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Mário Soares, quando foi grande, foi-o por ter sido maior que fronteiras, grupos ou barricadas, intuindo melhor que ninguém onde era o seu lugar e qual a tarefa nacional que lhe competia cumprir.

Liberdade, Democracia, Europa
Momento triste para mim: uma certa orfandade política que, embora esperada, só agora de facto se consumou – e não é senão esta a irremediável marca da morte. Orfandade que é real e me pesa. Uma perda que nada absolutamente tem a ver com ser de esquerda ou de direita. Mário Soares, quando foi grande, foi-o por ter sido maior que fronteiras, grupos ou barricadas, intuindo melhor que ninguém onde era o seu lugar e qual a tarefa nacional que lhe competia cumprir. E não, não foi só no combate anticomunista de 1975, o que, não sendo pouco e sendo definitivo, não esgota nem resume aquilo de que era feito: a vocação da liberdade que vinha de longe, era antiga e tudo contaminou pela vida fora; a envergadura da sua coragem; o rasgo de alguns gestos políticos, o tamanho da sua intuição política.

Mas há mais neste homem, há duas ou três ideias, claras e simples, que foram sempre as mesmas mas tão essenciais ao seu propósito de democrata-lutador- -pela-democracia que chegaram para lhe conferir um destino: a liberdade, a democracia, a Europa, a irrefutável certeza da nossa pertença ao mundo ocidental e do compromisso dessa pertença. Do que podíamos ser e representar.

Quando nos recordarmos de Mário Soares, vamos recordar-nos de quê? Há políticos de que só nos recordamos dos seus melhores momentos, outros de que só lembramos os seus grandes erros.

1. Quando nos recordarmos de Mário Soares, vamos recordar-nos de quê? Há políticos de que só nos recordamos dos seus melhores momentos, outros de que só lembramos os seus grandes erros.

Um caso paradigmático do primeiro grupo é Winston Churchill. Raramente recordamos a trágica determinação com que planeou o desembarque em Gallipoli, durante a I Guerra Mundial, um desastre militar que o levaria a renunciar ao lugar de Primeiro Lorde do Almirantado (uma espécie ministro da Marinha de guerra) ou o facto de não ter compreendido, depois da II Guerra, que o Reino Unido não podia manter o seu império. Em vez disso, ele passou à História, com “H” grande, como o grande líder da resistência ao totalitarismo nazi e como um dos primeiros a denunciar com clareza o que Estaline estava a fazer na Europa de Leste no pós-guerra. Ele é o primeiro-ministro do “sangue, suor e lágrimas” e alguém que, nesses anos, tinha uma absoluta claridade sobre o que era decisivo fazer para vencer a guerra (conseguir que os Estados Unidos abandonassem o seu isolacionismo) e que por isso chegou a ordenar operações militares destinadas ao fracasso e que custaram muitas vidas humanas (Max Hastings descreve primorosamente esses tempos em Os Melhores Anos).

O leitor desta edição de Nova Cidadania (sobretudo um leitor que não conheça as edições anteriores) pode legitimamente ficar surpreendido. A homenagem prestada a Mário Soares e o elogio de António Guterres podem parecer contrastantes com muitos outros textos de orientação claramente diferente da dos homenageados.

A possível surpresa é legítima e, aliás, muito estimável. Quer dizer que o leitor é atento e atentamente detectou o contraste entre Nova Cidadania e alguns dos preconceitos que ainda dominam alguma da nossa atmosfera cultural e mediática.

Nesta revista, nós não subscrevemos a superstição das “infelizes dicotomias” que caracteriza as culturas políticas revolucionárias (e contra-revolucionárias). Essa superstição foi muito bem caracterizada por Alexis de Tocqueville — um católico liberal francês que admirava a democracia americana e estava intrigado com a tendência do seu país natal, por contraste com a democracia americana, para a “permanente oscilação entre revolução e contra-revolução.”

Nesta revista, nós admiramos Tocqueville. E não gostamos das rivalidades tribais entre “nós” e os “outros”. Também não apreciamos a tentativa de superar essas dicotomias através das miragens do “povo unido”, alegadamente dotado de vontade única e carente de um único porta-voz — uma miragem de que tivemos experiência suficiente no antigo regime da “União Nacional” e no PREC do “Povo unido jamais será vencido”.

Nós apreciamos a liberdade ordeira e o pluralismo que dela decorre — e que a sustenta. Não porque pensemos que a verdade não existe, ou que apenas existem as verdades de cada um. Mas porque respeitamos a sagrada consciência individual de cada pessoa, de todas as pessoas, dotadas de igual dignidade moral. Acresce que, como gostava de sublinhar Karl Popper, todos somos falíveis, cometemos muitos erros, embora possamos aprender com os nossos erros. Para que possamos aprender com os nossos erros e para que nos possamos aproximar da verdade, a liberdade é indispensável. A liberdade ordeira, sob a lei, em que diferentes vozes conversam entre si, criticam-se mutuamente, toleram- -se mutuamente, e dessa forma vão desejavelmente moderando os excessos de cada uma e desejavelmente se vão aproximando da verdade.

Esta é talvez a característica mais distintiva da tradição ocidental da liberdade sob a lei. Ao contrário do que que proclamam tantos dogmas que ainda hoje dominam a nossa atmosfera intelectual (e, como recorda nesta edição Mário Pinto, tendem a dominar o ensino estatal entre nós), não é verdade (porque simplesmente não corresponde aos factos) que a tradição ocidental da liberdade tenha sido produto da brusca inovação do chamado Iluminismo do século XVIII — o qual, em rigor, devia ser designado no plural, porque houve diferentes iluminismos, uns mais sóbrios do que outros.

A liberdade ocidental assenta em alicerces pluralistas, muito anteriores ao(s) Iluminismo(s). Assenta sobretudo nos alicerces milenares de Atenas, Roma e Jerusalém, a que apropriadamente chamamos alicerces clássicos e cristãos. Os iluministas são certamente bem vindos a essa conversação, eles certamente fazem parte dessa conversação por direito próprio — desde que aceitem conversar e não queiram impor autoritariamente a sua voz através do Estado ou da revolução.

Aqui está, muito resumidamente, uma proposta de explicação para a possível surpresa do leitor desta edição de Nova Cidadania. Por feliz coincidência, esta edição será publicada por ocasião da 16ª Palestra Alexis de Tocqueville do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica (IEP-UCP), que terá lugar a 23 de Fevereiro. Por feliz coincidência também, a Palestra será proferida pelo Professor Anthony O’Hear, do Royal Institute of Philosophy de Londres, sob o título “The Western Tradition of Liberty and its Classical-Christian Roots in the Great Books.”

Não apenas por feliz coincidência, o IEP-UCP e a revista Nova Cidadania dedicam persistente atenção ao estudo da Tradição dos Grandes Livros (TGL) que sustenta a tradição ocidental da liberdade.


O senhor foi sempre um homem livre. Na minha opinião esteve muitas vezes errado. Mas foi sempre livre.

Resolvi escrever-lhe esta carta num momento em que enfrenta o seu maior desafio. Está a lutar pela sua vida. Infelizmente, pelas notícias que nos chegam, será uma luta muito difícil. Talvez seja uma carta de despedida, mas se há um político em Portugal que mereça uma despedida é o senhor. Vou ser muito franco. Nunca votei em si, nem no PS de resto. Devo confessar que se soubesse o que sei hoje, teria votado em si nas primeiras presidenciais a que concorreu. Mas a verdade é que não votei.

Ao contrário do senhor, não sou socialista. Sou de direita, liberal e, cada vez mais, conservador. Também não sou laico. Acredito em Deus e recebi uma educação Católica. Por fim, embora não seja um monárquico militante (longe disso), admiro mais a monarquia constitucional britânica do que o republicanismo francês. O senhor formou-se na cultura francesa, eu recebi uma educação anglo- -saxónica. Somos assim, culturalmente, de duas pátrias diferentes.

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