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O Instinto para a Liberdade

Carl Gershman

Carl Gershman

Presidente e fundador, National Endowment for Democracy

TRADUÇÃO Maria Cortesão Monteiro

Quando saiu o primeiro número do Journal of Democracy, em Janeiro de 1990, uma revolução democrática percorria o mundo. O Muro de Berlim tinha caído dois meses antes, protesto popular tinha derrubado os regimes comunistas na Europa Central e de Leste, e a União Soviética tinha começado a democratizar-se (e colapsaria no espaço de dois anos). Aquilo a que Samuel P. Huntington mais tarde chamaria de “terceira vaga” estava no seu pico, com a democracia e espalhar-se por todos os países da América Latina e das Caraíbas e com inúmeras transições democráticas a acontecer em Ásia e na África subsaariana. Com a queda do comunismo, a democracia tinha-se tornado a única forma de governo amplamente vista como legítima, e a sua expansão contínua parecia inexorável. Amartya Sen chamou à ascensão da democracia o evento mais importante do século vinte: numa mudança ideológica drástica, as pessoas tinham passado a acreditar que a democracia era “a forma de governo ‘normal’ a que qualquer nação tinha direito – quer na Europa, América, Ásia, ou África.” 1

Trinta anos mais tarde, tal optimismo sobre o futuro da democracia parece ser profundamente irrealista. 2 O mundo está hoje no centro daquilo que é frequentemente chamado de recessão democrática, estando os direitos políticos e as liberdades civis a diminuir há treze anos consecutivos, de acordo com o último estudo global da Freedom House. Muitos países que eram democracias emergentes ou democracias eleitorais têm nos últimos anos ficada cada vez mais autoritários – de entre eles actores regionais importantes como o Bangladesh, a Hungria, as Filipinas, a Tailândia, a Turquia e a Venezuela. Até nos Estados Unidos e noutros países ocidentais o apoio à democracia diminuiu, e movimentos populistas iliberais e movimentos nacionalistas têm surgido em reacção às ansiedades provocadas pela erosão das normas culturais tradicionais e mudança demográfica disruptiva e tecnológica. Polarização política aguda e um declínio da confiança na eficácia do governo democrático tem feito com que alguns analistas alertem acerca da possível “desconsolidação” de democracias ocidentais há muito estabelecidas cuja estabilidade foi em tempos tida como garantida. 3

O Instinto para a LiberdadeOs problemas que afectam as demo- cracias actuais têm sido acompanhados de uma projecção muito mais ousada de poder e influência por parte de estados autoritários como a China e a Rússia. Estes e outros regimes despóticos não estão apenas a ficar mais repressivos internamente, estando também a expandir o seu poder internacionalmente, preenchendo vácuos deixados pelo declínio da influência, unidade e auto-confiança do Ocidente democrático. Os governos autoritários estão a usar uma combinação de pressões militares e económicas, bem como ferramentas de informação e vigilância cada vez mais sofisticadas, para aumentar a sua influência internacional; para monitorizar e controlar as suas próprias populações; para dividir e enfraquecer as democracias com a aplicação de “sharp power”; e para criar uma ordem mundial pós-democrática na qual as normas de direitos humanos e regência da lei seriam substituídas pelo princípio de soberania estatal absoluta. Os autoritarismos estão também a cooperar uns com os outros para bloquear o progresso democrático e reforçar os regimes autocráticos pelo mundo.

A ressurgência do autoritarismo, a ascensão do iliberalismo, e a perda de auto-confiança do Ocidente levaram a uma acentuada reversão do progresso democrático e um novo pessimismo acerca das suas perspectivas. Em 2017, cerca de 300 importantes activistas e intelectuais, alarmados pelas tendências antiliberais na política mundial e no crescente cinismo relativamente à democracia que alimentou a ascensão do movimentos políticos e partidos antissistema, aprovaram uma declaração intitulada Apelo de Praga para a Renovação Democrática. 4

O Apelo começa por declarar “A democracia liberal está sob ameaça, e todos os que a estimam devem defendê-la.” Este apela à criação de uma nova Coligação Internacional para a Coligação Democrática que poderia servir de catalisador moral e intelectual para a renovação da ideia de democracia.

Tal coligação existe hoje sob a liderança do Forum 2000, uma organização sediada em Praga fundada pelo falecido Presidente checo, Václav Havel, em 1996 para fortalecer a cooperação democrática global. A coligação estabeleceu grupos de trabalho de resposta a novos desafios à democracia, incluindo o enfraquecimento das relações transatlânticas e os perigos colocados por uma ascendente República Popular da China. Mas estes esforços da sociedade civil ainda têm que estimular uma resposta dinâmica dos governos e líderes políticos do Ocidente. Em vez disso, aqueles que com mais força se juntaram à causa foram activistas nas linhas da frente da luta democrática em países autoritários.

Em primeiro lugar entre estes defensores da democracia têm estado os milhões de pessoas que ocuparam as ruas de Hong Kong desde Março de 2019, quando os protestos começaram por causa de uma lei de extradição que sujeitaria os residentes e visitantes de Hong Kong à jurisdição dos tribunais da China continental. Estes protestos, encabeçados por jovens, rapidamente evoluíram para um desafio continuado a Pequim, que se manifestou nos impressionantes resultados dos partidos pró-democracia nas eleições para o conselho distrital, a 24 de Novembro. Nas palavras de uma especialista em assuntos da China, Elizabeth Economy, “o ‘modelo Chinês’ está a estalar sob o peso dos protestos de Hong Kong e da acumulação de outras crises. Estas incluem o abrandamento da economia chinesa, a guerra comercial com os Estados Unidos, as críticas internacionais à enorme repressão à população Uyghur em Xinjiang por parte de Pequim, a resistência em Taiwan à coerção forçada da RPC, e as crescentes controvérsias em muitos países associadas à invasiva Iniciativa Faixa e Rota. 5

Ganhos democráticos significativos são possíveis. Os próximos anos serão definidos pela tensão entre a recessão democrática e a sua surpreendente resiliência

O Instinto para a LiberdadeTambém Moscovo foi palco de protestos maciços em meados de 2019, depois de as autoridades desqualificarem dezenas de candidatos às eleições para a Duma local ou Câmara Municipal. Tal como em Hong Kong, os manifestantes não mostraram medo e a cada dia “amadureciam e ficavam mais fortes, como afirmou um jornalista russo. 6 Putin ficou na defensiva, e os candidatos do seu partido Rússia Unida foram forçados a concorrer como independentes nas eleições à Duma de Moscovo, por “receio de serem associados a uma marca tóxica”, de acordo com o activista reformista Vladimir Kara Murza. 7 Depois de vinte anos no poder, Putin já não parece invencível: a sua postura de homem forte perdeu a atractividade durante o período de declínio económico e demográfico na Rússia que está a gerar um pessimismo generalizado relativamente ao futuro do país. Uma recente sondagem do Carnegie Moscow Center e da Levada Center mostra que desde 2017 o número de inquiridos que é a favor de “mudanças decisivas e de grande escala” na Rússia aumentou de 42 para 59 porcento, sendo que 53 porcento afirma agora que as reformas só são possíveis com “mudanças sérias no sistema político”. 8

UM INSTINTO INVENCÍVEL

Os regimes autoritários de Pequim e Moscovo não parecem estar em risco de colapso iminente, e os movimentos de protesto que actualmente os desafiam podem ser reprimidos ou simplesmente perder força no caso de um impasse político prolongado. Não obstante, estes movimentos confirmam a validade actual da observação feita pelo Presidente Ronald Reagan em 1982 no seu Westminster Address de que “o desejo instintivo [das pessoas] pela liberdade e auto-determinação surge e vai ressurgindo” em sistemas repressivos. 9 Hoje em dia vemos exemplos em muitos outros países autoritários. Na Venezuela, onde a economia está num caos, e mais de 10 porcento da população fugiu para estados vizinhos, uma oposição unida foi reconhecida como governo legítimo pelos Estados Unidos e mais de cinquenta outros países. O instinto para a liberdade também surgiu no Nicarágua, onde o regime do homem forte Daniel Ortega continua instável depois dos protestos que que deflagraram em Abril de 2018. O governo de Ortega provavelmente não sobreviveria ao colapso do seu parceiro populista e antigo patrono Nicolás Maduro na Venezuela – nem mesmo a um acordo negociado que levasse a eleições livres na Venezuela. A demissão do presidente cada vez mais autocrático na Bolívia, Evo Morales, depois de acusações de fraude das eleições presidenciais de Outubro foi mais um golpe no populismo na América Latina.

O Instinto para a LiberdadeO regime islâmico no Irão é outro exem- plo de uma ditadura cuja sobrevivência está sob ameaça, neste caso por causa dos protestos maciços contra a corrupção e a miséria económica em cidades como Qom e Mashhad que têm sido, tradicionalmente, bastiões da Guarda Revolucionária do regime. Os protestos em mais de uma centena de cidades motivados por um aumento no preço dos combustíveis (que são definidos pelo estado) foram “a mais dramática expressão de hostilidade para com os ayatollahs no poder” desde a Revolução Verde de 2009, de acordo com o Economist. 10 Recep Tayyip Erdogan, na Turquia, também tem sido desafiado como nunca antes depois das derrotas do seu partido em eleições locais no início do ano, especialmente depois da repetição das eleições para o Presidente da Câmara de Istambul. As expulsões de 2019 de Abdelaziz Bouteflika na Algéria, Omar al-Bashir no Sudão, e Saad Hariri no Líbano, resultado de revolta popular demonstram que, apesar do falhanço da Primavera Árabe em 2010-2011, a resistência ao autoritarismo no Médio Oriente não está extinta.

Em alguns países, a resistência popular ao governo autocrático criou aberturas para transição democrática. Em 2018, por exemplo, desenvolvimentos surpreen- dentes ocorreram na Arménia, Etiópia e Malásia, todos eles países de influência considerável nas respectivas regiões. Em cada um dos casos, regimes autocráticos profundamente enraizados sucumbiram à revolta da população com a corrupção e governação abusiva e inerte. No Sudão, surgiu ainda outra oportunidade de transi- ção com o recente acordo entre o exército e as Forças da Liberdade e Mudança (o grupo unido de oposição que ganhou forma durante os protestos que levaram à queda de Bashir) numa declaração constitucional e um órgão governativo conjunto. Em todos estes países, os obstáculos a uma transição democrática bem-sucedida são tremendos, mas a mera existência desta possibilidade em tantos lugares representa um importante passo em frente.

Protestos populares em vários países da Europa Central e de Leste desafiaram as políticas iliberais mais visivelmente promovidas pelos governos da Hungria e Polónia. Na Eslováquia, por exemplo, o assassinato que ocorreu em 2018, do jornalista de investigação Ján Kuciak e da sua noiva levaram a manifestações maciças que provocaram a queda do corrupto primeiro ministro Robert Fico. Um ano depois da saída de Fico, o político marginal e reformista liberal Zuzana Caputová venceu as eleições presidenciais Na Roménia, questões levantadas pela resposta da polícia ao rapto e assassinato de uma menina de quinze anos provocaram uma explosão de repulsa pública contra um governo corrupto de homens poderosos e instigaram a adoção de medidas para fortalecer a independência judicial. E na República Checa, em Junho de 2019, os escândalos à volta do primeiro ministro bilionário Andrej Babiš levaram à maior manifestação anti-governo desde a Revolução de Veludo de 1989. Manifestações maciças em Novembro de 2017, o trigésimo aniversário da Revolução, provaram que amplos segmentos da sociedade estão prontos a defender activamente a democracia. Como argumentou um artigo do Financial Times, o populismo iliberal na região teve que se colocar na defensiva “principalmente porque centenas de milhares de cidadãos da região, impacientes com os políticos que alimentam a corrupção e moldam a justiça à sua conveniência, se insurgiram contra ele.” 11

SEIS PRIORIDADES NO APOIO À DEMOCRACIA

Os protestos maciços contra a corrupção e o governo autocrático que têm acontecido em tantos países por todo o mundo não reverteram a recessão democrática dos últimos anos, mas mitigaram os seus piores efeitos, e deram-nos razões para acreditar que ganhos democráticos significativos são possíveis no período que aí vem. Os próximos anos serão definidos pela tensão entre a recessão democrática e a sua surpreendente resiliência. Neste contexto, as organizações e os indivíduos que estão a trabalhar globalmente para fortalecer a democracia devem focar-se em seis prioridades urgentes.

1 • APOIAR AS TRANSIÇÕES DEMOCRÁTICAS

O Instinto para a LiberdadeComo vimos acima, um dos desenvolvi- mentos mais surpreendentes e mais encorajadores durante este recente período de recessão democrática foram uma séria de revoltas populares contra os regimes autocráticos corruptos e abusivos. Estes levantamentos criaram oportunidades para transições democráticas em muitos países, incluindo a Tunísia, a Ucrânia, a Etiópia, a Arménia, a Malásia, o Sudão, e a Bolívia. Ajudar a assegurar que estas transições são bem-sucedidas é o desafio mais urgente com que devem lidar aqueles que trabalham pela renovação democrática. Embora os recentes desenvolvimentos tenham levado a ganhos imediatos em termos de direitos humanos e liberdade de imprensa, este progresso não terá influência política duradoura – e fará muito pouco em termos de reversão da recessão democrática – se não levar a reformas sociais e económicas reais que vão de encontro às necessidades e aspirações das pessoas. Para que isso aconteça, os países que se encontram agora em transição precisarão de desenvolver novas instituições democráticas que protejam os direitos das pessoas comuns; de capacitar os cidadãos a responsabilizar líderes políticos e elites económicas; promover crescimento económico e a oportunidade; e permitir que as sociedades resolvam de maneira pacífica questões decorrentes de divisões éticas e outras divisões. Só construindo tais instituições podem estes países tornar-se democracias inclusivas e estáveis.

O desafio é hercúleo porque um regime autoritário deixa muitas vezes os países com um legado de instituições oficiais degradadas, bem como uma sociedade civil que é inexperiente e não está preparada para aproveitar as oportunidades que as novas circunstâncias criam. Tais situações requerem uma abordagem multissectorial que apoie simultaneamente o desenvolvimento de partidos políticos, associações empresariais, sindicatos, e outras instituições.

Estabelecer pólos de transição para fornecerem assistência rápida e acessível nas áreas de reforma económica, desenvolvimento de partidos políticos, anticorrupção e reforma do sector da segurança é especialmente importante. É ainda crucial ajudar os activistas a cultivar capacidades que habilitarão alguns deles a “passar para o outro lado”, o da liderança política e serviço governamental, mesmo que outros permaneçam na sociedade civil para relembrar os novos governos das suas promessas de reforma e para os responsabilizar pelo seu desempenho.

A transição democrática é um processo de longo prazo, e as organizações internacionais que lhe dão apoio precisam de se manter envolvidas com os reformadores democráticos mesmo quando estes estes passam por contratempos inevitáveis. Os activistas ucranianos que lutavam por reforma e contra a corrupção não pararam os seus trabalhos depois do falhanço da Revolução Laranja em 2004. Os grupos internacionais que se mantiveram activos na Ucrânia estavam numa melhor posição para apoiar o processo de reforma, mais bem-sucedido, que se seguiu à Revolução da Dignidade de 2014-2014 do que estariam se não estivessem estado lá nos anos anteriores. É ainda importante a construção de redes de cooperação locais, nacionais e internacionais que possam fornecer aos activistas os recursos de que eles precisam para desenvolver plataformas de comunicação das suas mensagens. Tais redes podem também organizar encontros e promover actos de solidariedade internacional, fortalecendo assim o apoio político aos movimentos de reforma e tranquilizando os que estão na linha de frente da luta democrática de que não estão sozinhos.

2 · APOIAR A LIBERALIZAÇÃO DE SISTEMAS AUTORITÁRIOS

O Instinto para a LiberdadeHá diferenças significativas entre os regimes autoritários, e é importante adaptar o apoio às circunstâncias e oportunidades específicas de cada país. Os protestos na Rússia e em Hong Kong, por exemplo, ocorreram em ambientes relativamente abertos em que, embora houvesse inúmeras detenções, os activistas usaram as ferramentas digitais mais actuais para localizar os movimentos da polícia de intervenção, manter o público e os meios de comunicação informados, definir advogados para se defenderam da repressão, e organizar sofisticadas campanhas nas redes sociais. Embora os activistas na China continental, “estado de vigilância”, têm que lidar com um panorama mais fechado, há mesmo assim grupos que trabalham em múltiplos sectores – incluindo trabalho e ambiente – de forma a responsabilizar os líderes locais; a desenvolver práticas de forte segurança digital; a salvaguardar acesso a informação independente e treinar novos jornalistas cidadãos; e a mobilizar pressão internacional para defesa dos direitos humanos. Mesmo num país tão isolado como a Coreia do Norte, há provas de que o descontentamento vai aumentando devido à maior consciência do mundo exterior entre as elites, participantes em mercados privados, e jovens cativados por música popular e séries televisivas sul coreanas. Devemos tentar aumentar a quantidade de informação que entra e sai da Coreia do Norte, e chegar a membros da elite que tenham acesso à internet e visitem outros países asiáticos.

Apoio a grupos da sociedade civil, jornalistas independentes e defensores dos direitos humanos é importante em todos os países autoritários

Apoio a grupos da sociedade civil, jornalistas independentes e defensores dos direitos humanos é importante em todos os países autoritários, tal como é reunir apoio internacional para activistas que passam por violência e repressão. Estes corajosos activistas precisam desse apoio – mas também têm muito para ensinar ao Ocidente sobre como lidar com regimes como os de Moscovo e Pequim, que são cada vez mais hábeis a usar informação e recursos financeiros estatais para manipular a política internacional. “Uma geração de dissidentes de Leste”, escreve Anne Applebaum, “pensou mais seriamente do que nós sobre como se auto-organizar, como operar num mundo dominado elites secretas e cleptocráticas que fazem todos os possíveis para criar distracção e apatia.” Applebaum exorta-nos a aprender com estes dissidentes sobre “como competir num mundo em que o mundo está offshore, onde o poder é invisível e a apatia está generalizada.” 12

A cleptocracia transnacional é o pilar do autoritarismo moderno. Tendo em conta que se sustém em redes internacionais, é vulnerável a jornalistas interligados e grupos da sociedade civil que possam detectar actividade cleptocrátcia além fronteiras, partilhar informação, expôr transacções ilícitas, e pôr a cleptocracia na agenda pública por todo o mundo. É preciso que construir tais redes e ajudá-las a formar alianças com jornalistas de investigação dos estados cleptocráticos seja uma parte da estratégia para liberalizar os sistemas autoritários modernos, para tornar as suas operações mais transparentes, e fazer avançar a regência da lei.

3· COMBATER A INFLUÊNCIA MALIGNA DO AUTORITARISMO

O Instinto para a LiberdadeOs regimes autoritários modernos como os de Moscovo e Pequim – tecnologicamente sofisticados, economicamente integrados, e globalmente ligados – tentam minar as normas democráticas e manipular as instituições educativas e culturais, os meios de comunicação, os think tanks, e as associações cívicas por todo o mundo. Estes estados autoritários não estão apenas a aproveitar-se da abertura das democracias estabelecidas; usam ainda a sua influência multifacetada para oprimir os países em desenvolvimentos com recursos limitados que não são capazes de analisar, muito menos combater, essa actividade. A China usa ferramentas de informação e programas económicos de “sharp-power” como a Iniciativa Faixa e Rota para penetrar em sociedades externas e fazer avançar os seus objectivos geopolíticos. A Rússia, entretanto, tem alegadamente manipulado dezenas de eleições em países em África e na América Latina de forma a avançar os seus interesses comerciais e políticos. 13

É urgente fechar este iato de conhecimento relativamente à China e à Rússia, pois a informação a respeito das estratégias internacionais destes poderes é escassa em muitas das sociedades onde Pequim e Moscovo estão profundamente envolvidos. Esta assimetria coloca muitos países vulneráveis em desvantagem estratégica. O desafio de responder a uma influência autoritária crescente é agravado pelo facto de, com excepção de uns poucos países, poucos recursos foram alocados para este tema pelos meios de comunicação locais, think tanks, universidades, ou órgãos governamentais.

Os apoiantes da democracia devem dar prioridade ao estudo das várias formas de influência autoritária e os seus efeitos em instituições, normas e valores democráticas. São também fundamentais os esforços para aumentar a consciencialização, principalmente nos países e nas regiões que não estão familiarizados com as múltiplas dimensões da influência autoritária. Para isto, é essencial apoiar em países vulneráveis o treino e desenvolvimento de especialistas locais, que entendam como funcionam internamente os sistemas chinês e russo, bem como a sua capacidade crescente de influenciar internacionalmente.

4 · DEFENDER OS VALORES DEMOCRÁTICOS FACE AO CRESCENTE ILIBERALISMO E INTOLERÂNCIA

O líder do Partido Verde alemão, Ralf Fuecks, argumento no seu novo livro que a globalização e a revolução digital dividiram as sociedades modernas entre vencedores e perdedores. “Aqueles que tiveram uma boa educação, falam várias línguas, têm contactos internacionais e são literados tecnológicamente”, escreve, “são mais pro- pensos a ver mercados abertos, migração e diversidade cultural como uma oportunidade. Os restantes são mais passíveis de ver como ameaça.” Neste contexto, os movimentos populistas que se autopromovem como revoltas contra as elites globalistas têm estado em ascensão. Segundo Fuecks, os apoiantes destes movimentos vêem a defesa de uma cultural homogénea imaginada e a evocação da família, nação e estado como os bastiões contra a ameaça do seu desaparecimento.” 14

Um das respostas à diminuição do apoio à democracia liberal tem sido a promoção de educação cívica ampla e desenvolvimento da capacidade de liderança como forma de estimular uma nova geração de líderes cívicos e cidadãos participativos. Education International, uma associação internacional de sindicatos da educação que representa 32.5 milhões de educadores em 170 países, produziu recentemente um novo guia de educação cívica baseado na crença de John Dewey de que “a Democracia tem que nascer de novo em cada geração, e a educação é a sua parteira.” 15

É urgente fechar este iato de conhecimento relativamente à China e à Rússia, pois a informação a respeito das estratégias internacionais destes poderes é escassa

Tais esforços são importantes, mas precisam de ser complementados por uma estratégia intelectual e política que desafie o a mentalidade globalista que, nas palavras do economista Dani Rodrik, torna possível que “os populistas de extrema direita se apropriem do patriotismo para fins destrutivos.” 16 O Apelo de Praga para a Renovação Democrática incita os democratas liberais a defender o nacionalismo e patriotismo cívicos como alternativa ao nacionalismo iliberal que é o instrumento preferido dos mais determinados inimigos da democracia. Como escrito no Apelo:

Embora a democracia incorpore valores universais, existe num contexto nacional particular, aquelo a que Václav Havel chamou “as tradições intelectuais, espirituais, e culturais que o enchem de substância e lhe dão significado.” A cidadania democrática, enraizada em tais tradições, precisa de ser fortalecida, não podendo ser permitido que atrofie numa era de globalização. A identidade nacional é demasiado importante para ser deixada não mãos da manipulação de déspotas e populistas demagogos.

Como escreveu nestas páginas William Galston, “os democratas liberais devem fazer as pazes com a soberania nacional.” 17

5 · VENCER A NOVA BATALHA PELA TECNOLOGIA E INFORMAÇÃO

As esferas da informação e da tecnologia têm se tornado arenas crucias na contestação entre democracia e autoritarismo. Da desinformação às fake news, da vigilância ao “fim da privacidade”, a revolução na tecnologia digital está a criar ameaças à democracia. O desafio atravessa muitas dimensões diferentes da vida nas sociedades modernas, mas o seu efeito é talvez mais acentuado na informação e espaço mediático e nos processos políticos. Aqui, ferramentas como big data, inteligência artificial, e algoritmos que decidem que informação chega a cada audiência cada vez mais moldam a forma como os cidadãos vêem o mundo – e a forma como votam.

Os poderes autoritários e os regimes iliberais em ascensão percebem o poder da tecnologia digital, e já a usaram com grande eficácia para manipular os espaços da informação, para semear desconfiança popular na democracia, para dividir públicos, para desafiar noções partilhadas de verdade. Estão a construir na internet estruturas mais repressivas e a melhorar as suas técnicas de vigilância e censura.

No entanto a arena da informação e da tecnologia também fornece recursos precisos para os democratas, permitindo que estes investiguem abusos, combatam as narrativas iliberais, e informem e organizem os cidadãos usando formas emergentes de meios de comunicação independentes online. Tendo em conta que um segmento crescente da actividade cívica se articula na tecnologia, e particularmente na internet e nas redes sociais, a capacidade de adaptar a tecnologia a fins democráticos é essencial. Uma resposta abrangente ao desafio autoritário deve incluir iniciativas para exposição dos perigos da manipulação autoritária dos processos políticos e da informação; de fortalecimento de investigação jornalística de fonte aberta e dados de acesso livre que exponham a corrupção e os abusos; de protecção da liberdade da internet em termos nacionais e globais; implantação de tecnologias tecnologias anti-censura e anti-vigilância de ponta; de fortalecimento das redes de apoio à segurança digital; e de intensificação a nível global dos esforços para influenciar as políticas dos órgãos de governação da internet e principais firmas tecnológicas. É fundamental assegurar que a esfera digital pública, que está em constante evolução, é governada por normas democráticas.

O Instinto para a Liberdade

6 · RESTABELECER A VONTADE POLÍTICA

Nos Estados Unidos e noutras das principais democracias, tem havido uma diminuição da vontade política de defesa da liberdade e de apoio àqueles que lutam pela democracia pelo mundo. Esta diminuição de vontade política é resultado de vários factores, incluindo a ascensão de movimentos iliberais e da crescente polarização política que minou o ânimo e a auto-confiança dos países democráticos. Igualmente danosa é a visão comum de que defender a democracia deixou de ser necessário como fim da Guerra Fria. Seymour Martin Lipset argumentou contra esta complacência em 1995, muito antes da crise democrática actual. O “conflito global” entre a liberdade e os seus inimigos persistia, escreveu, mesmo que a sua dimensão militar se tivesse tornado menos pronunciada. Lipset afirmou que “em quase todo o lado fora das democracias mais antigas há um partido democrático e um anti-democrático,”, e afirmou que seria extremamente imprudente “abandonar o campo de batalha no contínua e muito menos dispendioso esforço de construção de sociedades livres no século XXI e depois.” 18

Desenvolvimentos recentes, incluindo o retrocesso global da democracia liberal e a emergência de uma nova internacional autoritária cujos líderes incluem a Rússia, a China e o Irão, tornam claro que a batalha das ideias não acabou e que continua a ser essencial ajudar as pessoas que lutam para construir sociedades livres.

Restabelecer o espírito do activismo democrático e da esperança no Ocidente é um desafio imenso. Crescente consciencialização da ameaça colocado pelo autoritarismo global ressurgente pode ter o efeito construtivo de contrariar a complacência e tornar claro às pessoas que vivem em democracias estabelecidas que já não podem tomar como garantida a sobrevivência da liberdade. Além disso, as manifestações que estão agora a acontecer nas ruas de Hong Kong e da Rússia, na Venezuela, no Sudão, e noutros locais podem despertar o compromisso para com a renovação democrática em pessoas por todo o mundo. A bravura e o empenho das gerações actuais de activistas são tão cativantes como a coragem dos dissidentes soviéticos, como a Solidariedade polaca, como o movimento “poder popular” nas Filipinas foram em décadas já passadas.

Como a ascensão do autoritarismo tem sido acompanhado por um recuo do poder e liderança dos EUA no palco mundial, é mais importante que nunca fortalecer a cooperação democrática entre as democracias europeias, bem como a Índia, Japão, Coreia do Sul, Canadá, Austrália e Taiwan. Mas seria uma ilusão pensar que tal cooperação pode compensar as consequências danosas da retirada e isolacionismo dos EUA. A democracia não existe num vácuo geopolítico. Tal como avisou Huntington há um quarto de século, quando a democracia parecia triunfante, um mundo sem a liderança americana “será um mundo com mais violência e desordem e menos democracia e crescimento económico que num mundo onde o Estados Unidos continuem a ter mais influência que qualquer outro país a moldar os acontecimentos internacionais.” 19

activistas por todo o mundo que estão a liderar na linha da frente da luta global pela democracia podem ajudar a reavivar a vontade política nos Estados Unidos e noutras democracias estabelecidas. Mas a sua coragem e determinação na defesa dos valores democráticos contra grandes adversidades sugerem que a democracia é inerentemente resiliente, e que a sua renovação é possível nos países relativamente abastados e estáveis que passam hoje por maior tensão e tumulto do que em qualquer outra ocasião desde a Segunda Guerra Mundial. No seu Westminster Address, o Presidente Reagan disse “a democracia está a provar ser uma flor nada frágil”. Que as suas palavras se provem verdadeiras por todo o mundo, e especialmente no problemático coração da democracia – o Ocidente e, acima de tudo, os Estados Unidos.


Referências

1 Amartya Sen, “Democracy as a Universal Value,” Journal of Democracy 10 (Julho 1999): 4.
2 See Marc F. Plattner, “Is Democracy in Decline?” Journal of Democracy 26 (Janeiro 2015): 5–10.
3 Roberto Stefan Foa and Yascha Mounk, “The Danger of Deconsolidation: The Democratic Disconnect,” Journal of Democracy 27 (Julho 2016): 5–17.
4 International Coalition for Democratic Renewal, “The Prague Appeal for Democratic Renewal,” 26 Maio 2017, www.forum2000.cz/en/coalition-for-democratic-renewal- 2017-event-coalition-for-democratic-renewal.
5 Anna Fifield, “China Is Threatening to Use Force in Hong Kong—and Hoping Threats Will Suffice,” Washington Post, 14 Agosto 2019.
6 Ben Aris, “Kremlin Ups Its Game with Police Violence at Moscow Protests,” bne IntelliNews, 29 Julho 2019, www.intellinews.com/moscow-blog-kremlin-ups-its-game- with-police-violence-at-moscow-pro-tests-165069/?source=russia.
7 Vladimir Kara-Murza, “Vladimir Putin’s Party Just Lost an Election—Even After Blocking Opponents from the Ballot,” Washington Post, 11 Setembro 2019.
8 Ilya Arkhipov and Anya Andrianova, “Most Russians Now Want ‘Decisive’ Change in Country, Study Shows,” Bloomberg, 6 Novembro 2019, https://news.yahoo.com/most- russians-now-want-decisive-101328470.html.
9 “Text of President Ronald Reagan’s Westminster Address,” www.ned.org/promot- ing-democracy-and-peace.
10 “Rises in the Price of Petrol Are Fuelling Unrest in Iran,” Economist, 21 Novembro 2019.
11 Tony Barber, “The Tides of Illiberalism Are Beginning to Ebb in Eastern Europe,” Financial Times, 13 Agosto 2019.
12 Anne Applebaum, “Hong Kong and Russia Protesters Fight for Democracy. The West Should Listen and Learn,” Washington Post, 16 Agosto 2019.
13 Christopher Walker, “What Is ‘Sharp Power’?” Journal of Democracy 29 (Julho 2018): 9–23; Shanthi Kalathil, “China in Xi’s ‘New Era’: Redefining Develop- ment,” Journal of Democracy 29 (April 2018): 52–58; Ilya Rozhdestvensky and Ro- man Badanin, “Master and Chef: How Evgeny Prigozhin Led the Russian Offensive in Africa,” Proekt, 14 Março 2019, www.proekt.media/investigation/evgeny-prigozhin- africa; Roman Badanin et al., “Coca & Co.: How Russia Secretly Helps Evo Morales to Win the Fourth Election,” Proekt, 23 Outubro 2019, www.proekt.media/investigation/morales-rosatom-eng.
14 Ralf Fücks, Defending Freedom: How We Can Win the Fight for an Open Society, trans. Nick Somers (Medford, Mass: Polity, 2019), 7–8.
15 John Dewey, “The Need of an Industrial Education in an Industrial Democracy,” in Dewey, The Middle Works: 1899–1924, Vol. 10, 1916–1917, ed. Jo Ann Boydston (Carbondale: Southern Illinois University Press, 2008), 139.
16 Dani Rodrik, “Why Nation-States Are Good,” Aeon, 2 Outubro 2017, https://aeon. co/essays/capitalists-need-the-nation-state-more-than-it-needs- -them.
17 William A. Galston, “The Populist Challenge to Liberal Democracy,” Journal of Democracy 29 (Abril 2018): 15.
18 Seymour Martin Lipset, “Democratic Linkage and American Aid,” Washington Times, 11 Junho 1995.
19 Samuel P. Huntington, “Why International Primacy Matters,” International Security 17 (Primavera 1993): 83. 


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