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Este espírito aberto que os Grandes Livros deviam ajudar a
fomentar é, de facto, uma pedra angular da tradição ocidental
da liberdade, e muito pertinente para o nosso tema.
Tradução Maria Cortesão Monteiro
‘Os grandes homens são embaixadores da Providência, enviados para revelar
aos seus iguais o desconhecimento que estes têm de si próprios... Vêm e vão,
por um lado um mistério, por outro a mais simples de todas as experiências... a
irresistível influência da verdade. Não deixam sucessores. A herança de grandeza
descende para as pessoas’. Calvin Coolidge
‘Aqueles professores que não são alunos são as grandes mentes, as maiores
mentes (que conhecemos) apenas através dos grandes livros... Somos compelidos
a viver com livros. Mas a vida é demasiado curta para viver com quaisquer
outros, que não os grandes livros.’ Leo Strauss
‘(Ao ler Milton) começará a perceber que o que você pensava não ser matéria
de grande importância... ao não ser que seja uma pessoa invulgar, não terá
direito legítimo a uma ‘opinião’ em nenhum assunto, a não ser aquele que lhe
diz directamente respeito. (“Educação” Moderna significa, para a maioria, dar
às pessoas a capacidade de pensar de forma errada sobre todos os assuntos que
tenham significado para elas). John Ruskin
por Anthony
O’Hear
Director do Royal
Institute of Philosophy
e Editor da Revista
Philosophy, Londres
U
m Presidente dos Es-
tados Unidos, Calvin
Coolidge, um gran-
de filósofo político,
Leo Strauss, e John
Ruskin, o maior dos
pensadores proféticos
numa era de pensadores proféticos.
Coolidge inclui poetas, filósofos e
pintores entre os seus grandes homens,
e Ruskin era, entre outras coisas, o mais
profundo escritor de arte que o meu país
alguma vez conheceu, por isso comecemos por considerar uma pintura, para ver o que
nos pode ela dizer sobre as nossas raízes
Clássico-Cristãs.
A obra que vos quero mostrar foi pintada
por volta de 1575, no tempo de Camões e
Cervantes, e pouco depois da Batalha de
Lepanto. É “O Esfolar de Mársias” [ver figura
1], de Ticiano, produzida mesmo no final da
sua longa vida. Como podem ver, é uma cena
horrível, quase alucinatória, pintada tanto
com dedos e espátula como com pincéis,
num turbilhão de cores. O sátiro Mársias
desafiara o deus Apólo para um concurso
musical, os sopros do primeiro contra as
cordas do segundo. Na pintura de Ticiano,
o concurso é avaliado pelo Rei Midas, Rei
da Frígia, que tem umas orelhas de burro
por causa de uma contenda passada com
Apólo, e que pode ser um auto-retrato de
Ticiano. Mársias está a ser esfolado pela sua
audacidade, provavelmente pelo próprio
Apólo, enquanto por cima dele estão os seus
instrumentos. À esquerda está um jovem
rapaz (Apólo novamente?) a tocar violino.
A história em que Ticiano se baseia
encontra-se nas Metamorfoses de Ovídeo,
onde nos é dito que os deuses dos bosques,
faunos, sátiros, ninfas e ovelhas e gado
de tal forma choraram que se criou uma
nascente subterrânea, a partir da qual o
rio chamado Mársias corria, cercado por
margens inclinadas até ao mar. Em Ovídeo,
Mársias chora “Tocar flauta não vale isto:
porque é que me despes de mim próprio?
Mas o Ticiano de Mársias não é apenas
a presença dominante no quadro. Ele está,
dadas as circunstâncias, estranhamente
calmo, mais que resignado, aceitando o
que tem de ser, aquilo a que todos nós
temos de certa forma de nos submeter. A
analogia com a crucificação é irresistível,
e o pintor devia conhecer Dante, bem
como Ovídeo: ‘Entra nel petto mio e spira
tue/ si coma quando Marsia traesti/ della
vagina delle membre tue’. Dante, à beira do
Paraíso, implora a Apólo (o mesmo Apólo)
para entrar no seu peito e lá respirar, tal
como quando ele retirou Mársias da pele
dos seus membros. O mito de Mársias é
agora uma figura para a jornada da alma
Cristã, um topo espelhado pelo violino
erguido, a sua harmonia divina, com a
sua aparência neo-platónica, um sinal da
alma libertada das correntes terrestres.
E considerem também Apólo esfolador,
o deus, extasiado com Mársias, unido a ele no seu sofrimento, quase o amando,
talvez precisando dele, fundindo-se com
ele. A metamorfose Ovidiana está agora
inextricavelmente misturada com signifi-
cado cristão, um conto de húbris mortal
(que ainda lá está) uma figura de redenção
através do sofrimento, e ainda amor divino,
algo fantástico e até terrível.
Húbris e retribuição divina é o tema
ostensivo de outra grande pintura também
retirada de Ovídeo, As Fiandeiras de Velazquez, de 1656-8 [ver figura 2]. Aracne,
uma pobre rapariga lídia, desafiou Minerva
(Atena) para uma competição de tecelagem.
Como se isso não fosse suficientemente
hubrístico, Aracne entra na competição
com uma tapeçaria que representa o es-
candaloso episódio da Violação da Europa
por Júpiter (Zeus). Aracne é transformada
numa aranha, podendo continuar a sua
tapeçaria, se bem que presumivelmente
de uma forma menos provocativa.
O primeiro plano da pintura de Ve-
lazquez mostra cinco mulheres vestidas
normalmente, envolvidas na fiação e tarefas
relacionadas (daí o título). Por detrás das
mulheres fiandeiras, numa alcova ilumina-
da, como que num palco, vemos Aracne a
mostrar a sua tapeçaria a Minerva, que está
prestes a golpeá-la, e outras pessoas bem
vestidas. E a tapeçaria de Aracne é uma
cópia de Violação da Europa de Ticiano,
que Velazquez devia conhecer, do original
ou da cópia de Rubens.
Uma vez mais, temos um tema clássico
e uma lição clássica (húbris), mas inter-
pretada para um outro tempo. As cinco
fiandeiras do drama de Velazquez têm sido
interpretadas de várias formas, as duas no
plano principal como Minerva, viradas
para nós (como uma velha mulher, como
em Ovídeo) e Aracne, de costas. As outras
três mulheres podem ser as mitológicas
mouras do Destino, Cloto (a fiandeira),
Láquesis (a distribuidora do destino, com a
cara escurecida?) e Átropos (a cortadora).
E há quase certamente uma referência
auto-engrandecedora na representação da
roda de fiar e seus fios, no elogio de Pliny
de que muito poucos artistas poderiam
capturar movimento nas suas produções
estáticas, enquanto a referência a Ticiano
pode ser um acto de homenagem, sim, mas
também, com certeza, uma insinuação de
que Velazquez está pelo menos ao nível
do grande veneziano, e livre da ameaça
de retaliação divina.
Não quero negar a leitura mitológica
das figuras de primeiro plano de Velazquez.
Já foram escritas páginas e páginas sobre o
assunto, e por académicos bem mais conhe-
cedores que eu. No entanto há certamente,
e de forma proeminente, uma característica
nessas figuras, tão óbvia que pode nem
parecer valer a pena mencionar. Quem quer
que sejam, e o que quer que representem,
são fundamentalmente mulheres vulgares
a executar tarefas vulgares, e a fazê-las,
ao que parece, significativamente bem.
Podem ser Minerva, Aracne e as restantes,
mas a Minerva e a Aracne de Velazquez
são mulheres vulgares, ou talvez mulheres
vulgares que se tornaram divinas. Esta não
é uma mensagem que poderíamos ler nos
livros clássicos, mas o Cristianismo aqui,
mais uma vez, suplanta Ovídeo.
E assim nos debruçamos sobre outra
pintura de Velazquez, a chamada Imaculada
Conceição de 1618-9 [ver figura 3]. Digo
chamada porque, podendo representar
Maria a Mãe de Deus, representa também a figura no centro do Livro da Revelação,
a misteriosa Mulher Vestida com o Sol da
Revelação 12. Ela é, como a Revelação nos
diz, coroada com doze estrelas. É envolvida
em luz do sol e a lua, símbolo da futilidade
humana e da inconstância, está sob os seus
pés. E é também a mulher representada na
visão de João na peça complementar, Sto.
João Evangelista na ilha de Patmos. Mas
observem a mulher, e a sua face. Serena e
bela como é, não é uma Madonna etérea dos
tempos antigos, é uma rapariga vulgar, de
tal forma que podia ter estado nas ruas de
Sevilha em 1618 (e podia até ser a noiva de
Velazquez). E aqui Velazquez associa-se a
uma tradição ligeiramente mais antiga, pois
nas suas famosas litografias da Revelação,
de 1498, Albrecht Durer também ilustrara
a divina Mulher Vestida com o Sol como
uma vulgar rapariga.
Vemos aqui
a inevitável e
contínua dialética
entre liberdade e
responsabilidade,
entre afirmação
da individualidade
e reconhecimento
das nossas
próprias limitações
inevitáveis,
individuais
e coletivas
Tenho dito algumas coisas acerca dos
motivos Clássico-Cristãos na arte ociden-
tal, sobre como, nas pinturas que temos visto, podemos encontrar uma amálgama
e mistura de temas, a húbris e falibilidade
dos humanos, redenção divina e punição,
a elevação e até divinização do quotidiano,
e talvez também a superação dos antigos
deuses numa versão mais humana da re-
lação entre deuses e homens. Seria, claro,
impossível descrever adequadamente a
tradição ocidental da liberdade em poucas
frases, mas a seguinte característica teria
que ser proeminente: a sacralidade do in-
divíduo, a suspeição perante as hierarquias
e governantes todo-poderosos, humildes
fiadoras tidas tanto em conta como príncipes
e deuses, o perigo da húbris juntamente
com a imperfeição humana, e a consequente
necessidade de uma estrutura de ordem e
lei, e o equilíbrio constante entre a grandeza
humana – proximidade a Deus, talvez – e
orgulho humano e excesso. Vemos aqui a
inevitável e contínua dialética entre liber-
dade e responsabilidade, entre afirmação
da individualidade e reconhecimento das nossas próprias limitações inevitáveis,
individuais e coletivas.
E, por mais controverso que este pensamento seja, diria que a liberdade e os
direitos e a igualdade dos indivíduos têm
a sua fundação na ordem divina a que, de
diferentes maneiras, todos estes artistas
estão a apelar. Como nos diz a declaração
de independência americana, “todos os
homens foram criados iguais...dotados
pelo seu Criador com certos direitos ina-
lienáveis”; como nos disse Samuel Adams
(e Coolidge nos relembrou), ‘as pessoas
parecem reconhecer esta resolução como
se fosse um decreto divino’. Ou, como
colocou, um pouco antes, o jurista do sé-
culo treze Henry de Bracton, no espírito
da Magna Carta, ‘o rei tem um superior,
Deus, nomeadamente. Também a lei pela
qual é feito rei. Também a sua cúria,...se ele
está sem freio, isto é, sem lei, deve ser-lhe
posto esse freio.’.
Assim, depois de olharmos para a linha
Clássico-Cristã na arte, o que encontramos
nos Grandes Livros em si? Devemos, desde
o início, notar um ponto apresentado por
Leo Strauss, de que ‘a comunidade das
grandes mentes é habitada pela discórdia’,
ecoado por Coolidge, que diz que numa luta
da natureza, os homens bons ou patriotas
não estão todos no mesmo lado. Há, de
facto, uma vantagem aqui apontada por
Strauss, de que se tomarmos os Grandes
Livros como nossos faróis, não seremos
endoutrinados. Teremos que escolher
entre algumas coisas neles ditas, o que nos
ajuda a reconhecer o mérito na afirmação
de Coolidge, de que nenhum governo que
proíba qualquer boa influência, seja qual
for a sua fonte, seja qual for o seu nome,
pode ser bem sucedido. Este espírito aberto
que os Grandes Livros deviam ajudar a
fomentar é, de facto, uma pedra angular
da tradição ocidental da liberdade, e muito
pertinente para o nosso tema.
No entanto, discórdia autoral à parte,
é possível encontrar alguns temas liberais e libertadores que constantemente
aparecem nos Grandes Livros da nossa
tradição. Comecemos pelo princípio, com
A Ilíada. A um nível este é um conto épico
de valor militar e dos valores da guerra,
sem remorsos e sem escrúpulos nas suas
descrições e julgamentos. Mas procurem
apenas um pouco mais fundo, e verão
que, no meu entender de forma única,
é um caso de um conto épico nacional
que é também a narração de um grande
crime por parte dos vencedores. A Ilíada é efetivamente sobre guerra, mas é tam-
bém sobre paz, a paz de uma sociedade
civilizada que sabemos que os Aqueus vão
destruir, matando os homens, tomando
as mulheres como escravas e capturando
as crianças. Embora A Ilíada seja apenas
sobre três dias de combate, com a morte
de Heitor sabemos está tudo nas mãos
dos Troianos, e a morte de Heitor – e a
louca crueldade de Aquiles – é contada
com grande pungência, tal como acontece
na descrição que Homero faz de quando
Andrómaca, por detrás das muralhas da
cidade em antecipação do regresso do seu
homem, lhe prepara um banho, no preciso
momento em que cadáver deste está a ser
arrastado à volta das muralhas exteriores
de Tróia. “Ingénua mulher”, diz Homero de
Andrómaca, “não sabia ela que ele estava
agora longe de banhos quentes, e que Atena
o tinha derrubado pela mão de Aquiles”.
Sabemos que A Ilíada é sobre a ira de
Aquiles – Homero diz-nos isso logo no
início, e vêmo-lo ao longo de toda a obra.
Mas é também sobre o temperamento
dessa ira, quando, no Livro 24, o desfeito
Príamo de forma humilhante implora a
Aquiles que devolva o corpo do seu filho.
Aquiles, ainda num luto amargo pela perda
de Pátroclo por quem tinha reentrado na
batalha e provocado a morte e humilhação
de Heitor, cede, pelo menos por um mo-
mento: “Pobre homem, quanto suportaste,
dor que quebra o espírito...Descansemos
as mágoas nos nossos corações. Nus como
estamos com o luto...” e continua, a falar
dos deuses que determinam os nossos des-
tinos, e de Zeus com as suas duas grandes
urnas, uma cheia de bênçãos e outra cheia
de desgraças, misturando ambas para to-
dos nós cá em baixo. Esta noção das duas
urnas de Zeus que presidem de forma
neutral o nosso destino pode ser aplicada
ao tratamento que Homero faz da própria
guerra de Tróia. Grego/Aqueu como era,
é impossível discernir na sua escrita um
preconceito a favor dos Gregos, que são
descritos como fantásticas máquinas de
guerra, sim (pelo menos quando Aquiles
está com eles), mas não como particu-
larmente admiráveis de outras formas.
Homero é notavelmente imparcial no seu
tratamento das partes em conflito, até
talvez com um ligeiro preconceito a favor
de Tróia: mas isto é porque, contrastando
com os campos armados dos Gregos, ele
nos mostra o domínio doméstico e civili-
zado que os gregos irascíveis e vingativos
vão desperdiçar.
Ninguém duvida que se o caso fosse
ao contrário, Homero nos teria na mesma
mostrado aquilo por que o lado sitiado, em
defesa, lutava, não dando reconhecimento
àqueles que cercavam, fosse o seu caso tao
ténue como o dos gregos, e a sua conduta
na guerra tão impiedosa.
Nos seus
Grandes Livros,
se não no seu
comportamento,
os Gregos antigos
tinham aquele
sentido de
imparcialidade da
justiça e da sua
transcendência
sobre qualquer
lei naturalista
da natureza, que
é crucial para a
nossa tradição
de liberdade
Em Homero encontramos, portanto,
várias características cruciais da tradição
ocidental da liberdade: enaltecer de um
estado de paz e domesticidade estabe-
lecidas e um lamento implícito da sua
destruição, imparcialidade e exercício de julgamento justo entre partes em guerra,
um sentido de humanidade partilhada que
transcende a própria guerra. Até naquilo
que é um conto épico nacional encontra-
mos valores liberais e humanitários que
hoje assumimos como universais, mesmo
que não aplicados universalmente. O tipo
de imparcialidade que encontramos em
Homero, que é implicitamente crítica dos
Gregos, também encontramos na tragédia
grega posterior, Os Persas de Ésquilo, por
exemplo, e n’As Troianas de Eurípides, na
qual os Gregos brutalmente arremessam o pequeno Astíanax sobre as muralhas
de Tróia. Era o filho pequeno de Heitor,
que Homero nos conta ter medo do elmo
do pai, aquando a partida deste para
batalha pela última vez. Como diz o coro
de Eurípides: ‘Esta criança mataram os
Argivos/porque a temiam’. Uma epígrafe
que faria a Hélade corar. Mas não o fez,
porque As Troianas foi a resposta de Eu-
rípides ao massacre ateniense dos Mélios
em 416BC, e não recebeu o prémio nas
Grandes Dionísias no ano seguinte. É, no
entanto, possível encontrar uma reflexão
ainda mais fulgurante e anti-ateniense
sobre este mesmo episódio no chamado
Diálogo de Mélos, que se tornou uma
pedra angular do pensamento político
ocidental. Nos seus Grandes Livros, se não
no seu comportamento, os Gregos antigos
tinham aquele sentido de imparcialidade
da justiça e da sua transcendência sobre
qualquer lei naturalista da natureza, que é
crucial para a nossa tradição de liberdade.
Assim, como vemos numa tragédia
como a Antígona de Sófocles, os Gregos
antigos, ou os melhores deles, tinham uma
noção de uma lei superior à da realpolitik
naturalista a que os atenienses apelaram
ao dirigirem-se aos Mélios, e do poder
do indivíduo com princípios, mesmo que
impotente em termos políticos. O carácter
da Antígona pode de facto ser visto como o
arquétipo da alma pura, que está preparada
para dizer a verdade ao poder, e morrer
por isso. É digno de nota que Jean Anouilh
elaborou a sua própria versão da Antígo-
na para ser encenada em Paris em 1944,
durante a ocupação Nazi (embora talvez
seja ainda mais digno de nota o facto de os
censores o terem permitido). Mas por toda
a sua coragem e integridade, ou talvez por
causa disso, Antígona não é uma pessoa
confortável, nem é totalmente admirável,
e certamente não muito amável – é cruel
para com a sua irmã Isménia, e implacá-
vel com as almas mais fracas, como as da
maioria de nós na verdade, que estariam
preparadas a fazer cedências.
Sofócles apresenta a Antígona como
uma luta entre Creonte, o governador de
Tebas, que tenta desesperadamente man-
ter a cidade em pé depois de uma invasão
que é na verdade uma guerra civil entre os
filhos de Édipo, a seguir a este ser cegado
e partir da cidade, e Antígona, a filha de
Édipo, que coloca a lealdade familiar e
a lei dos deuses acima da necessidade
política. (a lei dos deuses requer que ela
enterre o seu irmão Polinices, que tinha invadido Tebas com forças estrangeiras,
e cujo enterramento tinha sido expressa-
mente proibido por Creonte, por forma a
simbolizar a nova ordem política que este
estava determinado a estabelecer.) Com
o desenrolar da peça, a visão de Creonte
sobre o necessário para a manutenção da
ordem torna-se desnecessariamente infle-
xível e desumana. O seu filho diz-lhe que
daria um bom governante, mas só numa
terra deserta, à medida que Creonte, que
inicialmente era o epítome da razoabili-
dade pragmática, se torna cada vez mais
irritável e até petulante. Existem aqui,
claramente, paralelos com as carreiras de
todos os tipos de ditadores anti-liberais
fortes, cuja governação frequentemente
resvala para rancor amargo e repressivo.
Não há grandes dúvidas acerca de onde
reside a lealdade de Sófocles. A peça coloca
a lei divina e a humanidade acima da expediência política e lei meramente humana,
sendo esta, claro, a visão tradicional dos
Gregos antigos (como está explícito no
último trecho da Antígona): ‘A maior parte
da felicidade é sabedoria;/Leis divinas que
o homem deve sempre defender./Línguas
pretensiosas terão punição certa,/E a
sabedoria apenas aprendemos quando
somos velhos.’ Estão aqui presentes prefigurações óbvias do pensamento medieval
pós-Magna Carta no qual o governante é
visto como sub lege e sub-Deo e também
do destaque revolucionário americano à
ideia de o Criador como sendo a fonte dos
direitos inalienáveis. É como se a liberda-
de precisasse de um apoio e de um aval
divino para prevenir a sua degeneração
em anarquia ou ditadura.
Já abordámos um pouco os ‘re-trabalhos’
artísticos de Ovídeo na era Cristã, mas o
Grande Livro Romano é, por excelência, A
Eneida de Virgílio. É tanto romano como
grande, e uma celebração da grandeza de
Roma, em particular do ideal Romano de
paz universal e paz coroada com a lei, como
diz Anquises a Eneias, ideais, especialmente
a segunda parte, que contêm claramente um
elemento essencial da tradição ocidental da
liberdade. O que quer que seja dito sobre
o império romano, para aqueles, romanos
ou não, que viveram sob ele e usufruíram
da sua paz e lei, a sua destruição na era
das trevas foi um desastre, moralmente e
materialmente. O que quer que seja dito:
A Eneida é vista muitas vezes como um
louvar de Roma e dos seu Império incipiente
e do seu primeiro Imperador, Augusto, e
não incorrectamente. Octávio/Augusto era um patrono, e até amigo, de Virgílio,
e há muitos contos de Virgílio infeliz, no
fim da sua vida, com o tom adulador do
seu conto épico, querendo que este fosse
destruído.
Mas ver A Eneida como uma adulação
acrítica do regime de Augusto e da imagem
de Roma que este propagava é ter dela uma
leitura errada. É muito mais sofisticada e
subtil, e de formas que sustentam a tradição
da liberdade. A prova mais evidente disto
é o fim em si. Lembrem-se que no último
livro d’A Ilíada o sempre cheio de ira e furor
Aquiles, demonstra compaixão e um sentido
de humanidade partilhada com Príamo,
com quem está unido em luto perante a
implacabilidade do destino e dos deuses;
A Eneida termina com o piedoso (i.e. se-
guidor de deuses) Eneias num furor louco
e sem remorsos enquanto chacina Turno,
indefeso. E lembrem-se que este piedoso
Eneias não é só o herói deste conto épico; é
o fundador de Roma e a figura para quem
Augusto e todos os outros governadores
de Roma olhavam: estará aqui uma pista
da corrupção do poder, e da necessidade
do seu temperamento por humanidade
e lei? Estará Virgílio a relembrar os seus
leitores, pelo menos aqueles que conseguem
ver além da superfície do seu texto, que
a própria Roma foi fundada em violência
e conquista, não apenas o assassinato de
Turno, mas amplamente na violência que
envolveu a invasão do Lácio e a derrota
dos lácios pelos troianos de Eneidas. Estes
acontecimentos são resumidos por Virgílio
na profecia dada a Eneias por Sibila, de
que a supremacia Romana/Troiana seria
precedida por campos de sangue, com o
próprio Tibre correndo com uma maré
roxa. E há ainda a cruel impiedade de
Eneias no julgamento de Dido em Car-
tago, que Virgílio enfatiza quando o seu
Dido como que desdenhosamente ignora
Eneias no Hades, quando este último o
tenta desculpar pela sua traição, e, como
todos os leitores de Virgílio no seu próprio
tempo saberiam, estes eventos levariam em
último caso a que os Romanos/Troianos
tratassem a rica civilização de Cartago
da mesma forma que os Aqueus/Gregos
tinham tratado Tróia.
O próprio Virgílio viveu duas guerras
civis e viu a dissolução efectiva da república
Romana. Não é de surpreender que celebrasse a ideia de paz sob a lei, e o próprio
Augusto se fosse isso que este fosse trazer,
mas o seu conto épico é conhecedor do custo
e também das tensões a que cede o poder desgovernado. De forma geral, no tom d’A
Eneida ele parece impressionado com o
poder e até com o glamour de Augusto, que
é certamente celebrado, mas eu acho que
há, n’A Eneida, um mensagem esotérica,
bem como uma exotérica. Leo Strauss
relembra-nos de que os grandes escritores
nem sempre concordam entre eles, mas
lendo-os devemos também lembrar-nos da
outra mensagem de Strauss, de que estes
escrevem muitas vezes nas entrelinhas;
há, como disse Ruskin ‘uma reticência
cruel no âmago dos grandes homens, que
faz com que estes escondam sempre os
seus pensamentos mais profundos’. Na
disciplina que impõem, a si próprios e a
nós, afastam-nos do ímpeto impulsivo para
julgar e agir, e da impetuosa propaganda
retórica que é, tão frequentemente, inimiga
da liberdade.
Para nos virarmos agora para a era
Cristã, depois dos escritores do Novo
Testamento, o primeiro grande autor foi
Santo Agostinho. Para os nossos propó-
sitos encontramos nas suas Confissões
e Cidade de Deus temas centrais que
são significativamente relevantes para
a tradição ocidental da liberdade. As
Confissões abrem novos caminhos de um
ponto de vista literário, pelo seu foco no
desenvolvimento interior do individuo,
e a examinação sem remorsos do motivo
e do sentimento. Há também a mensa-
gem essencialmente cristã, proveniente
sem dúvida de Paulo (especialmente na
Epístola dos Romanos), do pecado ine-
rente ao homem e da sua incapacidade
para fazer o bem sem a graça divina. Na
medida em que a tradição ocidental da
liberdade sublinha a individualidade
humana, prezando o desenvolvimento
do indivíduo, uma das suas fontes são
indubitavelmente as Confissões de Santo
Agostinho. Onde alguns individualistas
modernos podem divergir de Agostinho
é na perfetibilidade humana. O realce de
Agostinho da concupiscência, do pecado
original (até em crianças pequenas) e na
indelével imperfetibilidade humana podem não nos apelar hoje em dia se, como
os pensadores do Iluminismo Europeu,
acreditarmos na perfetibilidade da huma-
nidade e das instituições humanas através
da razão natural, ou como Rousseau e a
sua miríade de seguidores, acreditarmos
na bondade e inocência essenciais das
crianças. Há certamente, na nossa tradição
da liberdade, correntes numa direcção
anti-agostiniana, particularmente no caso de qualquer uma que deposite fé no
planeamento de uma sociedade perfeita
ou no potencial ilimitado da auto-ajuda
e de outras práticas psicológicas.
[os grandes escritores]
Na disciplina que impõem, a si
próprios e a nós, afastam-nos
do ímpeto impulsivo para julgar
e agir, e da impetuosa
propaganda retórica que é,
tão frequentemente, inimiga
da liberdade
No entanto, tirando as leituras mais
pessimistas da psicologia humana, como a
de Freud, há uma pressão mais rígida, até
realista, no pensamento liberal, que enfatiza
a imperfetibilidade do homem e das suas
instituições, e os perigos consequentes do
planeamento optimista (o que será discutido,
como temos visto demasiado, desde 1789).
Podemos aqui, claro, pensar em pensadores
do século dezoito como Hume e Edmund
Burke, bem como o próprio Tocqueville,
e em autores mais recentes como Popper,
Hayek e Michael Oakeshott. O que esta
pressão no pensamento liberal tem muito
presente é aquilo a que o escritor teológico
do século dezanove J.I. Mombert se refe-
riu como ‘a imperfeição que marca todo
o esforço humano, especialmente onde
este a tente evitar’. Daí a necessidade de
governo limitado, de freios e contrapesos
na constituição, pela regência da lei, bem
como da devida modéstia nessas mesmas
instituições de poder.
Mas o fundamento filosófico e teológico
de tudo isto foi construído pelo próprio
Agostinho, na Cidade de Deus. A Cidade
de Deus está já aqui na terra, nos corações
daqueles que foram salvos por graça divina,
mas nunca é completamente realizada no
aqui e agora. Satanás pode ser barrado,
como as Revelações nos dizem, mas as suas
depredações e influência surgem por todo
o lado, até na própria Igreja, onde menos o
esperamos. Todos estamos, até os redimidos,
sujeitos às tentações de Satanás; antes do
fim do tempo haverá muitos falsos profetas,
muitos Anticristos prometendo uma falsa
paz e um falso milénio. Devemos imaginar
o próprio Cristo vindo como um ladrão na
noite, e nunca aquiescer à ilusão de que podemos criar a Cidade de Deus, a Nova
Jerusalém, aqui na terra. Para Agostinho,
o facto de pensadores cristãos (ou outros)
pensarem que podiam, seria em si mesmo a
manifestação do efeito corruptor do pecado
original. Para os Gregos antigos seria uma
tentação hubrística que chamaria a ira dos
Deuses. Para Edmund Burke e aqueles que
acompanharam o progresso das políticas
revolucionárias desde 1789, a conclusão
seria de que ‘a sua liberdade não é liberal, a
sua ciência é ignorância presunçosa, a sua
humanidade é selvagem e brutal’.
Dante é o maior poeta das idades
médias cristãs, talvez o melhor escritor
cristão de todos os tempos, e, tendo em
conta a sua sensível introdução de Virgílio
e de outras figuras da antiguidade clássica,
pode justamente ser considerado Clássico-
-Cristão. Obviamente a Divina Comédia
é um trabalho que abrange tudo, mas do
facto de não estar maioritariamente ou
primariamente preocupado com a polí-
tica não se deve retirar que não contém
reflexões ou ideias políticas. Muito pelo
contrário, na verdade; nele estão reflectidos
os frutos da amarga experiência política
do próprio Dante, que se mudou de um
cargo em Guelfo (pró-Papado) para a
esperança Gibelina de que um Imperador
secular redimisse a Europa de forma a
permitir uma prática própria da religião.
Pela sua convivência com o Papado (e em
particular com o seu némesis, Bonifácio
VIII), Dante ficara convencido que nada
além da corrupção e adulteração da ver-
dadeira religião poderia vir dos Papas
que se envolviam em assuntos seculares
e assumiam poder secular, enriquecendo-
-se a si e às suas dinastias. Dessa forma, a
pureza da religião estava manchada pelo
seu envolvimento nas confusões inerentes
ao poder secular, para não falar das ten-
tações da simonia, e pior, enquanto que dar ao poder secular autoridade religiosa
dar-lhe-ia uma eminência superior à que
merecia, tornando-a presa das ambições
dos príncipes, a situação corrente do
tempo de Dante.
Por isso na Divina Comédia vemos vários
Papas, incluindo Bonifácio, condenados
ao Inferno por simonia, enquanto que no
Purgatório está a complexa imagem de
uma meretriz (que é tanto a prostituta da
Babilónia como do papado) beijando um
gigante (Filipe IV de França) que a leva,
numa carruagem com sete cabeças, para
os seus domínios (=à retirada do Papado
para Avignon em 1305, com as cabeças
a simbolizar a ganância eclesiástica por
poder e riqueza). Parte da carruagem está
a ser desfeita por um dragão (=Maomé),
enquanto sobre ela caiem as penas de
uma águia, que simboliza a Doação de
Constantino, um documento fraudulento
que, na época de Dante, se acreditava ser
do Imperador Constantino, que doava
poder secular ao Papado. Contra este
corrupto entrelaçar do sagrado e do
secular, Dante defendia um Imperador
puramente secular, e uma Igreja pura-
mente espiritual, a Igreja distanciada de
envolvimento secular e atendendo à sua
missão própria de eterna salvação das
almas, enquanto o Imperador enquanto
grande senhor secular, presidia uma paz
europeia, permitindo aos homens tra-
balhar na sua própria salvação sob uma
Igreja puramente religiosa – um arranjo
não muito distante do de separação entre
Igreja e Estado visado pela Constituição
americana. Em nenhuma dispensação
há a negação da religião ou do papel da
crença religiosa no alicerçar da política,
mas a separação das esferas de influência,
de forma a permitir que cada um cumpra
o seu próprio papel na vida do todo.
Tendo referido a descrição de Dante
por Botticelli, concluiremos por olhar
brevemente para a mais famosa imagem
de Botticelli, O Nascimento de Vénus
[ver figura 4], antes de mais nada por
ser uma perfeita síntese Cristã-Clássica.
Vénus, a deusa do amor nasce do mar,
como resultado da castração de Urano.
Ela resulta, portanto, do dispersar da
semente divina e da sua reconstituição
na sua forma perfeita, como se a Beleza
descendesse para dar charme ao físico
e, ao mesmo tempo, reascendesse para
o super-sensível (como sugere Marsilio
Ficino no seu comentário ao Filebo de
Platão). Enquanto recém-nascida ela está ser levada pelos ventos para costa, onde
será vestida pela deusa Primavera, que a
espera, com um manto decorado com belas
flores. Para a mente Platónica, a Vénus
física na sua beleza terrestre é o caminho
para a beleza divina, e na interpretação
dos pensadores pitagóricos, posteriores
ao próprio Platão, na sua pessoa e no seu
nascimento ela manifesta um continuum
entre espiritual/divino e material/humano.
Não há qualquer abismo a ser transposto
aqui, e neste ponto podemos lembrar-nos
da imagem de Dante que encerra a Co-
média de Deus numa face humana. Esta
Vénus divina representa humanitas na
sua forma mais elevada, beleza, caridade,
dignidade, liberalidade, temperança,
honestidade, charme e esplendor. Para o
círculo neo-Platónico do qual Botticelli
fazia parte, não seria difícil cristianizar
tudo isto. Vénus emergente do mar evoca
não a primeira Eva mas a nova Eva, que
é a estrela do mar, stella maris, maris/
Maria, com todas as qualidades de Maria, incluindo a de ser uma ponte para o
divino, enquanto que quando está vestida
com o seu manto a ser segurado, Vénus poderia representar a Igreja, e a concha
vieira em que se sustém ser o símbolo
tradicional cristão para peregrinação.
E ao ver Vénus em termos cristãos, se é
isso o que ele permitiu que fizéssemos.
Boticcelli reavivou o mundo físico depois
de séculos da negação ascética.
Acho que
Botticelli nos dá
uma imagem da
humanidade que
parece requerer,
para florescer,
uma república
civilizada de
indivíduos livres
e responsáveis
Terá este ponto alto da nossa tradição
Clássico-Cristã alguma influência na nossa
tradição da liberdade?
É certamente fácil ver Botticelli como
um dos embaixadores de providência de
Coolidge, mas eu acho que Botticelli nos dá
uma imagem da humanidade que parece
requerer, para florescer, uma república
civilizada de indivíduos livres e respon-
sáveis. Olhando do ponto de vista oposto,
e por mais tendências contraditórias que
existam em nós, podemos também dizer
que só uma raça dotada pelo seu Criador
da capacidade de produzir as qualidades
da humanidade que encontramos na Vénus
de Botticelli poderia também ser vista
como possuidora de direitos inalienáveis.