Se o Ocidente está periclitante, o problema – e a solução, se existir – está na sua alma: no seu sistema de valores, cultura e convicções últimas.
No famoso final de After Virtue, MacIntyre, evoca a iminência de uma nova Idade das Trevas, rumo à qual a civilização ocidental já teria ultrapassado o «ponto de viragem». Nessa mesma página, MacIntyre reconhece os riscos de estabelecer paralelismos precipitados, anacrónicos e simplistas entre a nossa situação actual e o fim do império romano, embora não descarte uma certa analogia. Sabe-se que a historiografia recente problematiza quer a suposta escuridão da Idade das Trevas, quer a própria ideia de “queda” do império romano; e discute recorrentemente se esse colapso se deveu fundamentalmente a causas externas, ou a factores internos, ou ao carácter e biografia das principais dramatis personae dessa história. Para além disso, levantam-se as dificuldades próprias de precisar o significado de conceitos como “cultura”, “civilização” ou “império”; de definir em que consiste especificamente a “civilização ocidental”, atendendo às suas contradições e metamorfoses, no espaço e no tempo; de fixar um padrão que permita avaliar a sua performance relativa; e de julgar o que ela terá de bom e de mau. Contudo, não há dúvidas sobre a sensação de crise ou desgaste daquilo que se convencionou chamar a “civilização ocidental” e da cultura política democrática liberal a ela associada. Em concreto, recentemente, o “Apelo de Praga” salientou «o recuo geopolítico do Ocidente, a ressurgência de forças políticas autoritárias, a erosão dos valores democráticos e a perda de eficácia das instituições democráticas», a violência terrorista promovida pelo fundamentalismo islâmico, bem como os desafios crescentes provenientes não só«dos apologistas do iliberalismo e xenofobia, como também dos intelectuais relativistas que negam que qualquer forma de governo pode ser defendida como superior a qualquer outra».

No rescaldo de mais um atentado terrorista (neste caso, o de Barcelona), surge como oportuna a reflexão sobre a resistência moral (para além das medidas de segurança) que as sociedades atingidas por estes atentados podem contrapor a tão grave ataque aos fundamentos de uma civilização.
Não será certamente o relativismo ético a sustentar tal resistência. Pouca capacidade de mobilização de vontades e entrega generosa (verdadeira alternativa à mobilização e entrega que suscitam ideologias de morte) terão sociedades cuja coesão não assente em sólidas raízes morais. Para ajudar a essa reflexão, pareceu-me útil a leitura do livro do professor de História das Doutrinas Morais e de Filosofia da História da Universidade Católica de Milão Giacomo Samek Lodovici La socialità del bene – Riflessioni di etica fondamentale e politica sul bene comune, diritti umani e virtù civili (Edizioni ETS, Pisa, 2017). Podemos qualificá-lo como pequeno compêndio de pensamento político e social de inspiração católica.
As teses do livro podem ser assim resumidas:
Segundo uma certa corrente do liberalismo (não a única), as normas estaduais devem ser eticamente neutrais, não atinentes a uma particular visão moral do bem, podendo, quando muito, pressupor uma conceção moral mínima, a da tolerância e a do tratamento igualitário dos indivíduos por parte do Estado, ou do respeito mútuo entre as pessoas. A coesão social não deverá ser construída em torno de valores éticos, mas em torno de procedimentos (constitucionais, jurídicos, de controlo e vigilância) e em redor de regras de convivência, deve criar espaços de liberdade dentro dos quais cada pessoa possa atuar de acordo com o seu projeto de vida dentro de perímetros que não devem ser ultrapassados para não lesar os outros. Nesta perspetiva, se e quando as virtudes das pessoas conservam algum papel político, elas são reduzidas à legalidade, à conformidade ao pacto constitucional e às regras, sendo a vida privada considerada politicamente irrelevante. Mas esta perspetiva ético-política não deixa de se apoiar em pressupostos morais substantivos, de modo algum eticamente neutrais. Por outro lado, não parece adequada para resolver uma série de problemas que atingem várias sociedades ocidentais. Assim, o fenómeno da corrupção, a desconfiança em relação aos políticos e às instituições, o crescente abstencionismo (a “paixão cívica” que se vai apagando cada vez mais no confronto com as “paixões privadas”).
Tim Farron demitiu-se do seu cargo de dirigente do Partido Liberal-Democrata britânico depois das últimas eleições legislativas. A razão dessa demissão não foi nenhum insucesso do partido, mas antes, no dizer do próprio, a dificuldade em conciliar essa sua posição de dirigente partidário com as suas convicções pessoais de cristão evangélico que procura ser fiel aos ensinamentos bíblicos.
D urante a campanha eleitoral, Tim Farron foi insistentemente assediado por jornalistas para se pronunciar sobre as suas convicções a respeito da moralidade do aborto e do comportamento homossexual. Numa entrevista, depois de acentuar que a sua convicção sobre a moralidade do comportamento homossexual nunca o impediria de reconhecer os direitos civis das pessoas homossexuais, até acabou por, hesitantemente, afirmar que não considerava que esse comportamento fosse pecaminoso, muito provavelmente contra o que verdadeiramente pensa.
Ficou claro que o simples facto de este político aderir a posições morais “contra a corrente” culturalmente dominante, ainda que daí não retirasse consequências no plano da política legislativa, o impedia de dirigir um partido político com pretensões de influência na vida pública. Essa sua dissonância pessoal era suficiente para ser constantemente olhado com desconfiança pela comunicação social, comprometendo, por isso, a imagem do seu partido.
O episódio não deixa de ter alguma semelhança com o que, há alguns anos, envolveu o político e filósofo católico italiano Rocco Bottiglione, cuja nomeação para comissário europeu foi recusada porque admitiu a hipótese de reprovar moralmente a prática homossexual, não deixando de esclarecer que dessa reprovação não retirava consequências jurídicas que levassem a discriminar quem adotasse tal prática.
Com a entrada na segunda década do século XXI, em vez de avançarem no sentido da liberalização, muitos países do Sudeste Asiático passaram por uma fase de retrocesso na liberalização política e na democracia.
O meu ensaio centrar-se-á na situação do Sudeste Asiático, uma das regiões mais heterogéneas do mundo – não apenas do ponto de vista das diversidades étnicas, religiosas e linguísticas, mas também no âmbito dos níveis de desenvolvimento socioeconómico.
Ainda há duas décadas, o Sudeste Asiático, não obstante longe da perfeição, parecia estar do lado certo da história, à medida que muitos países avançavam em direcção a uma maior liberalização política e/ou económica. O ambiente que se seguiu à Guerra Fria, a ascensão de uma classe média emergente após anos de progresso económico e uma miríade de factores contribuíram para o processo de democratização em vários países do Sudeste Asiático. Embora no período da Guerra Fria a maioria dos países do Sudeste Asiático fosse considerada autoritária, no final da década de 90, os sistemas políticos de alguns dos países mais importantes do Sudeste Asiático, como a Indonésia, as Filipinas, a Tailândia, a Malásia e Singapura, evoluíram a ponto de serem “julgados” pelo Ocidente como relativamente livres e democráticos. Contudo, com a entrada na segunda década do século XXI, em vez de avançarem no sentido da liberalização, muitos países do Sudeste Asiático passaram por uma fase de retrocesso na liberalização política e na democracia. Temos agora a Tailândia, que está novamente sob governo militar, e onde as eleições foram suspensas por uns anos; as Filipinas, onde acaba de ser declarada a lei marcial para o sul do país; um aumento da censura nos meios de comunicação e da intolerância relativamente a minorias étnicas e religiosas na Malásia; e por aí em diante.
O que explica esta retrocesso geral da democracia e os crescentes desafios às liberdades políticas e civis em diversos países do Sudeste Asiático? O presente ensaio irá analisar algumas dessas forças e alguns desses factores que podem contribuir para o esclarecimento desta grande recessão democrática. Mas, antes disso, procurará contextualizar e ter presente o facto de que a democracia não está ainda consolidada. Recordemos as terras sangrentas do Camboja sob a liderança do Khmer Vermelho na década de 70; o Brunei continua a ser uma monarquia absoluta; o Laos e o Vietname são governados por partidos comunistas; e Myanmar só se libertou do governo militar em 2011.
A democracia liberal é co-natural à aspiração humana de viver em liberdade e, no mercado das ideologias, ainda é, e continuará a ser, a melhor de todas as alternativas.
Gostaria de começar por agradecer ao Instituto de Estudos Políticos o amável convite para poder aqui comentar a Palestra Comemorativa de Dahrendorf (Dahrendorf Memorial Lecture), que acaba de ser proferida pelo Professor Marc Plattner, cuja biografia e notável estatuto académico já foram referidos pelo anfitrião da nossa sessão e pelo presidente da mesa. No seguimento da intervenção do Professor Clifford Orwin, o meu objectivo será o de realçar as ideias mais importantes e os alertas deixados pelo nosso distinto orador principal, acrescentando, ainda, algumas notas pessoais para o debate que se seguirá ou para reflexão ulterior.
O Professor Marc Plattner é um reconhecido observador do mundo e especialista nessa construção ideológica e política chamada democracia liberal. Na sua palestra, apresentou-nos três grandes ângulos: primeiro, uma retrospectiva do último quarto de século, desde a vitória impulsionadora da terceira vaga de democratização até aos nossos dias, mais preocupantes e incertos; em segundo lugar, uma análise do conflito crescente entre a democracia e o seu inimigo latente – o autoritarismo; e, em terceiro lugar, algumas considerações perspicazes e recomendações sobre como resolver ou lidar com “o actual mal-estar da democracia liberal”, certamente a sua maior crise desde a Segunda Guerra Mundial.
Como grande pensador politico, com experiência adquirida ao longo do tempo, no Forum Internacional para os Estudos da Democracia do NED (National Endowment for Democracy) e como editor do Journal of Democracy, o Professor Marc Plattner não é nem um optimista utópico, nem um pessimista apocalíptico. Arriscaria dizer que, na esteira do caminho prudente e perspicaz de Lord Ralf Dahrendorf, estamos perante um democrata liberal realista, profundamente consciente das ameaças que comprometem essa opção, mas persistentemente confiante na sua bondade intrínseca, na sua superioridade moral, na sua importância enquanto traço distintivo e legado incontornáveis do Ocidente, e no seu eterno potencial para a manutenção ou construção de sociedades mais humanas, seguras, desenvolvidas e felizes.
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