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O Mar na identidade nacional

Manuel Braga da Cruz

Manuel Braga da Cruz

Professor Catedrático e antigo Reitor (2000-2012) da Universidade Católica Portuguesa. Membro do Conselho Editorial de Nova Cidadania

Palestra proferida a 11 de Dezembro de 2018 na Academia de Marinha, integrada na Sessão Solene de encerramento do ano académico de 2018.

Agradeço o convite tão honroso que me fizeram para usar da palavra nesta sessão de encerramento do ano académico desta tão prestigiada instituição que é a Academia de Marinha, versando o tema do “Mar na identidade nacional”.

A QUESTÃO DAS IDENTIDADES
A questão das identidades sociais, e com ela também das identidades políticas e culturais, está na ordem do dia, trazida pela globalização.

São muitos os que pensam que as iden-tidades nacionais estão destinados à erosão pelo desenvolvimento das identidades transnacionais e globais. Há quem pense que o cidadão do mundo do futuro, plane-tarizado, não mais se sentirá pertencente a qualquer nação. Autores há inclusivamente, como Ronald Inglehart1, que entendem que as identidades políticas se distribuem num contínuo, evoluindo com o desenvolvimento, de identidades paroquiais para identidades globais, como se as identidades locais fos-sem sintoma de subdesenvolvimento e as identidades globais fossem resultantes do desenvolvimento.

A União Europeia, através do seu Eu-robarómetro, procede regularmente à me-dição do sentido de pertença dos europeus, procurando perceber em que medida o processo de integração europeia vai fa-zendo emergir uma identidade europeia nas opiniões públicas da União, e em que medida ela vai superando, em termos de prioridade, as identidades nacionais. E há quem não hesite em promover identidades regionais, como forma de, simultaneamente, com a integração transnacional, ajudar a ultrapassar as identificações nacionais.

Outros há porém, que contestam a li-nearidade progressiva, proposta por Ronald Inglehart, defendendo, pelo contrário, que as diversas identidades são compatíveis e concêntricas, reforçando-se mutuamente, enquanto outros se encarregam de sublinhar a indispensabilidade das identidades básicas, a começar pela familiar, para a consolidação de identidades mais alargadas.

Aliás, assistimos hoje à emergência de um neo-regionalismo que, longe de constituir um sintoma de bairrismo atávico, e de ser por isso um regionalismo arcaico, resultante do subdesenvolvimento, é consequência da própria globalização, coexistindo com as maiores taxas de desenvolvimento. Esse processo cunhou-o Robertson como sendo de “glocalização”2. Como dizia Ulrich Beck “a globalização é uma localização global”3. Alguns vêem por isso, a identidade nacional como destinada a dar lugar, em termos de importância, às identidades sub e supra--nacionais, como o sugerem Daniel Bell4 e Jurgen Habermas5.

De igual modo, as identidades culturais estão hoje expostas ao chamado multi-culturalismo, entendido como política de promoção da diversidade étnica e cultural. Como lucidamente o denunciou Giovanni Sartori6 o multiculturalismo é o contrário do pluralismo, porque o pluralismo aponta para a assimilação, enquanto o multicultu-ralismo “faz prevalecer a separação sobre a integração”, levando à guetização cultural das sociedades. As identidades nacionais, como entidades culturais, estariam hoje a ser corroídas, pela aldeia global dos media de McLuhan7, mas também pelo neo-tribalismo, de que fala Zygmund Bauman8.

No entanto, a identidade dominante hoje, nos países europeus, continua a ser a identidade nacional. O sistema dominante de organização de Estados, a nível mundial, continua a ser o sistema de estados-nações. O princípio das nacionalidades, esboçado em Westefália, consagrado no Congresso de Viena, e generalizado após as duas grandes guerras mundiais, continua a revelar-se resistente à mundialização. A própria oposição, em muitos países do primeiro mundo, à imigração descontrolada, quando não instigada, é reveladora desse instinto preservador das identidades nacionais.

A questão de saber quem somos e para onde vamos – a identidade e o destino – admitindo mesmo a existência de destinos históricos das nações, à semelhança do que faziam os providencialistas teocráticos franceses do século XIX, como Joseph de Maistre9, emergiu com a modernidade, e com a atribuição da soberania às nações no dealbar do liberalismo.

Por isso, a procura das razões e das raí-zes da nossa identidade ocupou em toda a parte a preocupação do romantismo político liberal, indagando junto da história, das ruinas do nosso património abandonado, nas tradições etnológicas e nos cancioneiros populares, a alma dos povos. E pode e deve constituir, hoje mais do que ontem, motivo constante de investigação e de indagação, perante os desafios da globalização. Hoje, mais do que nunca, impõe-se o enquadra-mento mundial em identidades nacionais.

A IDENTIDADE NACIONAL
Saber quem somos, donde vimos e para onde vamos, é uma curiosidade intrínseca ao homem, uma aspiração tão antiga como a própria humanidade. A identidade, a origem e o destino existem nos povos como nas pessoas. No entanto a questão da iden-tidade nacional é recente. Outrora bastava saber de quem éramos súbditos. Saber que país e que povo somos, foi curiosidade que nasceu com a cidadania.

Muitos foram os intelectuais que se afadigaram nessa tarefa, nessa descoberta de nós, como comunidade, e da terra que nos habituámos a defender como nossa, a que chamamos Pátria, sobretudo com o dealbar da modernidade cívica.

A partir da história e da nossa forma-ção como país independente, soberano e livre, como o fizeram Herculano, com a sua História de Portugal, Oliveira Martins, com os seus muitos estudos de História pátria, Alberto Sampaio, com as vilas e as póvoas marítimas do Norte de Portugal ou, mais recentemente, José Matoso com a sua incursão sobre as origens de Portugal, a que chamou “identificação de um país”, ou ainda Martim de Albuquerque com os seus trabalhos sobre a consciência nacional portuguesa.

A partir da antropologia e da etnologia, como Teófilo Braga, que tentou compreender o Povo e a Terra portugueses, ou Leite de Vasconcelos, que inventariou a Etnologia Lusitana, sem esquecer Rocha Peixoto, ou ainda Jorge Dias, que tentou a especificação da nossa maneira de ser como cultura.

A partir da literatura e dos cancioneiros populares, como fizeram Almeida Garret, (Lopes Dias para a Beira Baixa), e mais recentemente António José Saraiva.

A partir da “filosofia da saudade”, como ensaiaram Pascoais, Leonardo Coimbra, Carolina Michaelis de Vasconcelos, e mais recentemente Eduardo Lourenço e António Quadros.

A partir da Arte, como o tentaram Rei-naldo dos Santos, Joaquim de Vasconcelos, o P. Aguiar Barreiros para o românico da Ribeira Lima, Artur Nobre de Gusmão, para a influência da arquitectura borgonhesa em Portugal, Santos Simões, a partir da azulejaria, da cerâmica, da ourivesaria.

A partir da Geografia, como o fez ma-gistralmente Orlando Ribeiro, com o seu fundamental Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, ou a partir da geoestratégica, como mais recentemente o ensaiaram Franco Nogueira, Adriano Moreira ou Jorge Borges de Macedo.

O mar é dimensão constitutiva da nossa identidade. Não um mar qualquer, mas o mar aberto que é o Atlântico, “O mar sem fim” que Fernando Pessoa disse ser português

A partir do Direito, onde o nome de Merêa sobressai, de par com seus discípu-los, herdeiros que foram de Gama Barros, que historiou a administração pública, ou mesmo de Teófilo Braga, que indagou sobre a origem dos forais de Portugal.

A partir da Sociologia, onde pontuam Léon Poinsart e Paul Descamps, conti-nuadores de Le Play, trazidos a Portugal, por el Rei D. Manual I e por Salazar, e que deixaram obra de referência sobre a vida social dos portugueses.

Não faltam tentativas de compreender Portugal e os portugueses, mas nenhuma outra conseguiu dizer melhor de nós, em tempos de crise de nacionalidade, que Os Lusíadas de Luis de Camões, não por acaso considerada como a obra que melhor identifica os portugueses.

UMA IDENTIDADE PORTUGUESA
Apesar da diversidade de que nos compomos como território e como povo, é possível falar de identidade cultural portuguesa, identificar traços unitários que nos aproximam e nos agregam do ponto de vista cultural. Somos, como é sabido, dos casos mais acabados de identificação de um Estado com uma nação, sem diversidade linguística, étnica ou religiosa de vulto, num dos mais antigos Estados do mundo e da Europa, com as mais antigas fronteiras inalteráveis, mau grado o problema de Olivença.

Geograficamente, como o demonstrou de forma magistral Orlando Ribeiro10, somos atravessados por uma divisão decisiva entre o clima atlântico e mediterrânico, que separa o norte pluvioso, de regadio, de produção agrícola intensiva e de grande divisão da propriedade rústica, mais comunitário, do sul de baixa pluviosidade, de sequeiro, de agricultura extensiva e de propriedade latifundiária, mais societário.

Esse dualismo fundamental, motivou a curiosidade de José Matoso11, no que à formação histórica do reino diz respeito, que procurou no “fio condutor da geo-grafia humana, apoiada e confirmada por dados da etnografia, da antropologia e da linguística”, tendo verificado a vigência de dois sistemas diferentes de organização social e económica, também coincidentes geografica e culturalmente: o senhorial, iniciado no norte atlântico, e o concelhio, no norte interior, que haveriam de se expandir, através de “contactos de aculturação entre o Norte cristão, rural, senhorial e “gótico” e o sul islamizado, urbano, concelhio e “romano”. Examinou seguidamente as ca-racterísticas da autoridade que englobou esses dois grandes sistemas, sobrepondo-se aos poderes locais senhoriais e concelhios. A comunidade nacional formou-se a partir das organizações locais, graças ao poder monárquico, aos processos de racionali-zação administrativa e de uniformização judicial, conclui Matoso, aproximando-se da concepção de Paulo Merea sobre a base não feudal mas concelhia da monarquia portuguesa, glosada por António Sardinha.

Para além da diversidade, é possível ensaiar a compreensão idealtipica de cul-turas nacionais e de identidades culturais nacionais, como fez, de modo sublime, entre nós, Jorge Dias, numa perspectiva antropológica, ao enumerar os traços fun-damentais da cultura portuguesa

“A Nação, conclui Matoso, resiste ao tempo e às vicissitudes que tem de ven-cer. Por isso não é fácil fazer-lhe perder a sua própria identidade”. As identidades nacionais não são, efectivamente, facil-mente apagáveis, como o demonstram as tentativas, mal sucedidas, de integração transnacional à força.

PAÍS LATINO E CATÓLICO
Quando os estrangeiros se referem a nós, e foram tantos os que o fizeram, com maior ou menor perspicácia de observação, é usual apontar-nos como um país latino e católico. Pertencemos pela língua que falamos, e pela cultura que dela dimana, ao conjunto de povos profundamente marcados pela ocu-pação romana, que prevalece claramente sobre outras ocupações da península, que também existiram e deixaram marcas. Com a língua, ficou a cultura e o direito, que moldaram o nosso futuro colectivo.

Claro que são perceptíveis traços de outras influências culturais, decorrentes de outras ocupações do território português, através dos séculos, mas nenhuma é tão marcante como a latina e romana.

Isso mesmo o demonstrou a escola histórico-jurídica de Coimbra, iniciada por Paulo Merêa, que se encarregou de libertar a história jurídica do dogma do germanismo, repondo a influência do romanismo.

Essa é pois a primeira dimensão da nossa identidade cultural: somos uma nação latina, nascida da romanização.

Em segundo lugar, pertencemos pela génese histórica, enquanto reino inde-pendente, à reconquista cristã, que mar-cou indelevelmente a nossa configuração colectiva. Devemos ao movimento ibérico da recuperação do território aos árabes, e às cruzadas, o impulso decisivo para as conquistas do território que configurou ao longo dos primeiros séculos o que hoje é Portugal. Foi como povo cristão que nos constituímos, que nos demos a conhecer ao mundo, que nos demarcámos perante outros, e que nos quisemos projectar além fronteiras. Como um dia disse Saramago, num colóquio para o qual o convidei, todos somos católicos em Portugal, do ponto de vista cultural.

E devemos à colonização cisterciense o sermos terra de Santa Maria. O nosso catolicismo mariano seria ainda forte-mente marcado pela contra-reforma, que nos configurou como catolicismo romano e universal. E é hoje, seguramente, muito mais um catolicismo que é referência cultural indelével do que pauta de comportamento moral, ou prática religiosa generalizada.

Mas, para além desta dupla definição que é dada de nós como latinos e católicos é inegável sermos também identificados como um país atlântico, configurado e marcado, histórica e geograficamente, pelo mar.

o-mar-na-identidade-nacional.png É esta dimensão marítima da nossa identidade cultural que me pediram para aqui vir abordar.

PAÍS ATLÂNTICO
O mar é dimensão constitutiva da nossa identidade. Não um mar qualquer, mas o mar aberto que é o Atlântico, “O mar sem fim” que Fernando Pessoa disse ser português, ou seja o mar fonte inesgotável de descoberta, porque desconhecido, mas também fonte interminável de recursos por desbravar.

A descoberta do mar pelos portugueses foi posterior à formação do país. Os por-tugueses viraram-se decisivamente para o mar, apenas depois da consolidação da independência de Castela, nos começos da dinastia de Aviz.

Nos primeiros tempos prevaleciam no Norte de Portugal a cultura da terra e as actividades agrícolas e, embora alguns lavra-dores se entregassem também à pesca, não há referências a actividades comerciais por mar de relevo. Algum transporte por barco se fazia, alguma navegação costeira tinha lugar, mas o mar estava ainda por desbravar como actividade económica e social.

Os nossos portos do Norte eram para os cruzados vindos de Inglaterra, bem como da Flandres e da França, entre a primeira e a segunda cruzada, – como sublinha Alberto Sampaio, nas suas Póvoas marítimas do Norte de Portugal12 - os últimos ancoradouros seguros, pois toda a restante costa peninsular para sul estava dominado por muçulmanos. Foram os cruzados que trouxeram os conhecimentos técnicos decisivos para incremento da navegação bem como informações sobre o comércio com os povos do norte da Europa. Foram esses mesmos cruzados que, idos por mar, ajudariam D. Afonso Henrique a libertar Lisboa do domínio árabe. Nessa altura não havia póvoas marítimas nas embocaduras dos rios.

Graças ao apoio dos cruzados os povos do norte iniciam os primeiros ensaios de navegação, lançando-se no comércio marí-timo internacional, de par com a exploração do sal e da pesca. A foz dos rios (do Minho até ao Douro), converteu-se em portos com actividade naval (desde Caminha até ao Porto).

Foi esta intensificação da actividade marítima do comércio e da pesca que con-tribuiu para a fixação de populações nas póvoas marítimas do norte de Portugal, e para o desenvolvimento das exportações por mar para o norte da Europa.

No tempo de D. Afonso III já havia uma esquadra em Lisboa. D. Dinis contrataria em Génova o almirante Pessanha para co-mandante das frotas em 1317, que chegou acompanhado de 20 genoveses, e foi pedir ao Papa parte dos rendimentos dos bens da Igreja para o desenvolvimento da armada.

Quando o Mestre de Aviz assedia o cerco de Lisboa, fá-lo com 17 naus e 17 galés feitas no Porto, e quando a expedição a Ceuta zarpou do Tejo, o Infante D. Hen-rique comandava a frota do Porto com 70 naus e barcos do norte, o que indicia uma já poderosa indústria naval.

O MAR COMO EPOPEIA
Estamos indissocialvelmente ligados ao mar pela nossa história. O que de mais distintivo fizemos, ao longo da história está ligado ao mar. Sem o mar não seríamos o que hoje somos, não nos teríamos afirmado na cena internacional como o fizemos.

Esta ligação ao mar existe pois desde os primórdios da formação de Portugal.

Uma vez consolidada a independência do reino em terra, foi no mar que procu-rámos a consolidação dela. País pequeno que éramos, não tínhamos maneira de ser grandes sem olhar para o mar. Tínhamos que afastar para longe as ameaças, que resultavam sobretudo daqueles a quem havíamos reconquistado o território. Mais: precisávamos de ir à fonte do seu poderio, e por isso demandámos a Índia, tentando tornear as rotas que dominavam. Daí a dimensão religiosa, e simultaneamente militar e económica da expansão maríti-ma. O que procurámos através dele foi o alargamento do espaço, mas também da cultura e da riqueza.

Disse-o Jaime Cortesão, na sua Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses13. A par da “teoria do segredo”, da primazia das razões económicas na causalidade da expansão, estão as determinantes geofísicas do país, que fazem dele parte da Cristandade acossada pelos turcos a Oriente, e leva os portugueses a combater o islamismo nesse Oriente, fonte da sua riqueza comercial.

“Os descobrimentos – segundo Maga-lhães Godinho – são as cruzadas da era de quatrocentos”, e “resultaram do complexo de causas económico-geográficas e científico--religiosas”.

Se não tivéssemos partido talvez nos tivéssemos perdido. Nesse sentido, foi o mar que permitiu que nos afirmássemos como éramos: um povo cristão, nascido da reconquista, apostado na preservação e dilatação da fé; um povo carecido de riqueza em que o solo da pátria não era fértil.

Foi sem dúvida a expansão que mais contribuiu para a identificação marítima dos portugueses. O contacto com outros povos e culturas ajudou a perceber muito generalizadamente o que nos distinguia dos outros. Foi através do mar que nos descobrimos distintos dos outros15

O mar fez de nós mercadores, muito mais que exploradores. Não nos fixávamos. Deixávamos feitorias, assinalávamos a pas-sagem com padrões. O que procurávamos e fizemos durante séculos foi o desenvol-vimento das trocas comerciais marítimas mundiais.

A nossa maneira de ser europeus é peculiar e diversa de outras. O nosso modo de ser europeus é atlântico.

Ao partirmos, não nos levámos apenas a nós, mas a todo um continente a que pertencíamos, Fomos por isso o rosto da Europa no mundo. Levámos a todos os cantos da terra não apenas a nossa singu-laridade mas a universalidade europeia, que enriquecemos com a universalidade de outras paragens.

É o apelo do mar que projecta Portugal no mundo, rosto latino, cristão e atlântico de uma Europa que descobre outros con-tinentes e rumos para lá chegar.

Graças ao mar, e à sua posição atlântica, Portugal tornou-se no maior interposto missionário da Europa. De Lisboa, partiam, para as mais variadas terras do Padroado Português, do oriente ao ocidente, até aos confins da África, missionários das mais variadas proveniências geográficas, o mais famoso mundialmente dos quais S. Fran-cisco Xavier. Tornámo-nos numa potência religiosa e comercial.

E ao mesmo tempo, é graças ao comércio marítimo possibilitado pelo movimento das descobertas e rotas marítimas, que Lisboa se converte num dos maiores interpostos comerciais da época, onde afluem comer-ciantes de toda a Europa.

Foi o mar e a sua posição atlântica que tornaram Portugal mundialmente conhecido, influente, decisivo no estabelecimento de relações internacionais.

Sem o mar, sem a expansão Portugal não seria aquilo em que se tornou. O mar constituiu o principal recurso económico, político e cultural de Portugal. Foi graças à nossa gesta marítima, que iniciámos na história a era gâmica, de que fala Toynbee.

Foi através do mar que, afinal, nos descobrimos, nos conhecemos e nos demos a conhecer, que nos cruzámos, a ponto de hoje sermos inseparáveis dos demais povos que falam connosco o português.

Não se pense que a expansão marítima portuguesa, tenha sido fruto do acaso e da improvisação, pois nunca teria sido possível sem um avançado conhecimento das técnicas de navegação e da cartografia. Na base dos empreendimentos marítimos portugueses esteve, de forma expressiva, o conhecimento científico. Sem a Escola de Sagres e a liderança do Infante D. Hen-rique, não teria sido possível tudo o que aconteceu. “D. Henrique pretendia devastar o mar desconhecido, e a ciência é a escola da expansão, cientificamente realizada”, no dizer de Vitorino de Magalhães Godinho16. Não por acaso temos ainda hoje na nossa bandeira – caso raro a nível mundial - um símbolo científico: a esfera armilar, como ainda recentemente chamou a atenção Henrique Leitão.

A IMPORTÂNCIA GEOESTRATÉGICA DO MAR PARA PORTUGAL
Ao mesmo tempo, o atlântico constituiu-se, do ponto de vista geoestratégico, na razão de ser da independência e da influência de Portugal no mundo.

Devemos a nossa independência e a nossa identidade ao mar. Não fora o mar aberto e infinito, e nunca teríamos acedido à independência, sem o apoio dos cruza-dos que vieram por mar. Não fora o mar e teríamos sido cercados inexoravelmente. O mar foi sempre o nosso espaço vital e a razão da nossa liberdade.

Não fora o mar e teríamos sido presa fácil de invasores. Foi o sermos para lá do Atlântico que permitiu que a nossa dinas-tia não tivesse sido extinta e o nosso Rei deposto, e o país esquartejado pelo tratado de Fontainebleau.

Tal como para outros povos, o mar sem-pre significou a liberdade, o atrevimento de descobrir, a iniciativa de partir e regressar.

Geoestrategicamente, somos pois um país atlântico. É o mar que nos permite deixar de ser periféricos.

“Vistos da Europa somos os últimos, vistos do Mar somos os primeiros”, dizia há muitos anos, em contexto diverso, adverso da integração europeia, Marcelo Caeta-no. A opção atlântica era erroneamente contraposta à opção europeia, em termos dilemáticos: ou a integração ultramarina ou a integração europeia. A opção pela integração europeia tem-nos afastado do mar, como se fosse incompatíveis a Europa e o Mar. Nunca fomos tão europeus como quando nos lançámos no mar, portadores de uma cultura que não era só nossa mas dos demais povos europeus.

Somos geograficamente o rosto da Europa, e fomo-lo historicamente ao dar a conhecer ao mundo os europeus.

O que faz a nossa excepcionalidade, entre os traços da nossa singularidade in-ternacional, tão sublinhada pelo P. Manuel Antunes17, é o sermos simultanemanete centrais e periféricos.

É o mar que nos põe na primeira linha da Europa, que permite que sejamos porta e ponte da Europa para os demais continentes.

A nossa vantagem na europa está pre-cisamente no atlântico. A nossa mais valia, no contexto europeu, é marítima. O que nos distingue na europa é a nossa posição de fronteira atlântica, pela qual a Europa se abre ao mar sem fim e, por ele, a outros continentes, povos e culturas. Temos do mar, e do que ele possibilita, uma experiência de que a Europa necessita.

Muitos demandam Portugal como plataforma de acesso à União Europeia. E não poucos europeus nos procuram como parceiros de penetração noutros espaços além da Europa, devido á nossa capacidade histórica de relacionamento com outros povos e culturas.

A nossa maneira de ser europeus é peculiar e diversa de outras. O nosso modo de ser europeus é atlântico. Os nossos interesses, no seio da União, são interesses atlânti-cos. Daí que não faça sentido contrapor o atlantismo ao europeísmo. Mas faz todo o sentido sermos atlânticos na Europa. É por isso que a saída da Grã-Bretanha da União Europeia nos deixa a nós, particularmente, desfavorecidos.

O MAR, FUTURO DE PORTUGAL
É o mar que não permite que sejamos um país pequeno. A plataforma continental marítima faz de nós um dos maiores países da Europa. Precisamos do mar para ser grandes de novo. Não é apenas uma ques-tão de fidelidade histórica ao passado, mas uma questão de futuro, de sobrevivência económica, de afirmação cultural e política internacional.

Os recursos do futuro estão no mar, por desbravar, nas suas profundidades. Com uma das maiores plataformas continentais, temos ao nosso alcance a possibilidade de nos tornarmos grandes de novo no contexto internacional. Não devemos é certo fazê-lo sozinhos, mas não podemos deixar de o fazer. Seremos duramente julgados pelas gerações vindouras, se não assumirmos as nossas responsabilidades

O mar é, além disso, decisivo para o futuro do mundo. O controlo do mar condicionará o controlo do mundo. Não podemos permitir que a Europa assista anémica e impotente à deslocação do eixo do mundo para o Pacífico, sob risco de perda de relevância internacional. Estamos a assistir à afirmação da centralidade do pacífico, colocando em risco a centralidade atlântica, que por séculos regeu o mundo.

O futuro da Europa joga-se no Atlân-tico, a norte e a sul. Desse ponto de vista, o futuro da Europa depende, e muito, do futuro de Portugal.

Portugal precisa do mar para ser. Portugal precisa da sua Marinha para continuar o que sempre foi: um país de marinheiros e uma Nação atlântica.


NOTAS

1 Ronald Inglehart, The silent revolution. Changing values and political styles among wertern publics, Princeton, New Jersey, Princeton university Press, 1977, pp.322 e ss.

2 Citado por Zygmund Bauman, Globalization. The human consequences, Cambridge-Oxford, Polity Press – Bla-ckwell Publishers, 1998

3 Ulrich Beck, O que é a globalização? Equívocos do globalismo. Respostas à globalização, S. Paulo, Paz e Terra, 1999

4 Daniel Bell, “Estão as nações preparadas para enfrentar problemas globais?”, in AIP-Informação, nº 2 (Fevereiro 1989) 7-13

5 Jurgen Habermas, Identidades nacionales y postnacionales, Madrid, Tecnos, 1994; e também “Nazione, Stato didiritto, Democrazia”, in Furio Cerutti (a cura di), Identità e Politica, Bari, Laterza, pp.187 e ss.

6 Giovanni Sartori, Pluralismo, multiculturalismo e estranhei. Saggio sulla società multietnica, Milano, RCS Libri, 2002, p.58

7 Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy, Toronto University Press, 1962

8 Zugmund Bauman, op.cit.

9 “Chaque nation, comme chaque individu, a reçu une mission qu’elle doit remplir”, Joseph de Maistre, Considera-tions sur la France, Bruxelles, Editions Complexes, 1988 (1797)

10 Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, Lisboa, Sá da Costa, 1963 (1945)

11 José Matoso, Identificação de um país, Lisboa, Estampa,1986, 2ª ed., vol. II, p.215-216

12 Como sublinha nas suas “Póvoas marítimas do norte de Portugal” Alberto Sampaio, “apesar de ser um país marítimo a província, onde se formou a nação, a arte de navegar nunca adquiriu aqui, nos períodos históricos precedentes, uma forte individualidade, nem jamais conseguiu fortalecer-se de modo que progredisse sempre. Lutando com vantagem contra quaisquer adversidades. Da multiplicidade de influências, porém, revelada na terminologia náutica, ficaram noções confusas e desconexas á espera que condições imperiosas obrigassem os naturais a sistematizá-las, se é que para o seu completo desenvolvimento não fosse ainda essencial a importação dos mestres de Génova por Gelmirez na Galiza e que nos portos portugueses surgissem as velas dos cruzados” (Alberto Sampaio, Estudos Históricos e Económicos, Porto, Chadron, 1923, p.290).Não era alheia a esta situação a intensificação da pirataria sarracena que assolava as terras próximas do portos, desde Coimbra até aos Pirinéus, que praticava apenas uma “cabotagem de salteadores”, uma “navegação rudimentar, incapaz de subministrar conhecimentos técnico proveitosos à gente da terra”. Foi para defender as populações dessa pirataria que o Arcebispo de Santiago mandou vir os mestres genoveses, para conduzir galeras de defesa e ataque. Só no tempo de D. Teresa começaram as construções navais, para permitir uma navegação costeira com segu-rança, o que constitui, segundo Herculano o primeiro ensaio de uma marinha nacional.

13 Jaime Cortesão, Teoria Geral dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Seara Nova, 1940

14 Vitorino de Magalhães Godinho, A Expansão quatrocentista portuguesa. Problemas das origens e da linha de evolução, Lisboa, 1945, ECE, pp.11 e 13

15 Reconheceu-o José Matoso, op.cit., I vol., p.18

16 Op. cit., p.9

17 Manuel Antunes, Repensar Portugal, Lisboa, Multinova,1979

 


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