos de euro-entusiasmo e ultrapassámos momentos difíceis, a exemplo da recente crise económica e financeira que grassou a partir de 2008, uma das mais complexas jamais atravessadas, cujos efeitos coincidiram com a fase mais aguda da crise migratória e a intensificação do terrorismo internacional.

A União Europeia está hoje ao mesmo tempo mais forte e mais frágil. Mais forte, porque foi capaz de construir novos instrumentos, alguns deles absolutamente notáveis de pragmatismo e eficácia; mas está ao mesmo tempo mais frágil, porque os novos e sucessivos desafios que entretanto surgiram ultrapassam muito, em escala e dimensão, todos aqueles com que até agora teve de se confrontar. São disso exemplos as crescentes dificuldades no processo de tomada de decisão numa União que, partindo de 6 chegou a 28 Membros, e que enfrenta hoje o seu primeiro movimento verdadeiramente desagregador com a saída do Reino Unido; mas que faz face também ao surgimento de tendências populistas e antieuropeias e de blocos criados em função de alinhamentos geográficos, interesses político-económicos ou afinidades históricas, ideológicas ou linguísticas, que têm um impacto negativo na capacidade de construção de consensos no contexto europeu.

Não se pretende aqui negar o direito aos Estados Membros de se associarem em função de preocupações partilhadas. Mas a cristalização de posicionamentos deste tipo cria frequentemente a ideia da existência de “várias Europas”, por vezes dificilmente conciliáveis ou mesmo incompatíveis com a construção do projeto europeu.

Centro de Estudos Europeus - As Principais Linhas de Força da Política Externa PortuguesaA estes acrescem outros desafios importantes, e todos eles objeto de atenção e ação na nossa política externa, como a resolução eficaz da crise migratória, longe de solucionada, neste momento apenas em estado latente; a dificuldade de criar um entendimento comum sobre as modalidades de uma verdadeira e absolutamente necessária União Económica e Monetária, que consiga fazer face eficazmente a novas crises económicas e financeiras que forçosamente voltarão a aparecer, e que, para além da vertente estritamente monetária, dê uma resposta substantiva ao desafio da convergência económica e social; a construção de um pilar europeu de segurança e defesa, em articulação com a NATO, que seja verdadeiramente capaz de projetar segurança; o combate contra o terrorismo, que assume hoje uma proporção nunca antes vista; e, sem ser exaustivo, mas como pano de fundo para tudo isto, o desafio de nos darmos os meios de ação necessários para assegurarmos o financiamento da União Europeia num quadro marcado pela saída de um importante contribuinte líquido, o Reino Unido, e pelo constante surgimento de múltiplos desafios que obrigam a novos meios para que se lhes possa eficazmente fazer face. E os meios são de facto muito necessários, porque não responder aos desafios tem um custo elevado. Há um custo real para a “não Europa”, e talvez fosse agora a altura de voltar a fazer as contas sobre os custos da “não Europa”, como sucedeu no final da década de 80 quando se quis, e se conseguiu, mostrar a importância de realizar o mercado interno.

Portugal, como muitos outros países europeus, é vulnerável aos efeitos negativos destes e dos muitos outros desafios que compõem a agenda interna e externa da União Europeia. A nossa postura é, contudo, impecavelmente positiva e construtiva no que se refere à procura de soluções europeias que favoreçam a prossecução do projeto europeu, cujo sucesso no quadro da política externa portuguesa é assumido como um interesse vital por si próprio. Sabemos que queremos estar sempre no centro do projeto europeu; sabemos que não queremos a secundarização do método comunitário pelo método intergovernamental, a substituição da lógica comunitária pela do diretório, a acentuação do fosso entre as instituições e as cidadanias ou mais desigualdades entre os Estados-membros. Não queremos menos democracia no espaço europeu. Fugimos de modelos pré-concebidos e, como comentou o atual Ministro dos Negócios Estrangeiros, apostamos na nossa capacidade de ajustamento e de “plasticidade” para prosseguir os nossos objetivos”. Sempre nas palavras de Augusto Santos Silva, ”temos um modo plurifacetado de inserção na Europa: são facetas que se completam, não alternativas que se excluem. A nossa base é a Europa. Sem nenhum equívoco. A nossa base, o nosso horizonte, o nosso compromisso.”

B. NO EIXO ATLÂNTICO

O eixo atlântico é a segunda prioridade da política externa de Portugal. Contrariamente ao que muitos possam pensar, o chamado “eixo atlântico” não se refere em primeira mão ao oceano atlântico propriamente dito, já que para a política externa portuguesa os oceanos em geral, e não apenas o Atlântico, são globalmente prioritários. Na verdade, o que está aqui em causa é a dimensão de segurança que o espaço atlântico encerra, que se traduz sobretudo na pertença de Portugal à Aliança Atlântica e no seu relacionamento com os parceiros para nós mais importantes neste contexto, o Reino Unido desde há quase sete séculos e, desde meados do século passado, sobretudo os EUA.

Esta situação requer hoje ajustamentos na nossa política externa. O Reino Unido tem sempre sido com Portugal um parceiro particularmente ativo na União Europeia a favor do reforço do pilar europeu de defesa numa lógica de complementaridade e de não duplicação com a NATO, que entendemos dever manter-se como a principal organização de defesa coletiva. Ora, o Reino Unido deverá em breve abandonar o projeto europeu e enfraquecer assim a sensibilidade mais atlantista na UE. Para Portugal isso constitui um problema.

Por outro lado, a mudança de Administração nos Estados Unidos trouxe uma alteração no seu relacionamento com a Europa, visível nomeadamente no quadro da NATO e em matéria de comércio externo. A nossa relação com os Estados Unidos permanece, contudo, estruturalmente muito importante e deveremos ter isso sempre presente quando nos confrontamos com ajustamentos necessários que esperamos sejam de conjuntura.

A própria conjuntura internacional está em rápida transformação num contexto marcado por crescentes incertezas e maior insegurança. A NATO, na prática, não obstante querer projetar segurança em todos os azimutes, concentra-se mais nas ameaças a leste e sudeste. Mesmo quando age noutras áreas, como no espaço atlântico, é muito frequentemente com a preocupação principal, quando não exclusiva, de contrariar e fazer face às ameaças a leste. A sua vocação para agir no espaço magrebino e saeliano, de onde poderiam surgir as maiores ameaças para o flanco sul da União Europeia, onde se encontra Portugal, é menor.

Por estas razões, é prioritário para a política externa de Portugal promover a articulação dos vários instrumentos existentes de segurança e defesa, num espírito de complementaridade e não duplicação, no respeito das especificidades de cada um, e, se necessário, promover a criação de novos meios que permitam a projeção de uma verdadeira estabilidade e a garantia de defesa num círculo que abarque verdadeiramente 360o, portanto também a sul do mediterrâneo.

Em qualquer circunstância, Portugal é um aliado leal no quadro da NATO e empenhado no aprofundamento do projeto europeu nos domínios da segurança europeia, como também o será em quaisquer outros alinhamentos que venham a ser decididos no quadro da nossa política externa.

Centro de Estudos Europeus - As Principais Linhas de Força da Política Externa PortuguesaAo nível nacional, e sempre olhando para o Atlântico, a nossa política externa fez face ao desafio colocado pela diminuição da presença norte-americana nos Açores. Foram estruturadas e apresentadas várias iniciativas. O lançamento do “Atlantic Internacional Research Center – AIR Center”, projeto que visa promover a cooperação e a investigação científica internacional nas áreas dos oceanos, clima e espaço, e a criação de um Centro de Defesa no Atlântico, reforçando a capacitação de parceiros atlânticos para fazer face a ameaças nesse mesmo Atlântico, ambos tirando partido da localização estratégica dos Açores, são exemplos do interesse de Portugal por iniciativas que contribuem para valorizar a posição estratégica de Portugal no Atlântico.

Já o referi, mas é um ponto importante quando falamos do Atlântico: se Portugal é um país periférico no quadro europeu, já no contexto atlântico a sua centralidade é mais do que evidente. A nossa ação externa age tomando isso sempre em consideração. Posicionado entre o Atlântico norte e o Atlântico sul, entre o Mediterrâneo e o Atlântico, entre o resto da Europa e as Américas e África, basta olhar para um mapa para ver que Portugal tem aqui a sua verdadeira e principal centralidade geopolítica, que justifica a prossecução de um verdadeiro eixo estratégico de atuação.

C. NO ESPAÇO DE LÍNGUA PORTUGUESA

A terceira linha de ação prioritária em política externa é o espaço de língua portuguesa. Este encontra a sua melhor expressão, mas não se esgota, na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP.

A CPLP enfrenta desafios assinaláveis. Integrada por países que se inserem em dinâmicas regionais próprias, cada um perspetiva a sua participação na CPLP de forma diversa, quer quanto aos objetivos nacionais que prossegue, quer quanto à forma em como vê os interesses comuns da organização como um todo.

Um país com muita facilidade em dialogar com todos, que não pretende impor a sua visão das coisas, que acredita num mundo governado por regras claras e internacionalmente aceites

O potencial deste espaço é, contudo, imenso. A CPLP e o mundo de língua portuguesa assentam numa matriz identitária comum de raiz histórica e linguística com um potencial muito significativo, coincidindo com um imenso espaço populacional e comercial, e dotado de importantes afinidades culturais, que se espraia por nove países na América, África, Ásia e Europa.

Mais: a língua portuguesa, quarta ou quinta língua mais usada no mundo (dependendo da contabilidade usada), é hoje uma das línguas europeias que mais cresce no mundo e é o idioma mais falado no hemisfério sul. Perspetiva-se um total de 400 milhões de falantes em 2050 e de 500 milhões até 2100, a maioria dos quais em África.

A CPLP é portadora de muitos projetos e proporciona relações de colaboração não apenas entre Estados, mas também entre uma enorme diversidade de organizações da sociedade civil, tendo um dinamismo muito superior ao que é habitualmente percecionado pela opinião pública. Um sinal da sua vitalidade é o interesse que a CPLP tem despertado junto de Estados terceiros, havendo hoje um número muito considerável de parceiros internacionais, mais do que o próprio número dos seus Estados-membros, que adquiriram ou que estão em vias de adquirir o estatuto de Observadores na CPLP.

Portugal contribui com um Secretário-Executivo desde janeiro de 2019 e olha para a CPLP com uma atenção muito particular. Considera-a como a melhor forma de viabilizar a cooperação entre países que muito se estimam e que têm muita da sua história e da sua cultura em comum.

Jovem organização, a CPLP precisa de ser sentida pelo cidadão comum como uma entidade que lhe proporciona vantagens concretas. Fazer com que a CPLP seja mais útil para as pessoas é pois um verdadeiro objetivo para a nossa ação externa. É com este espírito que Portugal acredita fortemente na importância de facilitar a mobilidade na CPLP através do direito de residência, do reconhecimento de títulos e qualificações académicas e da portabilidade de direitos sociais dentro do espaço da CPLP.

D. O ACOMPANHAMENTO E A VALORIZAÇÃO DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS

O acompanhamento e a valorização das Comunidades Portuguesas constitui o quarto eixo de ação da política externa portuguesa.

As comunidades portuguesas continuam a crescer e a diversificar-se. Para termos uma noção da dimensão deste fenómeno e, portanto, da sua importância para a nossa política externa, devemos ter presente que Portugal tem dez comunidades com mais de 120.000 pessoas, espalhadas por três continentes (Europa, África e América), para além de núcleos populacionais relevantes na Ásia e na Oceânia.

O principal objetivo da nossa política externa é aqui, naturalmente, o de procurar contribuir para o bem-estar e segurança das nossas comunidades e promover a sua integração tão qualitativa quanto possível no espaço em que se encontram, preservando as suas raízes e memória portuguesas.

Estas comunidades são cada vez mais variadas e heterogéneas e colocam-nos desafios adicionais com a sua mudança de perfil e consequente alteração das expectativas que têm relativamente ao papel do Estado. Obrigam a um esforço de acompanhamento permanente da nossa ação externa, político, social e económico.

Portugal presta hoje serviços consulares em 148 países. A gestão destes serviços tornou-se muito mais exigente e complexa e visa corresponder pelos mais variados meios, e agora também por via tecnológica, às necessidades quotidianas dos portugueses que vivem no estrangeiro.

O interesse para a política externa portuguesa desta proximidade com as nossas comunidades é óbvio. As nossas comunidades estão geralmente bem integradas nas sociedades onde vivem, em muitos casos já nas segundas e terceiras gerações e constituem uma rede privilegiada para a promoção de investimentos e de trocas comerciais, para a divulgação da língua e da cultura, bem como para a aproximação política aos estados onde residem.

Sabemos bem na prossecução da nossa ação externa que uma comunidade bem integrada em lugares de destaque e de influência no seu país de acolhimento é frequentemente muito importante para a prossecução e defesa de interesses portugueses. Pense-se nos casos de luso-descendentes que são hoje senadores ou congressistas nos Estados Unidos, ou do exemplo bem real do luso-descendente que é hoje Primeiro-Ministro de São Vicente e Grenadinas (Ralph Gonçalves), uma pequena ilha do Pacífico mas cujo voto em eleições no quadro de candidaturas nas Nações Unidas tem o mesmo peso que o voto de qualquer outro país.

Por estas razões, a importância das comunidades portuguesas no exterior justifica plenamente que sejam um eixo autónomo para a política externa portuguesa.

E. A INTERNACIONALIZAÇÃO DE PORTUGAL

O quinto eixo prioritário da ação externa de Portugal é o da sua própria internacionalização.

Portugal, cada vez mais, internacionaliza-se. As exportações portuguesas, que representavam 27% do PIB em 2005, representaram hoje 44%.

Os principais mercados de exportação estão na União Europeia, que representa entre 70 e 80% do nosso comércio externo, sobretudo a Espanha, a França, a Alemanha e o Reino Unido. Mas nos nossos primeiros 15 mercados de exportação contam-se também os Estados Unidos, Angola, o Brasil, a China, Marrocos e a Suíça. Portugal alcançou recentemente um equilíbrio assinalável na sua balança comercial e uma notável diversificação de parceiros.

Estas tendências, que advêm sobretudo do dinamismo dos nossos empresários, não são, contudo, totalmente independentes das orientações e ações de política externa. O Estado não se substitui aos empresários portugueses nas opções feitas por estes últimos, mas procura ativamente abrir caminhos e criar as melhores condições para o sucesso dos operadores económicos.

E não só. O esforço de internacionalização não visa apenas as exportações em sentido clássico, mas passa também por outras áreas: pela língua, cujo potencial já referimos, pela cultura, pela cooperação, que constitui uma área onde apostamos fortemente, pela promoção da mobilidade e pela ciência. Todas estas áreas têm enormes potencialidades de sinergias umas com as outras. Em todas elas a política externa é chamada a contribuir, promovendo, dinamizando, estabelecendo laços, procurando criar conexões que se prolonguem no tempo. O diálogo bilateral regular, ao nível político, com um cada vez maior número de parceiros, contribui fortemente para este esforço de internacionalização.

Portugal quer hoje estar mais presente em cada vez mais espaços. Fazemos isso com a convicção de que este seu maior esforço de abertura traz prosperidade e crescimento, mas, igualmente, com a consciência e a prudência de que na exata medida em que quanto mais Portugal se abre, também mais se expõe às fragilidades e incertezas que possam existir ou aparecer nos espaços em que está presente. A promoção da estabilidade internacional, o respeito por regras claras, comumente aceites e criadoras de previsibilidade e segurança, são assim do máximo interesse na ação externa de Portugal.

F. O MULTILATERALISMO ENQUANTO RESPOSTA E VOCAÇÃO

O sexto eixo prioritário na política externa portuguesa é o multilateralismo. Portugal é um país com uma política externa que tem vocação global e que acredita no multilateralismo enquanto condição necessária para uma ordem internacional assente na concertação e no respeito por regras.

Portugal é membro de quase todas as grandes organizações internacionais e sabe que ganha em peso e influência quando se relaciona com outros atores internacionais que prosseguem fins compatíveis com os seus. Consegue por esta via potenciar a sua presença e a sua influência e ultrapassar frequentes limitações de meios ainda mais acentuadas com a ampla dispersão dos seus interesses e objetivos externos.

Portugal prossegue ativamente o multilateralismo. É ao mesmo tempo uma característica e um objetivo prioritário da sua política externa. Daí a importância e a valorização contínua que Portugal confere ao papel das Nações Unidas como elemento central na ação multilateral nos principais assuntos que compõem a agenda internacional e que interessam muito particularmente a Portugal, sejam eles o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, as alterações climáticas, as migrações, o acolhimento dos refugiados, os assuntos do mar e a sustentabilidade dos oceanos.

Portugal mostrou também que a generosidade e o sentido de responsabilidade podem constituir-se como objectivos centrais da sua política externa

Ponto a reter: a política externa portuguesa tem conseguido excelentes resultados no quadro multilateral. Portugal foi eleito por três vezes para o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Recordemos as eleições de António Guterres para o cargo de Secretário-geral das Nações Unidas e, mais recentemente, de António Vitorino para Diretor-Geral da Organização Mundial das Migrações, que, sendo sobretudo devidas aos notáveis méritos dos candidatos, foram também em menor ou maior grau um sucesso evidente da diplomacia portuguesa no plano multilateral. Salientemos também os dois muito importantes e bem-sucedidos mandatos do Dr. Durão Barroso na presidência da Comissão, durante um dos períodos mais difíceis na história da União Europeia.

A defesa do multilateralismo em todos os planos da política externa, e a participação ativa no quadro das principais organizações internacionais assumem-se como dimensões estruturantes e identificadoras da política externa portuguesa.

CONCLUSÃO

Concluirei dizendo que Portugal tem uma política externa estável que decorre naturalmente da sua História e da sua geografia, e das opções que têm sido as suas.

A política externa portuguesa tem sido bem-sucedida. A integração europeia permitiu que Portugal consolidasse solidamente o seu sistema democrático e proporcionou ao país um período de paz e de desenvolvimento económico e social sem precedentes no século XX.

A pertença ao espaço euro-atlântico e à NATO assegurou a Portugal um lugar no bloco dominante após o final da guerra fria e um alinhamento com países com os quais partilhamos valores e garantimos a nossa segurança.

A pressão continental levou-nos a explorar os oceanos, dando-nos a profundidade estratégica que de outro modo não temos e possibilitando a construção de um espaço político próprio dos falantes de língua portuguesa. Proporcionou uma nova compreensão da nossa própria identidade e a pertença a um espaço pluricontinental de matriz histórica e linguística.

Protagonista histórico da primeira globalização, Portugal encontrou na internacionalização da sua economia uma via promissora para prosperar.

No quadro multilateral, que privilegia, a ação externa de Portugal compensou sem complexos a sua dimensão, que é média à escala global.

Somos sempre leais nos nossos alinhamentos e alianças. Soubemos ao longo dos tempos construir uma imagem, que é real, de um país com muita facilidade em dialogar com todos, que não pretende impor a sua visão das coisas, que acredita num mundo governado por regras claras e internacionalmente aceites, cuja agenda no quadro multilateral inclui sempre a criação de pontes e a procura do bom entendimento.

Portugal construiu uma política externa equilibrada e moderada, não seguidista, independente, tolerante, que valoriza, e muito, a cooperação para o desenvolvimento, que não prescinde do respeito pelos valores fundamentais do estado de Direito e da pessoa humana.

Numa característica que é muito sua, Portugal mostrou também que a generosidade e o sentido de responsabilidade podem constituir-se como objetivos centrais da sua política externa. Nunca ninguém poderá julgar a ação de Portugal a favor da autodeterminação e independência de Timor-Leste por quaisquer outros motivos que não fossem esses.

São estes os principais parâmetros que moldam a política externa portuguesa e com os quais Portugal conta para prosseguir os seus objetivos e fazer frente aos desafios que são os seus.


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