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Journal of Democracy Democracia em Combate

Marc Plattner

Marc Plattner

Almirante e Director da Revista de Marinha

Há cinco anos, o 25o aniversário do Journal of Democracy foi assinalado com um número em que doze autores res- pondiam à questão “Está a Democracia em declínio?”. A maioria dos nossos contribuidores responderam afirmativamente, embora no início de 2015 a ideia de que a democracia estava em retrocesso não fosse de todo comummente aceite. Hoje, em 2020, quando celebramos o trigésimo aniversário do Journal, há uma mudança fundamental das percepções. Hoje em dia quase toda a gente considera que a democracia enfrenta uma crise, e tal é regularmente afirmado em artigos de opinião e periódicos.

No nosso trigésimo aniversário decidimos não colocar uma pergunta concreta a possíveis autores. Em vez disso, convidámos uma parte substancial dos membros do nosso Conselho Editorial a escrever sobre um tópico de sua escolha. Não é surpreendente que a maioria deles tenha escolhido escrever sobre o estado da democracia, quer a nível global quer num país ou região particular. O que é surpreendente é o ponto a que os ensaios tendem a concordar acerca da condição da democracia no mundo. O panorama geral que é pintado pode ser descrito como sombrio, mas com raios de esperança. Quero aqui brevemente tentar analisar o consenso geral que vejo emergir nos artigos que se seguirão.

A democracia liberal, embora muito mais difundida do que noutros tempos, está sob maior ameaça hoje do que em qualquer outro momento desde a Segunda Guerra Mundial. Embora tenham colapsado poucos regimes democráticos, alguns países grandes e importantes que foram estrelas durante a “terceira vaga” de democratização – o Brasil, as Filipinas, a Polónia, a Turquia – sofreram reveses importantes. Em alguns casos este recuo foi tão severo que há dúvidas se estes regimes podem ou não ser considerados democracias, quanto mais democracias liberais.

Uma mudança ainda mais súbita teve lugar nas chamadas democracias avançadas, a maior parte delas no Ocidente, que são desde há muito casa da democracia liberal. Em 2015, o enraizamento e a estabilidade destes regimes eram largamente tidos como garantidos. Esse já não é o caso – ou pelo menos já não devia ser.

Nos últimos cinco anos deu-se um acentuado declínio nos destinos dos partidos políticos tradicionais de centro-direita e centro-esquerda que durante muito dominaram e governaram a vida política ocidental. Perderam terreno face a novos partidos, frequentemente de extrema direita ou esquerda, tipicamente descritos como populistas.

Embora haja muita discussão acerca de como deve o populismo ser entendido, poucos negariam que está a ganhar força e influência, tanto em democracias mais recentes como nas mais estabelecidas. Onde os partidos populistas chegaram ao poder, optaram normalmente por políticas iliberais hostis face a esses pilares da democracia como a separação de poderes, a independência do poder judicial, e a liberdade e diversidade dos meios de comunicação. E mesmo quando ficam na oposição, os partidos populistas que atraem apoio eleitoral significativo tendencialmente empurram as políticas dos respectivos países numa direcção iliberal.

Uma das razões para o enfraquecer dos partidos tradicionais e para o avanço do populismo é a crescente desilusão com a fraca performance dos governos democráticos. Os eleitores culpam-nos pelos fracos resultados de crescimento económico e por uma distribuição de ganhos que parece favorecer os mais ricos. A forma como os governos lidaram – ou falharam em lidar – com a questão da imigração é também uma importante fonte de insatisfação popular.

O surto de populismo, juntamente com o crescimento das redes sociais, ajudou a que houvesse um aumento na polarização política e uma diminuição da confiança nas instituições democráticas. Dados acerca da opinião pública em muitos locais indicam uma preocupante redução do apoio à democracia, especialmente entre os eleitores mais jovens. O compromisso cada vez menor com os valores democráticos não pode deixar de levar a uma diminuição da vontade política de defender a democracia.

Outra dificuldade para a democracia encontra-se nas tendências demográficas que moldam a evolução da política mundial. O envelhecimento da população nas democracias mais avançadas pressiona os sistemas de estado social. Níveis de nascimentos mais baixos que nunca, especialmente onde conjugados com altos níveis de emigração, fomentam receios de que alguns países não consigam preservar a sua língua, características e tradições nacionais. Isto intensificou as paixões nacionalistas e fez com que a migração se tornasse um assunto seriamente fracturante.

Tal como a questão da migração nos relembra, no mundo interligado de hoje as linhas que separa os assuntos domésticos dos assuntos internacionais não é fácil de desenhar. Apesar disso, os desafios à democracia enumerados acima são essencialmente internos. Ao mesmo tempo, no entanto, os oponentes externos da democracia têm ficado mais fortes.

Este não é um desenvolvimento recente. Leitores assíduos do Journal of Demo- cracy sabem que já há algum tempo que dedicamos bastantes páginas àquilo que denominámos de “ressurgência autoritária”. Muitos dos nossos primeiros artigos acerca deste assunto foram reunidos numa edição intitulada Authoritarianism Goes Global que foi publicada em 2016.

Não ignorámos os desenvolvimentos internos dos principais países autoritários, mas prestámos especial atenção aos seus esforços para melhoria da sua influência além-fronteiras e de cooperação uns com os outros no seio das organizações internacionais. Durante muito tempo a utilização de sharp power por parte dos países autoritários – penetrando sociedades abertas com o objectivo de sufocar o debate e minar a integridade de instituições independentes – foi grandemente ignorada. A interferência russa nas eleições americanas e europeias fez com que se tornasse impossível não ver.

Outra visão que parece ser partilhada pelos nossos autores é uma profunda desilusão com o impacto das redes sociais e outras tecnologias emergentes

Os três governos autoritários mais empenhados na utilização de sharp power são a China, a Rússia e o Irão. Cada um deles é tema de um artigo neste número. O autoritarismo é ainda o foco principal de artigos sobre Leste e Sudeste Asiático e mundo árabe. Sentimo-nos cada vez mais obrigados a dar atenção aos rivais da democracia.

A ampliação do poder e da envergadura dos principais autoritarismos tem mudado a face da política mundial. Embora os Estados Unidos continuem mundialmente a ser a nação preponderante em termos de poder económico e militar, já não possuem nessas áreas a superioridade inquestionável de que disfrutavam na era imediatamente após à Guerra Fria.

Journal of Democracy Democracia em Combate Estamos a reaprender a lição de que a geopolítica é fundamental para o futuro da democracia. Quando os Estados Unidos e os seus aliados ocidentes eram os principais formatadores da ordem internacional, esta era favorável à expansão das instituições democráticos, e os princípios liberais estavam embutidos nas organizações internacionais mais importantes. Os países que por necessidades de segurança ou interesses económicos ficavam dependentes das democracias avançadas dificilmente se poderiam dar ao luxo de agir de forma que suscitasse a ira destas democracias. Isto dava aos governantes um incentivo poderoso para evitar (ou pelo menos tentar disfarçar) acções descaradamente antidemocráticas.

Assim, quando repreensões ou sanções eram esperadas caso certas “linhas vermelhas” democráticas fossem ultrapassadas, estes aspirantes a autoritários precisavam de andar com cuidado para não incorrer em custos reais. Hoje em dia, no entanto, com o campo democrático não só relativamente mais fraco em comparação com os seus rivais autocráticos, mas também menos inclinado a dar prioridade ao apoio da democracia além fronteiras em termos de objectivos de polícia externa, os governantes com intenções antidemocráticas sentem-se muito mais livres.

As recentes conquistas geopolíticas e económicas dos autoritários – especialmente da China – mudaram também a maneira como o resto do mundo vê a competição entre sistemas políticos. O sucesso da China deu aos governantes dos países em desenvolvimento não apenas uma fonte alternativa de ajuda, comércio, e investimento além daquela que é o Ocidente, mas também a sensação de que a democracia não é necessariamente um requisito para a modernização.

Alguns vêem também a China como um modelo que podem procurar imitar. O modelo chinês é provavelmente inimitável nos seus detalhes, mas o apelo entre as elites governantes de um sistema que combina crescimento económico rápido com repressão política não deve ser subestimado. É provável que o futuro traga muito mais competição intensa – ideológica, económica, geopolítica, e até militar – entre sistemas políticos alternativos do que aquela que existiu na era imediatamente posterior à Guerra Fria.

Outra visão que parece ser partilhada pelos nossos autores é uma profunda desilusão com o impacto das redes sociais e outras tecnologias emergentes. Enquanto que no início estas eram vistas como promissores instrumentos de libertação, actualmente o seu lado negro é cada vez mais aparente. Internamente, contribuíram para a polarização e embrutecimento do discurso público. Internacionalmente, facilitaram campanhas de desinformação e outras formas de interferência externa na vida política das democracias. Hoje em dia estas tecnologias ajudam mais os autoritários que os democratas.

O APELO PERSISTENTE DA DEMOCRACIA

Este cortejo sombrio de problemas que assolam a democracia está longe de ser a história toda. Porque embora esteja em “recessão”, a democracia continua a mostrar sinais vívidos da sua força subjacente e do seu apelo persistente. O mais impressionante tem sido a erupção de protestos maciços opondo-se à ditadura e pedindo a democracia em muitos países por todo o mundo. Só em 2019, tivemos notáveis como o da Algéria, a Bolívia, Hong Kong, o Irão e o Sudão.

Journal of Democracy Democracia em Combate É certo que estes protestos podem ficar aquém dos seus objectivos democráticos. É também de notar que grandes protestos também ocorreram em países democráticos, maioritariamente contra corrupção e fraca governação. É notável, no entanto, que protestos contra a democracia sejam praticamente desconhecidos.

Aquilo a que Carl Gershman se refere como “instinto para a liberdade” mantém-se forte. Mesmo que o apego à democracia esteja atenuado entre os jovens que sempre disfrutaram das suas vantagens, o desejo por liberdade e auto governação é tão poderoso como sempre entre aqueles que sofrem sob a alçada de governos repressivos. Sejam quais forem as dificuldades que as democracias possam estar a ter para fornecer boa governança, a procura por democracia ainda é muito robusta.

Além disso, embora não sejam tão abundantes quanto foram no auge da terceira vaga, as transições para a democracia têm aumentado ultimamente. A Tunísia e a Ucrânia são dois países chave que continuam comprometidos em fazer que as suas actuais transições sejam bem-sucedidas, e novas e promissoras aberturas democráticas ocorreram na Arménia, na Etiópia e na Malásia.

Embora o populismo continue a ser uma ameaça em muitos países, o seu progresso foi menor do que muitos temiam (como indicam, por exemplo, os seus limitados ganhos nas eleições parlamentares da UE em 2019). Além disso, em alguns países em que populistas já tinham tido algum sucesso eleitoral, como o Equador, a Grécia, a Eslováquia e a Turquia, há sinais de um crescente “empurrão contra o populismo”. Este é um tema que o Journal planeia explorar em próximos números.

Finalmente, os rivais da democracia são muito menos estáveis do que muitas vezes são pintados. Apesar do seu poder militar crescente e dos seus ganhos geopolíticos recentes, os regimes altamente repressivos de Pequim, Moscovo e Teerão são frágeis. Embora não haja dúvida que Xi Jin-Ping, Vladimir Putin e Ayatollah Khamenei são politicamente dominantes nos respectivos países, eles têm que lidar com conflitos entre as elites do regime bem como com crescente ressentimento da população.

Por isso, mesmo que as democracias não consigam recuperar o seu antigo élan, não é certo que isso leve a uma fácil ascensão de regimes autoritários repressivos. A competição actual entre democracia e os seus rivais pode vir a assemelhar-se à das últimas duas décadas de Guerra Fria, que mais tarde Pierre Hassner caracterizou com a expressão “decadência competitiva” – ou seja, uma corrida em que a maior preocupação do chefe de cada um dos lados é durar mais do que o outro, gerindo com mais habilidade as suas tensões e fraquezas internas.

Duvido que que algum dos autores do número do nosso 30o aniversário discordasse muito do breve resumo que fiz da condição da democracia no mundo hoje em dia. Certamente discordariam uns dos outros em termos da importância que atribuem aos vários factores aqui abordados. Alguns podem dar mais ênfase aos desafios internos da democracia, e outros aos externos. Alguns vincariam os aspectos mais esperançosos da situação actual, enquanto que outros teriam uma visão mais sombria. Mas penso que todos concordariam que tanto as tendências negativas como as positivas devem ser tidas em conta.

Escolhemos tanto para o título deste ensaio introdutório como para cabeçalho da capa a frase “Democracia em Combate”. Espelha o nosso sentimento de que estamos nas primeiras etapas daquilo que é possível que venha a ser uma longa luta. A democracia pode estar em baixo, mas não está certamente fora de jogo. Embora os desde 2015 possam ter trazido o seu declínio crescente, a democracia está melhor preparada para o desafio que aí vem pelo menos num aspecto crucial.

Há cinco anos havia ainda muita complacência relativamente à saúde da democracia. Mesmo aqueles que denunciavam as suas alegadas falhas tendiam a estar confirantes que a democracia era praticamente invulnerável, pelo menos na América do Norte e no coração da Europa. E muitos analistas e decisores políticos consideravam excessivamente alarmistas as preocupações com a ressurgência do poder autoritário.

Em apenas cinco anos houve, no entanto, uma mudança marcável em termos da opinião relativamente a estes assuntos. Hoje em dia quase todos aqueles que se preocupam com o futuro da democracia reconhecem que esta enfrenta uma ameaça séria e que terão de montar um forte defesa, tanto internamente como internacionalmente. A democracia está sob assalto, mas os democratas pelo mundo têm agora um entendimento muito mais claro da necessidade de lutar por ela.

Nota de Despedida

Journal of Democracy Democracia em Combate O número do trigésimo aniversário do Journal of Democracy (JoD) marca também o meu último número como coeditor. O JoD abriu os seus escritórios em Setembro de 1989 e publicou o seu número inaugural (que contou com figuras como Frang Lizhi, Leszek Kolakowski, Juan Linz, Jacek Kuron, e Vladimir Bukovsky) em Janeiro de 1990. Larry Diamond e eu fomos os coeditores fundadores, e estamos ambos nessa posição desde então, com o Larry a trabalhar parcialmente de Stanford e comigo baseado a tempo inteiro em Washington, na nossa organização parceira, o National Endowment for Democracy (NED).

Ser editor do JoD foi o ponto alto da minha vida profissional, e foi com alguma tristeza que tomei a decisão de sair. Mas vou fazer 75 anos este ano, e continuo a ser uma criatura do tempo da impressão e do papel. Por isso achei que era melhor arranjar um sucessor mais novo e mais adaptado à era digital – mas não menos comprometido com os padrões académicos elevados, a análise profunda, a cobertura abrangente, e o estilo acessível que tem distinguido o JoD.

Estamos confiantes que encontrámos tal sucessor em William J. Dobson, que irá tomar as rédeas em Janeiro, continuando o Larry Diamond como “coeditor académico” do JoD durante um período de transição. O Will Dobson chega-nos do NPT, onde foi Editor-Chefe Internacional. Anteriormente na sua carreira ocupou posições editoriais sénior na revista Slate, Foreign Policy, e Foreign Affairs. É ainda o autor do livro The Dictator’s Learning Curve: Inside the Global Battle for Democracy (2012).

Durante a minha longa estadia no JoD, fui abençoado por uma equipa excepcional. Gostava que houvesse espaço para agradecer a todos pelo nome, mas devo destacar o nosso editor executivo Phil Costopoulos, que esteve connosco desde o primeiro dia e que ajudou a dar ao JoD o seu estilo distintivo e de fácil leitura. Estou profundamente grato ao Conselho Editorial do JoD, cujos membros têm sido incrivelmente generosos com o seu conselho. Larry Diamond tem sido um parceiro e amigo soberbo e a sua contribuição foi indispensável para o sucesso do JoD. Também gostava de agradecer aos Conselho Directivo do NED, e acima de tudo, ao seu presidente Carl Gershman tanto pelo seu apoio inabalável ao JoD como pelo seu respeito pela sua independência total.

Deixo assim o leme com fortes razões para estar grato pelo passado do JoD, bem com confiante acerca do seu futuro.


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