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Miguel Albuquerque

Miguel Albuquerque

Presidente do Governo Regional da Madeira

Cinquenta e quatro anos após a sua morte e 119 anos depois de ter entrado no Parlamento pela primeira vez – porque é que Churchill está na moda?

Churchill desmente categoricamente as teses dos historiadores marxistas ou estru-turalistas que veem na história uma mera narrativa de factores económicos e impessoais.

Winston Churchill in/na Madeira O ponto central da vida de Churchill é demonstrar que, de facto, um Homem pode fazer a diferença. Os principais biógrafos e historiadores concordam neste ponto crucial – A.J. Taylor; Martin Gilbert; Andrew Roberts; Max Hastings; Lukas; Roy Jenkins.

Ao longo da sua vida pública conseguimos reconhecer vezes sem conta o impacto que a sua personalidade teve sobre o Mundo e sobre os acontecimentos.

Churchill era um visionário – percebeu muitas vezes, antes de todos os outros, os acontecimentos e agiu em consequência da sua visão e intuição. Não foi por acaso que foi ele que iniciou a resistência ao nazismo triunfante no Continente Euro-peu; não foi por acaso que foi ele quem denunciou, antes de todos os outros, a ameaça do totalitarismo comunista sobre a Europa Ocidental, usando a expressão “Cortina de Ferro”, durante um discurso que pronunciou na cidade de Fulton, Missouri, em 1948.

- Na tarde de 28 de Maio de 1940 - na célebre de reunião do Gabinete, com Chamberlain, Halifax, Sinclair, líder do Partido Liberal, e Clement Atleet – Chur-chill, contra tudo e contra todos – persistiu e tomou a decisão da sua vida – deviam os soldados britânicos continuar a combater numa guerra que era dada como perdida? Ou deviam optar por algum tipo de acordo?

Foi este o momento crucial: - Se nesse dia a Grã-Bretanha, como queriam quase todos os membros do Gabinete de Guerra, tivesse optado pela política de acordo ou de apaziguamento com os Nazis, a Europa não seria o que é hoje.

Daí a célebre frase de Churchill “Apazi-guador é aquele que vai dando de comer a um crocodilo, na esperança de ser devorado em último lugar.”

CHURCHILL ERA TAMBÉM UM EPICURISTA
Bebia, fumava, tinha uma vida financeira desregulada e disfuncional, hoje não podia salvar a Europa.

Não alinhava com as modas e os cânones do politicamente correcto, que hoje confunde virtudes públicas com virtudes privadas.

Em 1937 Hitler pousou para a capa da revista Alemã – “Auf der Wacht” – com a seguinte legenda “O nosso Fuhrer Adolf Hitler não bebe álcool nem fuma... O seu desempenho no trabalho é incrível”. O contraponto destas pretensões alemãs – que hoje seriam integradas nos valores pequeno-burgueses do politicamente cor-recto - poderiam ser encontradas na réplica que Churchill deu ao General Montgomery sobre a vida saudável..

Winston Churchill in/na Madeira

Certa vez, com ar de censura Monty declarou a Churchill “Não bebo, não fumo, durmo muito. É por isso que estou 100% em forma.”

Resposta do Churchill: “ Bebo muito, durmo pouco e fumo charuto atrás de cha-ruto. É por isso que estou 200% em forma.”

Por último, Churchill era um homem muito culto, intelectualmente curioso, escritor prolífero e incansável, e formado em valores muito sólidos. Era um orgulhoso herdeiro e representante da tradição euro-peia e ocidental da liberdade ordeira sobre a lei. A sua filosofia política assentava na tradição grega, romana, judaica e cristã, e amiúde recordava os princípios esboçados na Magna Carta de 1215 – e proclamados na Revolução Inglesa de 1688 e na Revolução Americana de 1776.

Winston Churchill in/na Madeira

Espada procura decifrar o “Mistério Britânico”. A este respeito, ele sustenta-se no grande estadista anglo-irlandês Edmund Burke.

Miguel Albuquerque
Winston Churchill in/na Madeira
Aletheia Editores, 2018


John Owen IV

John Owen IV

Professor de Ciência Política, Universidade de Virginia

Conferência proferida na palestra-jantar Anual Winston Churchill, no Palácio da Cidadela de Cascais, a 20 de setembro de 2018, com a presença de sua Excelência o Presidente da República.

Tradução de Maria Cortesão Monteiro

Churchill e a ordem internacional

É uma honra estar neste lugar histórico, em tão distinta companhia, a marcar o início do novo ano académico desta instituição única – uma instituição que é importante não apenas para Portugal, mas para todo o mundo. Deixem-me co-meçar por agradecer aos meus anfitriões: Sua Excelência, Presidente Rebelo de Sousa; ao Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa; aos vários patrocinadores deste evento; e em particular ao Professor João Carlos Espada, ao meu ex-colega em Virgínia, o Professor Bill Hasselberger, e à Daniela Nunes.

Esta é a minha primeira visita a Portugal, e a hospitalidade que todos nos têm demonstrado neste lindo país é algo que eu e a minha filha Alice nunca esqueceremos. Não sou certamente o primeiro visitante a questionar-se porque é que todos aqueles exploradores, homenageados em Belém, quiseram sair de Portugal – eu acho que têm cá tudo!

Distintos convidados, senhoras e senhores: das muitas décadas de discursos memoráveis de Winston Churchill, o discurso de que o mundo se lembra melhor é o seu discurso do ‘finest hour’, proferido durante a que-da da França – a 18 de Junho de 1940 – à Câmara dos Comuns, e mais tarde nesse dia, à BBC. É neste discurso que Churchill incita os seus compatriotas, de uma forma que mais ninguém conseguiria, a derrotar Hitler mesmo que a França não conseguisse fazê-lo, “Se conseguirmos fazer-lhe frente”, a Hitler, disse WSC, “toda a Europa pode ser livre e a vida do mundo pode avançar paravastas planícies solarengas.” WSC não estava a falar apenas da sobrevivência ou vitória britânica. Ele estava a falar de toda a Europa e de facto de todo o mundo – fosse a Alemanha Nazi derrotada.

Mas: o que é que Churchill queria dizer com “vastas planícies solarengas?” A frase é, claro, uma metáfora, possivelmente tirada de H.G. Wells. Mas que tipo de mundo ilustrava?

Esta noite, gostava de apresentar quatro pontos.

Primeiro, que WSC queria uma ordem internacional em que as democracias agissem de forma concertada para salvaguardar o seu próprio auto-governo.

Segundo, que com com a ordem ociden-tal pós-guerra ele obteve algo aproximado ao que queria.

Terceiro – que essa ordem ocidental – agora muito mais complexa e quase global – está actualmente em perigo, ameaçada por um novo semi-membro, a China auto-ritária, a partir do interior (pela sua própria deriva em direcção àquilo a que chamarei cosmopolitismo).

Quarto, a ordem internacional que te-mos tido desde 1945 merece ser salva – mas necessita bastante de reforma. Comecemos então o primeiro ponto– sobre o tipo de ordem que WSC queria. Em princípio, um certo número de ordens internacionais diferentes é possível. Podemos dispô-las numa espécie de espectro teórico. Num dos extremos está o mundo descrito pelo filósofo inglês do início da modernidade, Thomas Hobbes, no qual todos os países encontramnum estado de natureza, que é na verdade um estado de guerra. Neste mundo não é possível existir confiança, e cada estado deve armar-se face à possibilidade de guerra com todos os outros e, portanto, deve evitar tornar-sedependente de qual-quer outro país. Os estados podem formar alianças contra uma ameaça comum, mas estas alianças são temporárias e acabam assim que a ameaça comum desaparece. Neste mundo, a força faz o direito.

No outro extremo do espectro está um estado mundial, que é exactamente o que o seu nome indica: uma única autoridade com o monopólio do uso legítimo da força, com o poder para aplicaracordos entre povos, grupos, corporações. O mundo como um grande país. A isto chamamos utopismo.

WSC, como a maior parte das pessoas, queria uma ordem mundial situada algures entre estes dois extremos, hiperrealismo e utopismo. Isto porque WSC pensava nas ameaças estrangeiras não apenas em termos de proteger o território britânico de ser conquistado, mas de protecção da democracia britânica – as liberdades, o auto-governodo povo britânico. Por esta razão, ao contrário de muitos no seu próprio partido na década de 30, WSC era inflexível na posição de que nenhum acordo devia ser assinado com Hitler e o seu regime nazi – um regime que tinha derrubado a democracia na Alemanha e que faria o mesmo noutros países, se pudesse.

É portanto claro, acho, que WSC rejeitaria tanto um estado mundial como um estado de natureza hobbesiano, porque ambos os tipos de ordem global iriam eviscerar a democracia – no Reino Unido e em todo o lado. Noutras palavras, a democracia britânica apenas poderia sobreviver se outros países da Europa e outras regiões fossem também democráticos – nenhuma democracia é uma ilha – e isso, por sua vez, requeria um tipo particular de ordem internacional.

WSC queria uma ordem internacional em que as democracias agissem de forma concertada para salvaguardar o seu próprio auto-governo

Mas onde se situava este ponto do espectro? Onde podiam ser encontradas vastas planícies solarengas? Encontramos pistas noutros discursos de WSC. Nos anos 30, ele escreveu e falou inúmeras vezes sobre segurança colectiva: acerca de como a Liga das Nações, liderada por poderes democráticos, se devia unir na defesa face a ameaças fascistas. Em Agosto de 1941, assinou, juntamente com o Presidente americano Franklin Roosevelt, a Carta do Atlântico, visando uma ordem mundial melhor. Mas deixem-me passar para 1948, depois da vitória dos aliados, no início da Guerra Fria, quando WSC e outros enten-deram que a União Soviética de Estaline era uma séria ameaça à paz mundial e ao governo democrático. Churchill, aí fora do poder, afirmou o seguinte num Encontro Geral do Partido Conservador, no País de Gales em Outubro:

Ao olhar para o futuro do nosso país neste mudança de cenário do destino hu-mano, pressinto a existência de três gran-des círculos entre as nações livres e as democracias. Quase desejava ter aqui um quadro negro. Far-vos-ia um esquema... O primeiro círculo é para nós, naturalmente, a Commonwealth e o Império britânico, com tudo o que isso abrange. Depois há também os mundo falantes de inglês, no qual nós, o Canadá e os outros domínios britânicos e os Estados Unidos têm um papel tão impor-tante. E, finalmente, há a ainda a Europa Unida. Estes três grandiosos círculos são co-existentes e, se estiverem ligados, não há força ou combinação de forças que os possa derrubar ou até desafiá-los.

Aqui, WSC está, claro, a tentar ar-duamente defender que o Reino Unido, independentemente da sua fraqueza pós--guerra, permanecia fundamental para a ordem internacional, pelo facto de ser o único país a estar nos três círculos.

Ponhamos de parte as esperanças de Churchill acerca do estatuto britânico no pós-guerra, e pensemos acerca do conceito geral de círculos de nações. A visão de WSC não é certamente a de um estado mundial, mas também não é de uma guerra hobbesiana de todos contra todos. Para WSC, algumas nações formam grupos – têm relações especiais com os integrantes desse grupo – e todas elas são democracias ou estados constitucionais auto-governados. Quatro anos mais tarde, com a guerra ainda a de-correr, o governo de WSC participou numa importante conferência em Bretton Woods, New Hampshire, nos Estados Unidos, na qual economistas e diplomatas propuseram novas instituições internacionais que iriam fomentar maior cooperação entre estas democracias. Os governos destes países acreditavam veementemente que se nos anos 30 tivesse havido mais cooperação económica em termos de relações monetárias e de comércio entre as democracias, elas teriam evitado as catástrofes económicas e, consequentemente, a ascensão do fascismo e a própria guerra.

WSC, como ele próprio admitia, não era nenhum economista. Mas era um grande defensor do comércio livre, de violar um antigo dogma realista, tornando o seu país dependente de outros em prol de uma maior prosperidade. Assim sendo, em 1944 ele apoiou os esforços das democracias na construção de uma ordem internacional que preveniria um regresso aos desastres da década de 30. Daí surgem o Fundo Mo-netário Internacional e o Banco Mundial, que ainda hoje existem. Em Bretton Woods, os delegados tentaram ainda estabelecer Organização do Comércio Internacional, mas os britânicos e os americanos não con-seguiram chegar a acordo nos termos, e por isso três anos mais tarde, em 1947, puseram em prática uma versão mais fraca, o Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, ou GATT – que se tornou a Organização Mundial de Comércio em 1995. Churchill apoiava ainda a aliança da NATO, que ligava a Europa Ocidental e a América do Norte numa aliança de segurança. Poderia dizer ainda mais, mas já conseguem ter uma ideia: WSC ambicionava uma ordem internacional em que as democracias tivessem relações especiais, marcadas por maior cooperação e confiança, para que pudessem permanecer democracias.

Já toquei um bocadinhoJá toquei um bocadinho no meu segundo ponto, sobre como WSC conseguiu, mais ou menos, as planícies solarengasque queria depois da guerra. Nomeadamente, uma ordem internacional para proteger a liberdade individual e a democracia em casa, prevenindo ou pelo menos contendo depressão, extremismo político e agressão no exterior. Uma ordem que requeria mais regras e instituições do que o mundo alguma vez tinha visto: mais tratados multilaterais a governar as relações comerciais e monetárias, mas também, com a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte em 1949, e também com as alianças americanas com o Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia, e outros, segurança colectiva contra a ameaça soviética.

De facto, o General Sir Adrian Bradshaw afirma que muitas das ideias daquilo que eventualmente se tornou a NATO foram apresentadas por Churchill durante um almoço com um jovem enviado do Presidente Harry Truman, em Março de 1948. Foi um almoço em que, digamos, foi servido álcool, e a velocidade com que Churchill expunha as suas ideias era cada vez maior, ao ponto de um americano que estava presente pedir algum papel para anotar as ideias de Churchill.

“Jovem rapaz,” afirmou Churchill visivel-mente irritado, “não te consegues lembrar de nada?”

Em desespero, o jovem foi à casa-de--banho, pegou em algum papel higiénico e escreveu tudo o que conseguia. Estas notas tornaram-se a base do pensamento americano sobre a NATO.

De qualquer forma, o sistema era um em que os Estados Undos, com o seu enorme poder, entravam num pacto geral com países de média e pequena dimensão da Europa, Canadá e do Pacífico. Sob este pacto, a América vincular-se-ia a estas regras, tor-nando o seu próprio comportamento mais previsível e abrindo-se a influência dos seus aliados. A América beneficiou com a extensão do seu poder ao longo do tempo e por tornar mais eficiente o exercício desse poder. Os estados mais pequenos desistiriam dos seus impérios formais e submeter-se--iam à liderança americana; mas em troca obteriam segurança perante a intimidação soviética, prosperidade para o seu povo, e uma porção significativa de influência sobre os Estados Unidos. Os economistas dizem-nos que as instituições funcionam dando aos governos mais informação sobre as preferências e capacidades uns dos outros, e fazendo com que a cooperação compense cada vez mais ao longo do tempo. Isto foi essencialmente o que aconteceu na ordem internacional pós-guerra no Ocidente. A integração europeia começou e aprofundou--se sob esta ordem – como uma espécie de versão intensificada desta – com o apoio dos Estados Unidos. Há muito mais a dizer sobre esta ‘lógica do Ocidente’, como lhe chamaram John Ikenberry e Daniel Deudney. As suas raízes encontram-se em escritos de juristas e filósofos dos séculos XVIII e XIX. Esta ordem internacional é, repito, uma tentativa de salvaguardar a liberdade individual no interior dos países estabelecendo instituições entre eles. Mas também ajudou a expandir a democracia entre os seus membros; a NATO e outras instituições parecem também ter tido um efeito socializante, através de mecanismos complexos. Com isto quero dizer que vários países, incluindo Portugal, se democratizaram enquanto membros da ordem internacional. Nenhuma democracia era uma ilha.

Esta ordem internacional liberal (OIL)Esta ordem internacional liberal (OIL) depois da Segunda Guerra Mundial com-pensou para todos os seus membros, in-cluindo o Reino Unido, incluindo Portugal, incluindo os Estados Unidos. Poderia haver recessões económicas, mas não mais gran-des depressões. As barreiras ao comércio internacional caíram progressivamente ao longo das décadas, e as condições de vida nesses países aumentaram mais do que nunca. Esta ordem internacional foi parte do que permitiu ao Ocidente du-rar mais que o bloco soviético e vencer a Guerra Fria. E é fundamental notar que os países na ordem internacional perma-neceram países separados. Foi o sistema a que muitos outros países aderiram depois do colapso da União Soviética em 1991, quando os países do Terceiro Mundo que tinham permanecido afastados da ordem internacional liberal se juntaram a ela – ou pelo menos a partes dela, um ponto a que retornarei mais tarde.

WSC teria provavelmente visto estes anos como vastas planícies solarengas: não uma utopia, mas uma ordem internacional bem melhor do que a que a Europa ou o mundo tinham tido em Junho de 1940 ou até Outubro de 1948. Esta ordem passou a ser percepcionada como o normal das relações internacionais, pelo menos entre as democracias ocidentais. Quando tomamos como garantido que uma emergência como a crise financeira de 2008 não produz uma depressão global; que um cidadão portu-guês pode facilmente comprar um iPhone feito na China ou uma máquina de café italiana; que uma guerra entre a Alemanha e a França é impensável: temos que dar graças à ordem internacional liberal. No Ocidente estamos tão habituados a esta ordem que estamos tentados a pensar nela como uma inevitabilidade histórica. Mas, tal como a própria democracia, esta ordem internacional não é uma inevitabilidade, e sim uma conquista. E sendo uma conquista, pode ser revertida, ou pode atrofiar – o que me traz ao meu terceiro ponto.

O meu terceiro ponto é que esta ordem está actualmente em risco devido a dois desenvolvimentos: a ascensão da China, e a deriva da própria ordem em direcção àquilo a que chamarei cosmopolitismo.

Primeiro, os países que se juntaram à ordem enriqueceram, e o maior vencedor é a China. A China é um participante eco-nómico pleno na OIL, e os seus resultados são de facto impressionantes. É um gigante da manufactura, capaz de fabricar e enviar enormes volumes de encomendas à veloci-dade da luz – e nas últimas três décadas e meio tirou da pobreza mais pessoas do que qualquer outro país na história. A China tem excedentes comerciais maciços com a EU e com os EUA; também empresta imenso dinheiro aos EUA para alimentar os hábitos de consumo americanos. O pro-blema é que a China não é uma democracia liberal, multipartidária. Tem uma economia semi-capitalista, mas ainda tem um sistema político leninista. Um partido, o PCC, mo-nopoliza o poder político e está determinado a esmagar quaisquer concorrentes.

Até agora, o Partido tem sido muito bem sucedido, confundindo várias previ-sões ocidentais sobre o seu declínio. Isto é importante porque, ao contrário dos europeus e dos norte americanos, o partido que governa a China não quer uma ordem internacional que salvaguarde a democra-cia dentro dos países. Quer uma ordem internacional que mantenha a democracia afastada, longe das fronteiras chinesas. A China não gosta do enviesamento liberal face a algumas instituições internacionais, como os acordos de direitos humanos, os ajustamentos estruturais económicos exigidos pelo FMI. Consequentemente, a China tem dado passos subtis de modo a enfraquecer o escrutínio aos direitos humanos por parte da ONU. E começou a sua própria instituição financeira internacional, o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII), que não exige que os países mutuários se tornem mais democráticos. O BAII finan-cia grande parte do 1 trilião de dólares da iniciativa Belt&Road que percorre Ásia, África, o Médio Oriente e Europa Orien-tal – um projecto quatro vezes maior que o Plano Marshall.

Enquanto que a expansão da OIL enco-rajou a democratização – em países como Portugal e Espanha na Europa, e Coreia do Sul e Taiwan na Ásia – a ascensão da influência chinesa pode muito bem ter o efeito contrário. Podemos chamar a este resultado provável Internacionalismo com Características Chinesas.

A segunda ameaça à OIL emerge no próprio ocidente. Os choques políticos do memorável ano de 2015 demonstram isso mesmo. Primeiro, em Junho, quando uma maioria dos britânicos votou pela saída da UE. O significado exacto do Brexit não é ainda claro, mas é claro que a maioria dos votantes britânicos considera que a integração europeia foi longe demais. E em Novem-bro desse mesmo ano nos Estados Unidos foi eleito Donald Trump, um candidato abertamente hostil a acordos de comércio livre – chamou à NAFTA o pior acordo alguma vez negociado – retirou os EUA das negociação para a Parceria Transpacífico (TTP, na sigla original) e para o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla original). Trump é também aparentemente céptico relativamente à NATO, e às alianças com o Japão, Coreia do Sul, e outros aliados de longa data. Parte de tudo isto pode ser apenas retórica, a técnica de negociação agressiva de um magnata imobiliário de Nova Ior-que. Mas, no geral, Trump não parece ter grande uso para dar à ordem internacional em que o seu país – o meu país – teve um papel essencial, quer em termos de criação como em termos de manutenção. Ele vê as relações internacionais como um conjunto de transacções, não relações contínuas. E nestas transacções, inevitavelmente, um dos lados ganha e o outro perde, mesmo entre aliados.

Por detrás do Brexit e de Trump – e da ascensão de outras forças como Bernie Sanders nos EUA, Jeremy Corbyn no Reino Unido, a esquerda anti-globalista na Europa do Sul e a direita anti-globalista na Europa de Norte – está um profundo desconten-tamento com a OIL, que se estende pelo ocidente. Particularmente descontentamento com as perturbaçõesprofundas que a OIL trouxe – perturbaçõesaos modos de vida habituais e valorizados – perturbaçõesque são sentidas por muitos, especialmente de classe média e trabalhadora, não como preservação da democracia, mas como perda da democracia. Notemos a ironia: uma ordem internacional desenhada para preservar a liberdade e o auto-governo é agora vista por milhões como restringindo essas mesmas coisas.

Há componentes económicos e culturais nestas perdas, e estes são muito difíceis de resolver. No âmbito económico, muitos daqueles que votam em partidos anti--globalização perderam os seus empregos, ou tem empregos com salários baixos, ou isso acontece aos seus filhos ou netos. E atribuem a culpa disto ao comércio livre, ao investimento estrangeiro, à imigração. No geral, a OLI enriqueceu os países, mas, como esperado, no interior dos países re-distribuiu rendimento e riqueza. Grande parte da perda do trabalho na indústria deve-se a automatização. Mas isso não importa: a culpa recai quase toda sobre a abertura económica.

No âmbito cultural: abrir as economias e as sociedades enfraquece, inevitavelmente, a cultura tradicional, e traz novas normas – comida, arte, linguagens, perspectivas, costumes sociais. Isto está a acontecer a um ritmo veloz e a uma escala massiva na maioria das democracias. Nós, Americanos, não gostamos de falar de classe, mas é claro que as disrupções são sentidas de forma diferente conforme a classe social. Para as nossas elites, a OLI trouxe uma mistura de culturas revigorante e oportunidades para auto-expressão individual e experimentação social. Mas estas novas normas pressionam todos os cantos das nossas sociedades de uma forma que, ironicamente, leva a uma nova homogeneidade cultural. Ontem vi um café do Starbucks em Lisboa!

E esta homogeneidade global não é bem recebida por muitos que trabalham em fábricas, em pequenas cidades, que praticam agricultura – por aqueles que atribuem um profundo significado à sua comunidade, ao lugar, à história, e ao país. Em dois artigos que publiquei, argu-mentei que podemos entender o que está a acontecer reconhecendo que o próprio liberalismo evolui ao longo das décadas. O liberalismo sempre foi um sistema que procura defender a liberdade individual. No entanto, aquilo que o liberalismo vê como principais ameaças à liberdade individual tem mudado. Nos séculos XVIII e XIX, os liberais viam o estado despótico, encarna-do na monarquia absoluta, como a maior ameaça. E portanto, o objectivo era o de domar o estado, torná-lo um estado liberal. Desde o final do século XIX até meados do século XX, os liberais passaram a ver o capital sem restrições – dinheiro usado para fazer mais dinheiro – como a principal ameaça. O objectivo passou, então, a ser o de usar o agora domado estado liberal para regular a economia de várias maneiras, especialmente para proteger os trabalha-dores das suas mudanças. Desde os anos 60, muitos liberais passaram a ver como principal ameaça à liberdade individual as culturas e instituições tradicionais. O liberalismo de hoje em dia é o liberalismo de 3ª fase, que vê o indivíduo como livre quando este ou esta não está vinculado por nenhuma cultura ou religião ou modo de vida ou lugar ou papel de género que tenha sido herdado, quando ele ou ela acima de tudo é, não um cidadão de uma democra-cia que co-existe com outras democracias, mas sim um cosmopolita. Esta terceira fase do liberalismo recruta o estado liberal e o agora domado capital – grandes corpora-ções – satisfaz estas supostas ameaças. As grandes corporações são agora algumas das entidades mais progressistas no planeta.

Existem razões para esta evolução do liberalismo, e não quero criar uma compe-tição normativa entre as três fases. Em vez disso, quero afirmar que este liberalismo de 3ª fase não é algo com que as pessoas das democracias liberais tenham concordado através de um processo democrático. Foi algo que emergiu em partes das elites da sociedade e que tem, ao longo das últimas décadas, capturado a maior parte dos partidos políticos convencionais, que depois o põem em prática – na lei e em política pública e corporativa. Há resistência à 3ª fase do liberalismo. Algumz provém dos liberais de 1ª fase, alguma de liberais de 2ª fase que ainda existem. E alguma de anti-liberais. Isso é evidente nas reacções perniciosas que vemos, com demasiada frequência, hoje em dia. Movimentos racistas agitam e conju-ram um passado negro, como temos visto em incidentes perturbadores em algumas partes da Europa e na minha cidade natal, Charlottesville, Virginia, há pouco mais de um ano. Não quero desculpar minimamente estas reacções destrutivas. Devemos repudiá-las claramente e precisamente porque elas ameaçam a democracia.

Mas o que é que pode ser feito?

O meu quarto ponto é que vale a pena salvar a ordem internacional liberal mas que esta precisa de reforma. Porque é que vale a pena salvá-la? Vale a pena salvá-la? Pode a sua utilidade ter chegado ao fim? Muitos à Direita e à Esquerda pensam que sim.

Vale a pena salvar a ordem internacional pela mesma razão que WSC considerou que valia a pena criá-la: porque é a ordem mais capaz de salvaguardar o auto-governo e a liberdade que são legado de tantos países. WSC e essa geração de líderes ocidentais percebiam que a democracia se desgasta quando as democracias deixam de coo-perar de forma previsível: os problemas económicos tornam-se crises diferentes. Os governos autoritários e as ideologias venenosas tornam-se, em tempos assim, mais atractivos para muitos. Os conflitos internacionais e guerra tornam-se mais prováveis, e os países começam a preparar--se para essas coisas.

Mas como preservar a ordem interna-cional que preserva a democracia? Afirmei que uma das ameaças à ordem é a ascensão da China. E quero deixar claro que não há nada a fazer directamente em relação a isso. O Ocidente não pode deter a ascensão da China. Ninguém quer guerra ou ameaça de guerra com a China. O máximo que podemos fazer é continuar a ter esperança e trabalhar para a democratização da Chi-na – para uma transição pacífica para um regime liberal, multipartidário. Mas isso é precisamente o que o PCC não quer. A curto-prazo, portanto, devemos estar pes-simistas. E podemos estar a testemunhar as primeiras fases de separação do mundo em dois sistemas: um pensado para prote-ger a democracia, o outro para proteger o autoritarismo. Isto não é uma nova Guerra Fria, acho, porque até agora nem a China nem a Rússia têm uma ideologia que tenha apelo internacional suficiente. Mas talvez seja aquilo a que WSC denominaria de dois círculos de estados – competindo enquanto cooperam.

WSC e essa geração de líderes ocidentais percebiam que a democracia se desgasta quando as democracias deixam de cooperar

Felizmente, relativamente a este segun-do desenvolvimento – o afastamento do Ocidente do objectivo inicial da OIL – os europeus e os norte americanos têm mais controlo. Não sou arrogante ao ponto de ter um plano abrangente de reforma.

Na verdade, acho que planos abran-gentes são parte do problema. Para que fique registado, acho fundamental manter a NATO – uma aliança que tem cultivadoa democracia nos estados membros. E con-cordo com a sabedoria convencional liberal acerca do comércio internacional: quanto mais livre, melhor. Tal como o comércio duradouro entre Portugal e Inglaterra tem beneficiado ambos os países ao longo dos séculos, a OMC tem sido benéfica para todos os países em geral. E, de forma geral, a livre circulação de capital por fronteiras nacionais também tem sido benéfica. Estou menos certo relativamente à livre circulação de pessoas, de trabalho. Esta é uma coisa relativamente nova, uma imagem de marca do liberalismo de 3ª fase, vista de forma mais explícita no chamado movimento de fronteiras abertas. Fronteiras abertas baixam os salários e provocam a erosão das culturas e dos próprios estados-nação.

Há, claro, argumentos a favor da alta mobilidade internacional do trabalho. Mas de qualquer forma, o meu ponto principal é que questões sobre imigração, e sobre movimentos de comércio e capital, devem acontecer através de processos democráticos legítimos no interior dos países. Isto é, os partidos políticos à direita e à esquerda devem reconhecer que os indivíduos cuja liberdade é suposto a ordem internacional defender, são cidadãos de países – países que têm algum significado para eles. Re-cordemo-nos que a OIL nunca teve como intenção ser um projecto cosmopolita – de eliminação dos países – o guião não era a canção “Imagine” de John Lennon. “...imaginem que não há países...” As planícies solarengasde Churchill não eram isso. Desde o tempo do filósofo Immanuel Kant no final do século XVIII, ao consenso internacional durante a Guerra Fria, que a intenção era a de ajudar a manter as nações independentes e democráticas tornando as relações entre elas mais racionais, pacíficas e prósperas. O génio da democracia liberal é a sua capaci-dade de contínua auto-correcção, e isso não provém de pessoas inteligentes com grandes planos que impõem à sociedade – isso é o que acontece nos sistemas comunistas e fascistas – mas sim do livre debate no seio e entre as próprias democracias. Os partidos políticos nas democracias precisam de prestar mais atenção àqueles que perderam para o liberalismo de 3ª fase, e não apenas tentar distraí-los com outras políticas ou relegá-los a uma categoria ‘deplorável’ e esperar que desapareçam. Os nossos líderes devem ver todos os cidadãos como plenos cidadãos, com direito a auto-governo.

Hoje, em 2018, não estamos nem próximos dos dias sombrios de Junho de 1940, quando Winston Churchill disse aquilo que todos sentiam: que o Reino Unido, a Europa, e o mundo estavam à beira de uma nova Idade das Trevas, de um abismo. Mas as planícies solarengasque ele nos ajudou a atingir es-tão a ficar enevoadas. Podemos vislumbrar momentos de escuridão e por vezes temos a sensação de que estamos gradualmente a recuar em direcção ao abismo. Penso que Sir Winston Churchill concordaria que no nosso tempo, nós as democracias podemos subir juntas e ficar nas planíciesse tivermos em conta e ouvirmos e debatermos com toda a população à medida que reformamos a nossa ordem internacional. Por outras palavras, se usarmos a democracia para preservar a democracia.

Obrigado.


António Barreto

António Barreto

Sociólogo, Instituto das Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Cronista do jornal Público

Palestra proferida a 8 de Janeiro de 2019 na Academia de Marinha, integrada na Sessão Solene de Abertura do ano académico de 2019.

A identidade nacional poderá definir-se de muitas maneiras. Não vou discutir agora, aqui, os con-ceitos. Apenas direi que conto, para a minha definição de identidade, com a natureza ou a geografia, o património e a história.

Nada de singular define uma identidade nacional. Não há uma característica que, por si só, resuma um país, uma nação, um povo ou um Estado. É no conjunto de vários traços e factores, que poderemos detectar uma particularidade, um conjunto que forma uma personalidade, que faz com que um país seja único. Portugal não escapa à regra.

 O Mar como património

A singularidade de Portugal (e de qualquer outro país) reside na combinação única da sua natureza com a geografia e a história. A geografia mais o património de um país é, em grande parte, a sua identidade. O património é o que não é a natureza. É toda a criação cultural, técnica, artística e ideológica de um povo.

Como tão bem afirmou Orlando Ribeiro, Portugal é Mediterrânico, Atlântico e de transição. E situa-se no extremo ocidente do continente europeu. Esta combinação dá-lhe um pouco de originalidade. Já a cultura material e artística oferece um paradoxo. Por um lado, é o que parece mais específico e original. Por outro, não é um factor diferenciador absoluto. Na verdade, essa cultura é tipicamente europeia e cristã. As grandes correntes patrimoniais euro-peias estão todas aqui presentes: românica, gótica, renascentista, maneirista, barroca e romântica. Nesse aspecto, novamente, a identidade portuguesa reside na maneira como se combinam estas correntes e estas influências.

No cruzamento da natureza e da geografia com a cultura material e artística, come-çamos a aproximar-nos da identidade do país, do que faz dele uma entidade singular. Acrescente-se a história, designadamente a história política. É esta que vai afirmar Portugal como país diferente, como entidade nacional especial.

Segundo alguns dos nossos melhores autores Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Leite de Vasconcelos, Orlando Ribeiro e José Mattoso, Portugal não nas-ce da unidade, mas sim do que é diverso. Também Alberto Sampaio, António José Saraiva e Eduardo Lourenço contribuíram de modo decisivo para concretizar e reflectir a identidade nacional, feita sempre a meio caminho entre a geografia, a história e o património. Em todos eles, está presente a ideia de que Portugal nasceu da diversidade. Por outras palavras, de uma pluralidade sem nome, emanou a unidade.

É o Estado, os seus monarcas, soldados, instituições e seguramente o seu povo que vão construir um país. É o Estado português que constrói a nação, não o contrário, como poderá ter acontecido noutros países. O Estado e a política, os militares, os artesãos, os camponeses, os sacerdotes e os monges fizeram um país e uma nação.

Portugal iniciou-se em terra, mas fez-se no mar. Portugal fez-se contra Espanha e através do mar. O vizinho, concorrente e rival, ajudou, por oposição, no carácter e na organização. Sem querer, obrigou os Portugueses a virar costas e ir para outros destinos. Para o mar e o mundo. A Histó-ria de Portugal é uma história de fixação da fronteira terrestre, de transferência de um povo para o litoral, de estabelecimento perto da costa e de navegação pelo mar.

Repito: Portugal fez-se contra Espanha. Isto é, no mar. Sem o mar, Portugal ficaria mais pobre e talvez espanhol. Foi o mar que obrigou a uma nova vocação, um novo destino. É bem provável que, sem o mar, Portugal não fosse hoje um país independente. No concerto das nações, Portugal valeu por ser rival de Espanha e por ajudar a dividir a Ibéria, mas também porque havia o Brasil e África, quer dizer, o mar.

O mar é uma das primeiras realida-des da identidade nacional. Tal como as montanhas, os rios, o clima e as planícies, são estas as condições naturais. Além das influências ibéricas, é o mar que traça o perfil de Portugal. Mas o mar foi sendo apropriado e utilizado. O mar acabou por ser património. O mar já não é apenas natureza. Tal como o montado alentejano ou os socalcos durienses, o mar passou a fazer parte da identidade do país.

O mar criou a pesca, a alimentação, a economia, a navegação e o transporte. Depois, criou os descobrimentos e as eco-nomias no mundo, as viagens, o comércio, a escravatura, a colonização e a emigração. Antes disso, tinha criado escolas e nave-gação, construção naval e manutenção, oceanografia e cosmografia, arte de viajar e navegar. Com toda esta carga, o mar deu ainda as várias economias da energia, da ciência e da investigação.

A ligação de Portugal ao mar nunca foi desmentida. É realçada por toda a gente que escreve sobre Portugal. É sublinhada pelos que reflectem sobre uma estratégia para Portugal. É valorizada pelos que dis-cutem o futuro de Portugal na Europa e no mundo. Não se conhecem contestações claras daquela ligação. Nem sequer o Velho do Restelo pode ser invocado: na verdade, ele vitupera a Glória, a Fama, a ambição e a cobiça, não o mar nem a navegação.

O mar é quase personagem de “Os Lusía-das”, escrito maior da identidade nacional, ou antes, escrito que funda a identidade nacional. Naquele poema, concebido para celebrar e narrar os feitos do mar e das descobertas, logo na segunda linha o mar é invocado: “... que da ocidental praia lusitana, por mares nunca dantes navegados...”. O mar passou a ser português, porque Camões assim o disse e estabeleceu. A identidade nacional não é um dado, não é um ponto de partida, não é uma condição. A identidade é uma construção permanente, móvel, humana e contraditória. A identidade pode até ser um mito que se transforma em verdade. Uma lenda em que se acredita. Camões não criou nem descobriu o mar, que já lá estava. Descobriu o Portugal do mar ou o mar de Portugal...

Séculos depois de “Os Lusíadas”, o hino nacional não deixaria de começar, significa-tivamente, pela conhecida linha “Heróis do mar...”. Mais tarde ainda, o mais importante poeta português contemporâneo, Fernando Pessoa, na “Mensagem”, não tem dúvidas: “Que o mar com fim será grego ou romano: O mar sem fim é português...”. E Unamuno terá dito que “foi o mar que fez Portugal”.

Além de real, o mar também é, para Portugal, mito e lenda. Quando esta se transforma em facto, “imprima-se a lenda”, diz-se em filme célebre. Quando o mito se transforma em facto, passa a ser verdade. A independência de Portugal é um mito tornado verdadeiro. É uma lenda feita verdade e realidade. Os mitos são assim. Existem. Uns totalmente falsos, outros apenas parcialmente. Uns incertos, outros metafóricos. Nunca inteiramente verdadeiros. Mas existem. Por isso são mitos. Por isso quase parecem inspirar os povos.

O mar é natureza. Por definição, não faz parte do património de um país, entendendo este como essencialmente cultural e técnico. O património é obra humana e resulta da história e da cultura. Mas há realidades naturais que se transformam, pela história, pela cultura e pela técnica, em obras de património. Assim é com o mar para os Portugueses. O mar da pesca, da marinha, das viagens, dos transportes, das praias, do desporto, dos recursos económicos, da fonte de energia, dos civis e dos militares é património. O mar do poema, da literatura, da mitologia, do sonho, dos descobrimentos, da expansão, do império, da Europa e da economia é património e identidade. Há um mar igual ao dos outros, há um mar que é português. Como há uma cultura igual à europeia e uma cultura portuguesa.

De todos os factores de afirmação na-cional, o mar poderá ser seguramente, na Europa, o mais importante e com vastas potencialidades, mas sobretudo o mais singular. A qualidade da mão-de-obra, certas produções industriais, o vinho e a cortiça, as praias e o clima, as tradições e a paisagem, são alguns dos factores de atracção do país, da sociedade e da economia. Mas todos eles parecem iguais aos de outros, não distinguem forçosamente um país e um contributo. Praias convidativas, excelentes vinhos, um clima extraordinário, bons sapatos e têxteis, automóveis baratos, uma mão-de-obra de qualidade e outros tantos trunfos fazem o nosso orgulho e chamam estrangeiros, mas tenhamos a certeza de que os outros países também os têm. Nada disso nos distingue, nada disso pode ser considerado como contributo insubstituí-vel. Não se trata aqui de nacionalismo ou de patriotismo económico, mas tão só do realismo necessário a sustentar a posição de Portugal no mundo.

Pergunte-se: o que tem Portugal de especial para dar ao mundo? Qual a força singular de Portugal para a Europa e para o mundo? A resposta, para alguns, não faz dúvidas: o mar, a plataforma continental, as actividades e os recursos marítimos, as potencialidades marítimas e geográficas e o valor estratégico de Portugal poderão constituir o mais forte e mais específico contributo de Portugal para a Europa. Desde que, evidentemente, estudado, in-vestigado, cuidado, aproveitado, explorado e protegido. Desde que considerado como prioridade nacional. Não uma prioridade entre dezenas, como é frequente entre nós, onde nunca faltam as prioridades destinadas a demonstrar que nada ficou esquecido, mas sim como uma das principais.

O conceito estratégico de defesa nacional, na sua última versão de 2013, é ambíguo nas definições e na determinação das prio-ridades. O Atlântico Norte e o Atlântico no seu todo são a segunda e a terceira áreas de importância estratégica para Portugal, sendo a Europa a primeira, no que é uma definição equívoca, sugerindo quase que a Europa, na sua versão continental, pode ser considerada sem o mar ou sem o Atlântico. O que me parece desajustado.

O conceito estratégico refere as priorida-des nacionais para o Estado, a segurança, a defesa e a estrutura militar. Em boa teoria, para toda a sociedade, mas até pelo seu título, parece apenas desejar focar a ver-tente de defesa nacional. Não é unânime, pois claro, nem recolhe consenso absoluto. Como nada na vida, muito menos na política nacional. Mas deveria ou poderia ser mais preciso. A definição dos objectivos nacionais permanentes e conjunturais, por exemplo, relega para posição subalterna o mar e a sua especificidade. Neste “Conceito”, o mar, em todas as suas acepções, aparece subalterno e referido em elencos de importância relativa.

Este conceito estratégico de defesa nacional não define com devido rigor as prioridades nacionais, nem sobretudo se preocupa em estabelecer os trunfos e as prioridades essenciais. Por outras palavras, o conceito estratégico define mal o contri-buto de Portugal para a União Europeia, a Europa e o mundo. O que tem Portugal realmente de estratégico? O que deve Portugal proteger e promover em simultâneo como seus trunfos e suas realidades originais? Para muitos, é indiscutível que se trata do mar, do Atlântico, da Zona exclusiva e da plataforma continental. E neste conjunto devemos incluir todas as actividades, recur-sos e potencialidades disponíveis, desde as económicas às biológicas, passando pelas energéticas, as educativas, as de circulação e transporte, as de controlo de navegação, as de construção e reparação naval, as de formação, as de investigação oceanográfica, as de lazer e desporto...

O património é obra humana e resulta da história e da cultura. Mas há realidades naturais que se transformam, pela história, pela cultura e pela técnica, em obras de património. Assim é com o mar para os Portugueses

Note-se que esta importância para Portugal também o seria para a Europa e sua União. É incompreensível, por exemplo, que Portugal, os seus aliados e a União Europeia não se tenham ainda empenhado em construir, gradualmente, em Portugal, muito especialmente nos Açores, um grande centro europeu ou instituto de investigações atlânticas, com áreas de interesse em todos os domínios, da oceanografia à astronáutica, da investigação à formação de cientistas, de técnicos e de marinheiros... Tem sido certamente por miopia portuguesa e dos nossos aliados que um tal centro não exis-te. Chegou mesmo a haver uma resolução aprovada por unanimidade na Assem-bleia da República, há várias décadas, no sentido de recomendar ao governo que se iniciassem esforços nesse sentido. Apesar da unanimidade, a resolução desapareceu nos esconsos legislativos. Os nossos aliados poderão ter a desculpa da concorrência, ou simplesmente do ciúme, o que é errado, mas é natural. A União Europeia e a NATO poderão ter a desculpa de não se quererem envolver em decisões controversas, o que é um desperdício, mas previsível. Já Portugal, ao subalternizar uma hipótese como esta, não tem desculpas. Será que as dezenas de “institutos europeus” de toda espécie, da universidade à tecnologia, da igualdade de género às telecomunicações, têm mais importância e mais relevo para o futuro dos Europeus do que o mar?

Em todo o seu esplendor, na história e no futuro, nas capacidades e potencialidades, o mar pode ser o mais importante e mais específico contributo português para a Eu-ropa. Para o que é preciso não só história e recordação, não só cultura e patrimó-nio, mas também ciência e investimento. Ciências exactas, oceanográficas, ciências de energia, da fauna e da flora, estudo e exploração da plataforma continental e das 200 milhas de zona exclusiva, escolas de investigação, observação oceanográfica e astrofísica, transportes e comunicação, pesca, conserva, actividade portuária e construção e reparação naval: o catálogo não tem fim.

Segundo os especialistas, nomeadamente Augusto Mateus e Ernâni Lopes, a fileira da economia do mar, ainda longe das suas enormes capacidades, empregará hoje mais de 100 000 pessoas e será responsável por qualquer coisa como 8 mil milhões de euros de produto. Trata-se, evidentemente, de um dos mais promissores sectores de actividade, produção, emprego e investigação da nossa economia. Com as vantagens, como ponto de partida, da tradição, do conhecimento adquirido, da posição geográfica e da espe-cificidade no conjunto das nações.

É tão evidente a importância vital do mar para o nosso país, tanto no passado como para o futuro, que é arrepiante ver como tantos o marginalizam e o consideram subalterno relativamente a outras possíveis prioridades nacionais. Deste ponto de vista, o mar e o património têm um destino comum: são os dois enjeitados da política nacional relativamente à presença de Portugal no mundo. De ambos se dizem maravilhas. A ambos se atribuem prioridades indiscutí-veis. Para ambos, só se conhecem elogios. Perante ambos, todos sonham e tremem de emoção.

Mas não é com emoções que se trata do futuro e se cuida da estratégia nacional. É com factos, planos, recursos, equipamento, estudo e investigação e formação de cientistas, técnicos e marinheiros. A Defesa nacional é um caso especial. Há décadas que vivemos ciclos sucessivos de emagrecimento, para além, dizem muitos, dos mínimos necessá-rios. Com este empobrecimento da defesa, veio também o da Marinha e respectivas ciências e escolas do mar. Em paralelo, separou-se a sociedade civil da defesa e dos compromissos militares, naquele que foi um dos grandes erros das últimas décadas. Nas condições em que foi feita, a supressão do serviço obrigatório militar ou civil não parece ter constituído um progresso real para o país e os seus cidadãos.

No caso do mar, perdeu-se em várias frentes. Na defesa e segurança. Na economia e na ciência. Na afirmação internacional e no contributo para a Europa.

Há quase quarenta anos, no momento de aprovação da Lei das 200 milhas marítimas, foi referido o conceito ou o velho princípio de que o mar é recurso e território, não apenas local de passagem e transporte. Foi então dito que a política marítima era um nosso contributo específico para a construção europeia. E ainda foi sublinhado “que não há só países grandes e pequenos: há países que aproveitam bem ou que aproveitam mal os seus recursos naturais, geográficos e humanos. Se não queremos ser o país pequeno da Europa, o que quer dizer pobre e dependente, já sabemos o caminho que temos a seguir: aproveitar ao máximo, de modo racional, sem depredações, o país que temos”! Palavras antigas que ainda hoje parecem válidas.

Até porque pode ser hoje ultrapassada a velha questão da oposição entre a Europa e o Atlântico. É verdade que pode haver uma tónica diferente em cada termo da alterna-tiva, mas também é verdade que a via mais fértil consiste na da ligação entre os dois, trazer o Atlântico para a Europa, estender a Europa para o Atlântico. Portugal pode desempenhar um papel de primeira impor-tância neste modelo de desenvolvimento. Por outras palavras, o mar português pode ser também o mar da Europa.

Tempo houve em que o mar e a Europa se excluíam. Um contra a outra! A Europa contra o mar! Esse dilema parece ultra-passado. Ou antes, há modos de evitar o dilema: de trazer o Atlântico para a Europa e levar a Europa para o Atlântico. O que quer dizer que o Atlântico não é fronteira de Portugal, nem da Europa: é uma extensão de Portugal e da Europa. Pode pensar-se que estamos a jogar com as palavras, mas sabemos que não: os dilemas e as escolhas estão aí para que saibamos optar.

A este propósito, vale a pena pergun-tar: para que servem a independência, o património e a autonomia? Em tempos de integração europeia, de globalização e de reforço das alianças internacionais, não estarão estes valores tradicionais a necessitar de revisão urgente? É provável que sim, que necessitem de revisão, como tudo na vida. Mas o essencial é justamente o oposto à afirmação hipotética inicial: é nesses tempos que a autonomia e o patri-mónio adquirem mais valor, não por razões meramente simbólicas, mas porque esses são valores que aumentam a personalidade e o carácter de um povo, muito especialmente as liberdades.

A integração internacional tende a homogeneizar, em processo que apaga a autonomia. O excesso de igualdade de instituições, de costumes e de comporta-mentos não é recomendável, é um traço dos regimes tendencialmente totalitários. Veja-se como, na história, os que aspiraram ao despotismo ou ao totalitarismo têm uma especial inclinação para a igualdade. A igualdade pressupõe um poder superior, que a impõe; sugere a eliminação do mérito e do esforço, que distinguem; e consagra um condicionamento das liberdades criativas que diversificam.

É por estas razões que cada país, mesmo em tempo de integração internacional, tem dever e interesse em preservar a autonomia e o património, pois são as suas liberdades que estão em causa.

Não quero referir governos em concreto, mas a verdade é que o mar, na sua mais vasta acepção, tem perdido importância em Portugal nas últimas décadas. Todos os estudiosos o dizem. Qualquer que seja o ponto de vista, em termos absolutos ou relativos, na economia, na marinha, na ciência, no transporte ou no investimento, o mar parece ter ficado para trás.

Em todos os capítulos, marinha armada e mercante, transportes de mercadorias, pesca, turismo e lazer, o mar tem perdido importância, tem declinado ou não se tem desenvolvido a par dos nossos parceiros. Esta evolução ainda está hoje por estudar. O que levou os Portugueses a escolher ou-tras vias, a desaproveitar a sua geografia, a perder a competição com outros países, a recorrer a outros mercados e serviços para as necessidades relacionadas com as actividades marítimas? Foram escolhas de-liberadas? De quem? Foram consequências imprevistas de outras opções? Quais? O continente europeu, a rodovia, a aviação, o comércio de importação, a falta de recursos científicos e técnicos, a contenção da Armada e da Marinha e a fractura entre interesses públicos e privados foram as causas desta espécie de declínio verificado ao longo das últimas décadas?

Terá havido erros na concepção das polí-ticas públicas? Estratégias que se revelaram desacertadas? É possível imaginar que o mar tenha sido de tal modo identificado com o anterior regime autoritário, com a guerra colonial e com a falta de liberdades que os responsáveis pelo novo regime terão evitado ou ignorado o tema? A discussão presta-se evidentemente a especulação. Mas parece razoável admitir que foram cometidos erros de avaliação.

É verdade que Portugal esteve empenhado em todas as negociações internacionais de desenvolvimento e regulação das activi-dades marítimas e piscatórias. Parece que Portugal acompanhou, de modo activo e com protagonismo, a evolução do Direito marítimo, a definição de zonas exclusivas e de plataformas continentais e a reorganização internacional das actividades marítimas. É mesmo referido, com frequência, que essa participação de Portugal teve momentos altos, com o empenho profissional de ofi-ciais, académicos, técnicos e especialistas de alto calibre. Mas fica-se com a impressão de que se tratou de uma participação de super-estrutura, isto é, sem acompanha-mento efectivo e prático na economia, nas instituições, nas empresas, nas escolas, na frota e nas actividades científicas à altura da participação internacional.

Estou convencido de que é possível recuperar caminho e tempo perdidos. Não voltando atrás, avançando. Com investimento e formação. Mas a minha convicção não faz ciência. É bem possível que estejamos à beira de uma perda histórica. Em tempos de refundação ou de reorganização da Europa, seria importante que as autoridades, assim como a sociedade civil e académica, aproveitassem esta oportunidade para rever o empenho essencial no futuro do país.


Manuel Braga da Cruz

Manuel Braga da Cruz

Professor Catedrático e antigo Reitor (2000-2012) da Universidade Católica Portuguesa. Membro do Conselho Editorial de Nova Cidadania

Palestra proferida a 11 de Dezembro de 2018 na Academia de Marinha, integrada na Sessão Solene de encerramento do ano académico de 2018.

Agradeço o convite tão honroso que me fizeram para usar da palavra nesta sessão de encerramento do ano académico desta tão prestigiada instituição que é a Academia de Marinha, versando o tema do “Mar na identidade nacional”.

A QUESTÃO DAS IDENTIDADES
A questão das identidades sociais, e com ela também das identidades políticas e culturais, está na ordem do dia, trazida pela globalização.

São muitos os que pensam que as iden-tidades nacionais estão destinados à erosão pelo desenvolvimento das identidades transnacionais e globais. Há quem pense que o cidadão do mundo do futuro, plane-tarizado, não mais se sentirá pertencente a qualquer nação. Autores há inclusivamente, como Ronald Inglehart1, que entendem que as identidades políticas se distribuem num contínuo, evoluindo com o desenvolvimento, de identidades paroquiais para identidades globais, como se as identidades locais fos-sem sintoma de subdesenvolvimento e as identidades globais fossem resultantes do desenvolvimento.

A União Europeia, através do seu Eu-robarómetro, procede regularmente à me-dição do sentido de pertença dos europeus, procurando perceber em que medida o processo de integração europeia vai fa-zendo emergir uma identidade europeia nas opiniões públicas da União, e em que medida ela vai superando, em termos de prioridade, as identidades nacionais. E há quem não hesite em promover identidades regionais, como forma de, simultaneamente, com a integração transnacional, ajudar a ultrapassar as identificações nacionais.

Outros há porém, que contestam a li-nearidade progressiva, proposta por Ronald Inglehart, defendendo, pelo contrário, que as diversas identidades são compatíveis e concêntricas, reforçando-se mutuamente, enquanto outros se encarregam de sublinhar a indispensabilidade das identidades básicas, a começar pela familiar, para a consolidação de identidades mais alargadas.

Aliás, assistimos hoje à emergência de um neo-regionalismo que, longe de constituir um sintoma de bairrismo atávico, e de ser por isso um regionalismo arcaico, resultante do subdesenvolvimento, é consequência da própria globalização, coexistindo com as maiores taxas de desenvolvimento. Esse processo cunhou-o Robertson como sendo de “glocalização”2. Como dizia Ulrich Beck “a globalização é uma localização global”3. Alguns vêem por isso, a identidade nacional como destinada a dar lugar, em termos de importância, às identidades sub e supra--nacionais, como o sugerem Daniel Bell4 e Jurgen Habermas5.

De igual modo, as identidades culturais estão hoje expostas ao chamado multi-culturalismo, entendido como política de promoção da diversidade étnica e cultural. Como lucidamente o denunciou Giovanni Sartori6 o multiculturalismo é o contrário do pluralismo, porque o pluralismo aponta para a assimilação, enquanto o multicultu-ralismo “faz prevalecer a separação sobre a integração”, levando à guetização cultural das sociedades. As identidades nacionais, como entidades culturais, estariam hoje a ser corroídas, pela aldeia global dos media de McLuhan7, mas também pelo neo-tribalismo, de que fala Zygmund Bauman8.

No entanto, a identidade dominante hoje, nos países europeus, continua a ser a identidade nacional. O sistema dominante de organização de Estados, a nível mundial, continua a ser o sistema de estados-nações. O princípio das nacionalidades, esboçado em Westefália, consagrado no Congresso de Viena, e generalizado após as duas grandes guerras mundiais, continua a revelar-se resistente à mundialização. A própria oposição, em muitos países do primeiro mundo, à imigração descontrolada, quando não instigada, é reveladora desse instinto preservador das identidades nacionais.

A questão de saber quem somos e para onde vamos – a identidade e o destino – admitindo mesmo a existência de destinos históricos das nações, à semelhança do que faziam os providencialistas teocráticos franceses do século XIX, como Joseph de Maistre9, emergiu com a modernidade, e com a atribuição da soberania às nações no dealbar do liberalismo.

Por isso, a procura das razões e das raí-zes da nossa identidade ocupou em toda a parte a preocupação do romantismo político liberal, indagando junto da história, das ruinas do nosso património abandonado, nas tradições etnológicas e nos cancioneiros populares, a alma dos povos. E pode e deve constituir, hoje mais do que ontem, motivo constante de investigação e de indagação, perante os desafios da globalização. Hoje, mais do que nunca, impõe-se o enquadra-mento mundial em identidades nacionais.

A IDENTIDADE NACIONAL
Saber quem somos, donde vimos e para onde vamos, é uma curiosidade intrínseca ao homem, uma aspiração tão antiga como a própria humanidade. A identidade, a origem e o destino existem nos povos como nas pessoas. No entanto a questão da iden-tidade nacional é recente. Outrora bastava saber de quem éramos súbditos. Saber que país e que povo somos, foi curiosidade que nasceu com a cidadania.

Muitos foram os intelectuais que se afadigaram nessa tarefa, nessa descoberta de nós, como comunidade, e da terra que nos habituámos a defender como nossa, a que chamamos Pátria, sobretudo com o dealbar da modernidade cívica.

A partir da história e da nossa forma-ção como país independente, soberano e livre, como o fizeram Herculano, com a sua História de Portugal, Oliveira Martins, com os seus muitos estudos de História pátria, Alberto Sampaio, com as vilas e as póvoas marítimas do Norte de Portugal ou, mais recentemente, José Matoso com a sua incursão sobre as origens de Portugal, a que chamou “identificação de um país”, ou ainda Martim de Albuquerque com os seus trabalhos sobre a consciência nacional portuguesa.

A partir da antropologia e da etnologia, como Teófilo Braga, que tentou compreender o Povo e a Terra portugueses, ou Leite de Vasconcelos, que inventariou a Etnologia Lusitana, sem esquecer Rocha Peixoto, ou ainda Jorge Dias, que tentou a especificação da nossa maneira de ser como cultura.

A partir da literatura e dos cancioneiros populares, como fizeram Almeida Garret, (Lopes Dias para a Beira Baixa), e mais recentemente António José Saraiva.

A partir da “filosofia da saudade”, como ensaiaram Pascoais, Leonardo Coimbra, Carolina Michaelis de Vasconcelos, e mais recentemente Eduardo Lourenço e António Quadros.

A partir da Arte, como o tentaram Rei-naldo dos Santos, Joaquim de Vasconcelos, o P. Aguiar Barreiros para o românico da Ribeira Lima, Artur Nobre de Gusmão, para a influência da arquitectura borgonhesa em Portugal, Santos Simões, a partir da azulejaria, da cerâmica, da ourivesaria.

A partir da Geografia, como o fez ma-gistralmente Orlando Ribeiro, com o seu fundamental Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, ou a partir da geoestratégica, como mais recentemente o ensaiaram Franco Nogueira, Adriano Moreira ou Jorge Borges de Macedo.

O mar é dimensão constitutiva da nossa identidade. Não um mar qualquer, mas o mar aberto que é o Atlântico, “O mar sem fim” que Fernando Pessoa disse ser português

A partir do Direito, onde o nome de Merêa sobressai, de par com seus discípu-los, herdeiros que foram de Gama Barros, que historiou a administração pública, ou mesmo de Teófilo Braga, que indagou sobre a origem dos forais de Portugal.

A partir da Sociologia, onde pontuam Léon Poinsart e Paul Descamps, conti-nuadores de Le Play, trazidos a Portugal, por el Rei D. Manual I e por Salazar, e que deixaram obra de referência sobre a vida social dos portugueses.

Não faltam tentativas de compreender Portugal e os portugueses, mas nenhuma outra conseguiu dizer melhor de nós, em tempos de crise de nacionalidade, que Os Lusíadas de Luis de Camões, não por acaso considerada como a obra que melhor identifica os portugueses.

UMA IDENTIDADE PORTUGUESA
Apesar da diversidade de que nos compomos como território e como povo, é possível falar de identidade cultural portuguesa, identificar traços unitários que nos aproximam e nos agregam do ponto de vista cultural. Somos, como é sabido, dos casos mais acabados de identificação de um Estado com uma nação, sem diversidade linguística, étnica ou religiosa de vulto, num dos mais antigos Estados do mundo e da Europa, com as mais antigas fronteiras inalteráveis, mau grado o problema de Olivença.

Geograficamente, como o demonstrou de forma magistral Orlando Ribeiro10, somos atravessados por uma divisão decisiva entre o clima atlântico e mediterrânico, que separa o norte pluvioso, de regadio, de produção agrícola intensiva e de grande divisão da propriedade rústica, mais comunitário, do sul de baixa pluviosidade, de sequeiro, de agricultura extensiva e de propriedade latifundiária, mais societário.

Esse dualismo fundamental, motivou a curiosidade de José Matoso11, no que à formação histórica do reino diz respeito, que procurou no “fio condutor da geo-grafia humana, apoiada e confirmada por dados da etnografia, da antropologia e da linguística”, tendo verificado a vigência de dois sistemas diferentes de organização social e económica, também coincidentes geografica e culturalmente: o senhorial, iniciado no norte atlântico, e o concelhio, no norte interior, que haveriam de se expandir, através de “contactos de aculturação entre o Norte cristão, rural, senhorial e “gótico” e o sul islamizado, urbano, concelhio e “romano”. Examinou seguidamente as ca-racterísticas da autoridade que englobou esses dois grandes sistemas, sobrepondo-se aos poderes locais senhoriais e concelhios. A comunidade nacional formou-se a partir das organizações locais, graças ao poder monárquico, aos processos de racionali-zação administrativa e de uniformização judicial, conclui Matoso, aproximando-se da concepção de Paulo Merea sobre a base não feudal mas concelhia da monarquia portuguesa, glosada por António Sardinha.

Para além da diversidade, é possível ensaiar a compreensão idealtipica de cul-turas nacionais e de identidades culturais nacionais, como fez, de modo sublime, entre nós, Jorge Dias, numa perspectiva antropológica, ao enumerar os traços fun-damentais da cultura portuguesa

“A Nação, conclui Matoso, resiste ao tempo e às vicissitudes que tem de ven-cer. Por isso não é fácil fazer-lhe perder a sua própria identidade”. As identidades nacionais não são, efectivamente, facil-mente apagáveis, como o demonstram as tentativas, mal sucedidas, de integração transnacional à força.

PAÍS LATINO E CATÓLICO
Quando os estrangeiros se referem a nós, e foram tantos os que o fizeram, com maior ou menor perspicácia de observação, é usual apontar-nos como um país latino e católico. Pertencemos pela língua que falamos, e pela cultura que dela dimana, ao conjunto de povos profundamente marcados pela ocu-pação romana, que prevalece claramente sobre outras ocupações da península, que também existiram e deixaram marcas. Com a língua, ficou a cultura e o direito, que moldaram o nosso futuro colectivo.

Claro que são perceptíveis traços de outras influências culturais, decorrentes de outras ocupações do território português, através dos séculos, mas nenhuma é tão marcante como a latina e romana.

Isso mesmo o demonstrou a escola histórico-jurídica de Coimbra, iniciada por Paulo Merêa, que se encarregou de libertar a história jurídica do dogma do germanismo, repondo a influência do romanismo.

Essa é pois a primeira dimensão da nossa identidade cultural: somos uma nação latina, nascida da romanização.

Em segundo lugar, pertencemos pela génese histórica, enquanto reino inde-pendente, à reconquista cristã, que mar-cou indelevelmente a nossa configuração colectiva. Devemos ao movimento ibérico da recuperação do território aos árabes, e às cruzadas, o impulso decisivo para as conquistas do território que configurou ao longo dos primeiros séculos o que hoje é Portugal. Foi como povo cristão que nos constituímos, que nos demos a conhecer ao mundo, que nos demarcámos perante outros, e que nos quisemos projectar além fronteiras. Como um dia disse Saramago, num colóquio para o qual o convidei, todos somos católicos em Portugal, do ponto de vista cultural.

E devemos à colonização cisterciense o sermos terra de Santa Maria. O nosso catolicismo mariano seria ainda forte-mente marcado pela contra-reforma, que nos configurou como catolicismo romano e universal. E é hoje, seguramente, muito mais um catolicismo que é referência cultural indelével do que pauta de comportamento moral, ou prática religiosa generalizada.

Mas, para além desta dupla definição que é dada de nós como latinos e católicos é inegável sermos também identificados como um país atlântico, configurado e marcado, histórica e geograficamente, pelo mar.

o-mar-na-identidade-nacional.png É esta dimensão marítima da nossa identidade cultural que me pediram para aqui vir abordar.

PAÍS ATLÂNTICO
O mar é dimensão constitutiva da nossa identidade. Não um mar qualquer, mas o mar aberto que é o Atlântico, “O mar sem fim” que Fernando Pessoa disse ser português, ou seja o mar fonte inesgotável de descoberta, porque desconhecido, mas também fonte interminável de recursos por desbravar.

A descoberta do mar pelos portugueses foi posterior à formação do país. Os por-tugueses viraram-se decisivamente para o mar, apenas depois da consolidação da independência de Castela, nos começos da dinastia de Aviz.

Nos primeiros tempos prevaleciam no Norte de Portugal a cultura da terra e as actividades agrícolas e, embora alguns lavra-dores se entregassem também à pesca, não há referências a actividades comerciais por mar de relevo. Algum transporte por barco se fazia, alguma navegação costeira tinha lugar, mas o mar estava ainda por desbravar como actividade económica e social.

Os nossos portos do Norte eram para os cruzados vindos de Inglaterra, bem como da Flandres e da França, entre a primeira e a segunda cruzada, – como sublinha Alberto Sampaio, nas suas Póvoas marítimas do Norte de Portugal12 - os últimos ancoradouros seguros, pois toda a restante costa peninsular para sul estava dominado por muçulmanos. Foram os cruzados que trouxeram os conhecimentos técnicos decisivos para incremento da navegação bem como informações sobre o comércio com os povos do norte da Europa. Foram esses mesmos cruzados que, idos por mar, ajudariam D. Afonso Henrique a libertar Lisboa do domínio árabe. Nessa altura não havia póvoas marítimas nas embocaduras dos rios.

Graças ao apoio dos cruzados os povos do norte iniciam os primeiros ensaios de navegação, lançando-se no comércio marí-timo internacional, de par com a exploração do sal e da pesca. A foz dos rios (do Minho até ao Douro), converteu-se em portos com actividade naval (desde Caminha até ao Porto).

Foi esta intensificação da actividade marítima do comércio e da pesca que con-tribuiu para a fixação de populações nas póvoas marítimas do norte de Portugal, e para o desenvolvimento das exportações por mar para o norte da Europa.

No tempo de D. Afonso III já havia uma esquadra em Lisboa. D. Dinis contrataria em Génova o almirante Pessanha para co-mandante das frotas em 1317, que chegou acompanhado de 20 genoveses, e foi pedir ao Papa parte dos rendimentos dos bens da Igreja para o desenvolvimento da armada.

Quando o Mestre de Aviz assedia o cerco de Lisboa, fá-lo com 17 naus e 17 galés feitas no Porto, e quando a expedição a Ceuta zarpou do Tejo, o Infante D. Hen-rique comandava a frota do Porto com 70 naus e barcos do norte, o que indicia uma já poderosa indústria naval.

O MAR COMO EPOPEIA
Estamos indissocialvelmente ligados ao mar pela nossa história. O que de mais distintivo fizemos, ao longo da história está ligado ao mar. Sem o mar não seríamos o que hoje somos, não nos teríamos afirmado na cena internacional como o fizemos.

Esta ligação ao mar existe pois desde os primórdios da formação de Portugal.

Uma vez consolidada a independência do reino em terra, foi no mar que procu-rámos a consolidação dela. País pequeno que éramos, não tínhamos maneira de ser grandes sem olhar para o mar. Tínhamos que afastar para longe as ameaças, que resultavam sobretudo daqueles a quem havíamos reconquistado o território. Mais: precisávamos de ir à fonte do seu poderio, e por isso demandámos a Índia, tentando tornear as rotas que dominavam. Daí a dimensão religiosa, e simultaneamente militar e económica da expansão maríti-ma. O que procurámos através dele foi o alargamento do espaço, mas também da cultura e da riqueza.

Disse-o Jaime Cortesão, na sua Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses13. A par da “teoria do segredo”, da primazia das razões económicas na causalidade da expansão, estão as determinantes geofísicas do país, que fazem dele parte da Cristandade acossada pelos turcos a Oriente, e leva os portugueses a combater o islamismo nesse Oriente, fonte da sua riqueza comercial.

“Os descobrimentos – segundo Maga-lhães Godinho – são as cruzadas da era de quatrocentos”, e “resultaram do complexo de causas económico-geográficas e científico--religiosas”.

Se não tivéssemos partido talvez nos tivéssemos perdido. Nesse sentido, foi o mar que permitiu que nos afirmássemos como éramos: um povo cristão, nascido da reconquista, apostado na preservação e dilatação da fé; um povo carecido de riqueza em que o solo da pátria não era fértil.

Foi sem dúvida a expansão que mais contribuiu para a identificação marítima dos portugueses. O contacto com outros povos e culturas ajudou a perceber muito generalizadamente o que nos distinguia dos outros. Foi através do mar que nos descobrimos distintos dos outros15

O mar fez de nós mercadores, muito mais que exploradores. Não nos fixávamos. Deixávamos feitorias, assinalávamos a pas-sagem com padrões. O que procurávamos e fizemos durante séculos foi o desenvol-vimento das trocas comerciais marítimas mundiais.

A nossa maneira de ser europeus é peculiar e diversa de outras. O nosso modo de ser europeus é atlântico.

Ao partirmos, não nos levámos apenas a nós, mas a todo um continente a que pertencíamos, Fomos por isso o rosto da Europa no mundo. Levámos a todos os cantos da terra não apenas a nossa singu-laridade mas a universalidade europeia, que enriquecemos com a universalidade de outras paragens.

É o apelo do mar que projecta Portugal no mundo, rosto latino, cristão e atlântico de uma Europa que descobre outros con-tinentes e rumos para lá chegar.

Graças ao mar, e à sua posição atlântica, Portugal tornou-se no maior interposto missionário da Europa. De Lisboa, partiam, para as mais variadas terras do Padroado Português, do oriente ao ocidente, até aos confins da África, missionários das mais variadas proveniências geográficas, o mais famoso mundialmente dos quais S. Fran-cisco Xavier. Tornámo-nos numa potência religiosa e comercial.

E ao mesmo tempo, é graças ao comércio marítimo possibilitado pelo movimento das descobertas e rotas marítimas, que Lisboa se converte num dos maiores interpostos comerciais da época, onde afluem comer-ciantes de toda a Europa.

Foi o mar e a sua posição atlântica que tornaram Portugal mundialmente conhecido, influente, decisivo no estabelecimento de relações internacionais.

Sem o mar, sem a expansão Portugal não seria aquilo em que se tornou. O mar constituiu o principal recurso económico, político e cultural de Portugal. Foi graças à nossa gesta marítima, que iniciámos na história a era gâmica, de que fala Toynbee.

Foi através do mar que, afinal, nos descobrimos, nos conhecemos e nos demos a conhecer, que nos cruzámos, a ponto de hoje sermos inseparáveis dos demais povos que falam connosco o português.

Não se pense que a expansão marítima portuguesa, tenha sido fruto do acaso e da improvisação, pois nunca teria sido possível sem um avançado conhecimento das técnicas de navegação e da cartografia. Na base dos empreendimentos marítimos portugueses esteve, de forma expressiva, o conhecimento científico. Sem a Escola de Sagres e a liderança do Infante D. Hen-rique, não teria sido possível tudo o que aconteceu. “D. Henrique pretendia devastar o mar desconhecido, e a ciência é a escola da expansão, cientificamente realizada”, no dizer de Vitorino de Magalhães Godinho16. Não por acaso temos ainda hoje na nossa bandeira – caso raro a nível mundial - um símbolo científico: a esfera armilar, como ainda recentemente chamou a atenção Henrique Leitão.

A IMPORTÂNCIA GEOESTRATÉGICA DO MAR PARA PORTUGAL
Ao mesmo tempo, o atlântico constituiu-se, do ponto de vista geoestratégico, na razão de ser da independência e da influência de Portugal no mundo.

Devemos a nossa independência e a nossa identidade ao mar. Não fora o mar aberto e infinito, e nunca teríamos acedido à independência, sem o apoio dos cruza-dos que vieram por mar. Não fora o mar e teríamos sido cercados inexoravelmente. O mar foi sempre o nosso espaço vital e a razão da nossa liberdade.

Não fora o mar e teríamos sido presa fácil de invasores. Foi o sermos para lá do Atlântico que permitiu que a nossa dinas-tia não tivesse sido extinta e o nosso Rei deposto, e o país esquartejado pelo tratado de Fontainebleau.

Tal como para outros povos, o mar sem-pre significou a liberdade, o atrevimento de descobrir, a iniciativa de partir e regressar.

Geoestrategicamente, somos pois um país atlântico. É o mar que nos permite deixar de ser periféricos.

“Vistos da Europa somos os últimos, vistos do Mar somos os primeiros”, dizia há muitos anos, em contexto diverso, adverso da integração europeia, Marcelo Caeta-no. A opção atlântica era erroneamente contraposta à opção europeia, em termos dilemáticos: ou a integração ultramarina ou a integração europeia. A opção pela integração europeia tem-nos afastado do mar, como se fosse incompatíveis a Europa e o Mar. Nunca fomos tão europeus como quando nos lançámos no mar, portadores de uma cultura que não era só nossa mas dos demais povos europeus.

Somos geograficamente o rosto da Europa, e fomo-lo historicamente ao dar a conhecer ao mundo os europeus.

O que faz a nossa excepcionalidade, entre os traços da nossa singularidade in-ternacional, tão sublinhada pelo P. Manuel Antunes17, é o sermos simultanemanete centrais e periféricos.

É o mar que nos põe na primeira linha da Europa, que permite que sejamos porta e ponte da Europa para os demais continentes.

A nossa vantagem na europa está pre-cisamente no atlântico. A nossa mais valia, no contexto europeu, é marítima. O que nos distingue na europa é a nossa posição de fronteira atlântica, pela qual a Europa se abre ao mar sem fim e, por ele, a outros continentes, povos e culturas. Temos do mar, e do que ele possibilita, uma experiência de que a Europa necessita.

Muitos demandam Portugal como plataforma de acesso à União Europeia. E não poucos europeus nos procuram como parceiros de penetração noutros espaços além da Europa, devido á nossa capacidade histórica de relacionamento com outros povos e culturas.

A nossa maneira de ser europeus é peculiar e diversa de outras. O nosso modo de ser europeus é atlântico. Os nossos interesses, no seio da União, são interesses atlânti-cos. Daí que não faça sentido contrapor o atlantismo ao europeísmo. Mas faz todo o sentido sermos atlânticos na Europa. É por isso que a saída da Grã-Bretanha da União Europeia nos deixa a nós, particularmente, desfavorecidos.

O MAR, FUTURO DE PORTUGAL
É o mar que não permite que sejamos um país pequeno. A plataforma continental marítima faz de nós um dos maiores países da Europa. Precisamos do mar para ser grandes de novo. Não é apenas uma ques-tão de fidelidade histórica ao passado, mas uma questão de futuro, de sobrevivência económica, de afirmação cultural e política internacional.

Os recursos do futuro estão no mar, por desbravar, nas suas profundidades. Com uma das maiores plataformas continentais, temos ao nosso alcance a possibilidade de nos tornarmos grandes de novo no contexto internacional. Não devemos é certo fazê-lo sozinhos, mas não podemos deixar de o fazer. Seremos duramente julgados pelas gerações vindouras, se não assumirmos as nossas responsabilidades

O mar é, além disso, decisivo para o futuro do mundo. O controlo do mar condicionará o controlo do mundo. Não podemos permitir que a Europa assista anémica e impotente à deslocação do eixo do mundo para o Pacífico, sob risco de perda de relevância internacional. Estamos a assistir à afirmação da centralidade do pacífico, colocando em risco a centralidade atlântica, que por séculos regeu o mundo.

O futuro da Europa joga-se no Atlân-tico, a norte e a sul. Desse ponto de vista, o futuro da Europa depende, e muito, do futuro de Portugal.

Portugal precisa do mar para ser. Portugal precisa da sua Marinha para continuar o que sempre foi: um país de marinheiros e uma Nação atlântica.


NOTAS

1 Ronald Inglehart, The silent revolution. Changing values and political styles among wertern publics, Princeton, New Jersey, Princeton university Press, 1977, pp.322 e ss.

2 Citado por Zygmund Bauman, Globalization. The human consequences, Cambridge-Oxford, Polity Press – Bla-ckwell Publishers, 1998

3 Ulrich Beck, O que é a globalização? Equívocos do globalismo. Respostas à globalização, S. Paulo, Paz e Terra, 1999

4 Daniel Bell, “Estão as nações preparadas para enfrentar problemas globais?”, in AIP-Informação, nº 2 (Fevereiro 1989) 7-13

5 Jurgen Habermas, Identidades nacionales y postnacionales, Madrid, Tecnos, 1994; e também “Nazione, Stato didiritto, Democrazia”, in Furio Cerutti (a cura di), Identità e Politica, Bari, Laterza, pp.187 e ss.

6 Giovanni Sartori, Pluralismo, multiculturalismo e estranhei. Saggio sulla società multietnica, Milano, RCS Libri, 2002, p.58

7 Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy, Toronto University Press, 1962

8 Zugmund Bauman, op.cit.

9 “Chaque nation, comme chaque individu, a reçu une mission qu’elle doit remplir”, Joseph de Maistre, Considera-tions sur la France, Bruxelles, Editions Complexes, 1988 (1797)

10 Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Lisboa, Sá da Costa, 1963 (1945)

11 José Matoso, Identificação de um país, Lisboa, Estampa,1986, 2ª ed., vol. II, p.215-216

12 Como sublinha nas suas “Póvoas marítimas do norte de Portugal” Alberto Sampaio, “apesar de ser um país marítimo a província, onde se formou a nação, a arte de navegar nunca adquiriu aqui, nos períodos históricos precedentes, uma forte individualidade, nem jamais conseguiu fortalecer-se de modo que progredisse sempre. Lutando com vantagem contra quaisquer adversidades. Da multiplicidade de influências, porém, revelada na terminologia náutica, ficaram noções confusas e desconexas á espera que condições imperiosas obrigassem os naturais a sistematizá-las, se é que para o seu completo desenvolvimento não fosse ainda essencial a importação dos mestres de Génova por Gelmirez na Galiza e que nos portos portugueses surgissem as velas dos cruzados” (Alberto Sampaio, Estudos Históricos e Económicos, Porto, Chadron, 1923, p.290).Não era alheia a esta situação a intensificação da pirataria sarracena que assolava as terras próximas do portos, desde Coimbra até aos Pirinéus, que praticava apenas uma “cabotagem de salteadores”, uma “navegação rudimentar, incapaz de subministrar conhecimentos técnico proveitosos à gente da terra”. Foi para defender as populações dessa pirataria que o Arcebispo de Santiago mandou vir os mestres genoveses, para conduzir galeras de defesa e ataque. Só no tempo de D. Teresa começaram as construções navais, para permitir uma navegação costeira com segu-rança, o que constitui, segundo Herculano o primeiro ensaio de uma marinha nacional.

13 Jaime Cortesão, Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Seara Nova, 1940

14 Vitorino de Magalhães Godinho, A Expansão quatrocentista portuguesa. Problemas das origens e da linha de evolução, Lisboa, 1945, ECE, pp.11 e 13

15 Reconheceu-o José Matoso, op.cit., I vol., p.18

16 Op. cit., p.9

17 Manuel Antunes, Repensar Portugal, Lisboa, Multinova,1979

 


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