Ex-Constituinte; Ex-Ministro da Cultura
Lembro uma frase que senti sempre muito profundamente: “Nós também somos o que os outros fizeram de nós”
Agradeço reconhecido a atribuição deste prémio muito prestigiado, lembrando com admiração as personalidades que anteriormente o receberam. Agradeço à Magnífica Reitora da Universidade Católica Portuguesa, Professora Doutora Isabel Capeloa Gil, ao Doutor Jorge Quintas e ao Professor Doutor Manuel Braga da Cruz as palavras amigas que me dirigiram. Agradeço ao Doutor Guilherme d’Oliveira Martins pela paciência e generosidade muito amiga com que apreciou o currículo da minha longa vida.
mios ou outras distinções, com exceção dos títulos atribuídos por ter sido deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Com a aceitação do Prémio “Fé e Liberdade” quero louvar o excelente trabalho realizado pelo Instituto de Estudos Políticos, que acompanhei desde a fundação, agradecendo ao seu fundador, o Professor Doutor João Carlos Espada, a sua excelente Direção, alargando o meu agradecimento a todos os que nele desempenham várias funções.
Lembro uma frase que senti sempre muito profundamente: “Nós também somos o que os outros fizeram de nós”.
Os anos da formação
Quero lembrar os meus pais que me educaram na fé, na liberdade responsável e na dedicação aos outros, sobretudo os mais carenciados. Graças a eles aos 14 anos já era presidente de uma Conferência de São Vicente de Paulo na minha paróquia, devendo também à Igreja o conhecimento de pessoas de todas as classes sociais, especialmente os mais pobres que viviam nos bairros de barracas de Lisboa ou em edifícios velhos e degradados.
Não esqueço a excelente Escola católica “Avé-Maria”, a sua diretora e as suas professoras. Passados vários anos conheci a Helena e os seus pais que tinham idênticas perspetivas igualmente inspiradas pela fé cristã.
Recordo alguns professores excecionais do ensino secundário. Na Universidade a Juventude Universitária Católica (JUC) deu-me a conhecer novas pessoas e novas realidades, sobretudo ao nível da doutrina e da ação.
Pude admirar e modestamente apoiar a longa luta do Cardeal Cerejeira para obter a criação e o reconhecimento da nossa Universidade Católica. Tinha lido no jornal “Encontro” (de que mais tarde fui diretor e onde conheci e trabalhei com o meu amigo Amílcar Theias, cuja presença aqui agradeço) algo que era para mim incompreensível: como podia haver então Universidades Católicas em diversos países, desde a França, Itália e Espanha até à Holanda, Brasil, Canadá e à própria Polónia, nesse tempo um país comunista, e isso não acontecer em Portugal devido ao estatismo ditatorial de Salazar.
Como sabem, a UCP foi criada em 1967 por um Decreto da Congregação competente da Santa Sé, com a Faculdade de Filosofia de Braga. Só em 1971 foi reconhecida pelo Estado como Universidade com um estatuto próprio pelo Decreto-Lei n.º 307/71, de 15 de julho.
Lembro muito o extraordinário trabalho realizado pelo Professor Doutor Padre José Bacelar e Oliveira, seu primeiro Reitor, que me honrou com a sua confiança propondo-me para o cargo de Secretário-geral da Universidade.
As cheias de 1967
Não vou repetir o que foi dito sobre as inundações de 1967, mas vou acrescentar alguma coisa ao que o Doutor Guilherme d’Oliveira Martins disse. Houve um outro facto: a censura decretou, a mando de quem nunca se apurou, que quando os mortos chegassem a 462 não morria mais ninguém! Mas nós sabíamos que continuavam a aparecer corpos na lama e que houve alguns corpos arrastados para o Tejo. E quisemos dizer: Isto não é possível! Havia um atentado à liberdade, aos nossos valores, à justiça devida a tantas pessoas e um atentado à verdade. Que fazer?
As direções nacionais da JUC e JUCF, que nessa altura trabalhavam em conjunto, fizeram um “caderno de reflexão” que teve várias dezenas de milhares de exemplares e foi distribuído pelos estudantes universitários do país e até um pouco fora do meio académico. Este caderno foi preparado naturalmente com aqueles que tinham tido a iniciativa, três estudantes e membros da JUC/JUCF do Instituto Superior Técnico, entre eles António Cavaco, já falecido, que deixou um importante testemunho sobre o ponto de partida dessa intervenção2. Aproveito para saudar muito especialmente a minha amiga e colega Doutora Manuela Eanes, que já tinha sido presidente da JUCF, com a sua enorme dedicação, a sua compreensão dos problemas da pobreza e das pessoas e a sua ajuda aos novos alunos. Recordo ainda os membros da JUC que tinham travado, em conjunto com as Associações de Estudantes, sucessivas lutas contra a opressão governamental. Foi o caso do Professor Carlos Portas, que em 1956-1957, sendo Presidente de um secção da JUC e dirigente de uma Associação de Estudantes, foi determinante nos protestos para obrigar o Governo o retirar o famigerado Decreto-Lei 40.9003, de 12 de dezembro de 1956, que pretendia espartilhar e controlar ferreamente a atividade das Associações de Estudantes e esvaziar as suas funções.
Na altura da cheias, uma jovem estudante, que usava o nome de Helena Salema, mais tarde Roseta, ofereceu-se para entrevistar os Professores Gonçalo Ribeiro Telles e Nuno Portas para explicarem as razões da gravidade do sucedido. Como foi possível no concelho de Lisboa não morrer ninguém e nos concelhos imediatamente a norte da cidade morrerem centenas de pessoas? Ainda hoje não se sabe o número certo, mas foram certamente bastante mais do que 462. As Associações de Estudantes, das quais eu também era dirigente, tinham um boletim, o “Solidariedade Estudantil”, que informava os estudantes do que acontecia. Mas tinha de haver algo que dissesse não só o que se passou mas as razões do sucedido.
Falei com o Cardeal Cerejeira, que estava indignado com o que se passava e com a injustiça feita aos estudantes. Ele afirmou-nos: Isto que vocês fizeram talvez não seja legal. De facto, o jornal “Encontro” já tinha tentado publicar um texto sobre o que se tinha passado, que foi cortado pela censura. Também não podíamos fazer um livro, porque seria apreendido. Foi assim que nos lembrámos do “caderno de reflexão”. E aquilo que faríamos, se fôssemos perseguidos, seria um protesto imenso a dizer que não se podia calar o que os estudantes fizeram - os estudantes de Medicina que vacinaram as populações, todos os estudantes que estiveram na lama a ajudar e a limpar e fizeram todas as tarefas que se possa imaginar. O Cardeal Cerejeira garantiu-nos: Se os estudantes forem perseguidos, tornarei pública uma condenação da atuação do Governo.
Uma condenação, aquilo que a Santa Sé não o tinha deixado fazer em 1964 - há cartas em que ele refere que a Santa Sé não o deixou protestar quando o Governo insultou o Papa por causa da ida a Bombaim, como se o Papa tivesse de pedir licença para ir a Bombaim! O Papa tinha aceitado não ir a Goa, não ir a Nova Deli que era a capital do Estado, mas em Bombaim havia um Congresso Eucarístico Internacional. Houve uma reação, que me dispenso de reproduzir, do Governo de Salazar. Claro que na Igreja portuguesa muita gente criticou, mas, quando o Cardeal se preparava para fazer uma crítica clara, houve um recado da Santa Sé em que o Papa São Paulo VI (que conheci mais tarde num encontro com a JUC e o CADC - Centro Académico da Democracia Cristã), terá dito: Por minha causa, não façam isso! O Governo parece julgar que é eterno, mas quanto tempo é que este Governo pode durar mais?
O Governo ainda durou mais quatro anos. Salazar tinha dito (Franco Nogueira conta isso na biografia do seu chefe) que jamais aceitaria que o Papa pusesse os pés em Portugal. Mas a verdade é que quando o Papa chegou a Fátima em 1967, no dia do Cinquentenário das Aparições, lá estava o Doutor Salazar beijando-lhe o anel: “Como está Vossa Santidade?” O Papa não pôde deixar de ironicamente responder: “E como está vossa eternidade?”
O século XX e os aniquiladores
É lamentável que hoje muitos esqueçam as violações da Liberdade e dos Direitos Humanos feitas pela ditadura de Salazar. É claro que se pode dizer que houve regimes piores. Numa aula com alunos de um curso de pós-graduação na Faculdade de Ciências Humanas, promovi um debate sobre qual foi o pior momento da história da Humanidade. Alguns falavam nas guerras, massacres e pestes do passado, mas chegámos à conclusão inevitável: o pior tempo da história da Humanidade foi a primeira metade do século XX.
As pessoas referiam os bárbaros, mas há uma célebre dito romano, “Quod non fecerunt barbari, fecerunt Barberini” (ou seja, outros fizeram). O que os bárbaros fizeram não é comparável com as terríveis e esmagadoras máquinas de morte que foram o nazismo e o comunismo estalinista. Nunca houve nada pior na história da Humanidade: dezenas de milhões de mortos, populações inteiras deportadas, escravizadas e em boa parte eliminadas, como no Holocausto e no Holodomor4, para além de destruições infindáveis de património cultural.
O nazismo e o estalinismo estão na categoria dos super-bárbaros, os aniquiladores. Importa é saber se Putin não está também a seguir o caminho dos aniquiladores, destruindo tudo, casas, hospitais, maternidades, escolas e até matando e roubando crianças ucranianas.
A ditadura portuguesa e as violações da Liberdade e dos Direitos Humanos
A ditadura portuguesa violou direitos humanos e suprimiu a Liberdade: impediu a livre expressão do pensamento pela censura dos media e dos livros, liquidou os direitos de associação e de manifestação, limitou drasticamente os direitos sociais dos trabalhadores e ainda mais os direitos das mulheres. Estas eram duplamente discriminadas, não podiam aceder a várias profissões nem votar, e dependiam de autorizações dos maridos para inúmeras ações e para sair do país. Além disso, havia altas taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil e a esperança média de vida era baixa, dadas as más condições sanitárias e a deficiente habitação de grande parte do povo.
Não se podem esquecer, é claro, as três longas guerras coloniais e as deportações de opositores sem julgamento, as prisões políticas, a tortura e os vários assassinatos de resistentes pela polícia política num país que tinha sido um dos primeiros a abolir a pena de morte.
A Constituição e os direitos fundamentais
Depois de 25 de Abril de 1974 a liberdade restaurada foi defendida contra as tentativas de algumas forças políticas de implantar em Portugal uma nova ditadura de sinal contrário, não desejada pelo povo. Este apoiou os militares e partidos democráticos e seus dirigentes, que recordo com muita gratidão, em especial Francisco Sá Carneiro que me escolheu como colaborador próximo. A Assembleia Constituinte consagrou na nova Constituição o primado da pessoa humana, a sua dignidade, a liberdade e os direitos políticos, sociais, económicos e culturais. O nosso caríssimo Professor Mário Pinto foi um dos deputados que mais se destacou. Contribuiu para a consagração de vários princípios fundamentais. Deve-se-lhe, com apoio de outros colegas, a afirmação clara da liberdade sindical na Constituição.
Outras liberdades e direitos foram consagrados, como a tão importante liberdade religiosa, mais tarde concretizada em lei própria5. Não podemos esquecer as crescentes restrições a esta liberdade a que se assiste no mundo. Acaba de ser publicado um relatório da Fundação AIS (Ajuda à Igreja que Sofre). Verifica-se que 61 países não respeitam a liberdade religiosa, tendo nos últimos dois anos piorado a situação em 47 e melhorado apenas em nove. Devemos todos fazer mais neste campo.
Algumas liberdades não ficaram consagradas na Constituição de 1976, a começar pela liberdade de educação6, apesar dos esforços de vários deputados, como Mário Pinto. Ficou apenas a referência a um ensino particular supletivo do ensino público. Continuou o estatismo, com o domínio do Estado sobre todos os graus de ensino, o que foi justamente criticado em documentos da Conferência Episcopal.
O Professor António Luciano de Sousa Franco, que, tal como Mário Pinto, foi sempre defensor daquela liberdade, apresentou comigo, logo na primeira sessão legislativa da nova Assembleia da República, o projeto de lei n.º 25/I para tentar começar a mudar a situação, integrando ao menos doutrinariamente os regimes adotados pela generalidade dos países democráticos, que tinham e têm escolas verdadeiramente livres. Apesar de rejeitado por uma maioria heterogénea e incoerente, o nosso projeto de lei inspirou a Lei n.º 9/79, de 19 de março, que aprovou as bases do ensino particular e cooperativo e, mais tarde, os Decretos-leis que aprovaram o Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo7 e o Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo.8 O Engenheiro Roberto Carneiro, que foi ministro da Educação entre 1987 e 1991, foi muito inovador, designadamente tendo em vista eliminar discriminações no cesso. Nessa altura foi possível avançar, mas a liberdade de escolha ainda hoje não é completa.
A liberdade de iniciativa económica também não foi consagrada na Constituição de 1976. O Professor João Carlos Espada tem justamente criticado os sistemas que, inspirados por ideologias marxistas ou outras, pretendem reduzir a iniciativa criadora dos cidadãos para, através do dirigismo estatal, limitarem a liberdade de cada um, dando origem a novas ditaduras. A liberdade de iniciativa económica pressupõe, naturalmente, o respeito pelos direitos sociais e a garantia pelo Estado de um nível mínimo9. Como se sabe, só em 1989 foi possível abrir finalmente a Constituição à iniciativa privada.
As Convenções do Conselho da Europa
Um direito que foi consagrado através de uma Convenção do Conselho da Europa deve ser referido, pois a sua preparação resultou de um trabalho de importância decisiva, desenvolvido pelo Professor Daniel Serrão, da UCP no Porto. Trata-se da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina10. Sendo na altura Presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Assembleia Parlamentar daquela organização, pude ajudar a convencer muitos deputados que era preciso consagrar princípios fundamentais, como, entre outros, a afirmação de que os interesses do ser humano têm de prevalecer sobre o interesse exclusivo da sociedade e da ciência. Foi também consagrada a necessidade do consentimento informado da pessoa, livre de se sujeitar ou não a uma experiência ou a qualquer tratamento.
No primeiro Protocolo Adicional à referida Convenção, de janeiro de 2005, foi integrada outra solução inspirada pelo princípio cristão da dignidade da pessoa humana: a proibição absoluta da clonagem integral de seres humanos. Esta disposição parece ser seguida em todo o mundo, respeitando o carácter único de cada pessoa e a consequente diversidade enriquecedora de toda a Humanidade.
A nossa Constituição consagrou os direitos culturais, designadamente o acesso à cultura e a liberdade de criação cultural. O Conselho da Europa e, a nível mundial, a UNESCO têm elaborado Convenções de grande importância nesta área. Vou referir apenas a Convenção Quadro do Conselho da Europa relativa ao Valor do Património Cultural para a Sociedade, a Convenção de Faro, de outubro de 2005, que foi preparada por um grupo encarregado de a elaborar, dirigido de forma decisiva pelo Doutor Guilherme d’Oliveira Martins11.
Esta Convenção é inovadora e englobante de todas as Convenções anteriores do Conselho da Europa. Contempla os ideais, princípios e valores que favorecem o desenvolvimento de uma sociedade pacífica e estável, baseada no respeito dos direitos humanos, da democracia e do Estado de direito. Nela se afirma que o património cultural, material ou imaterial, tem de ser considerado individual e coletivamente e os seus benefícios devem ser tratados por forma a contribuir para o enriquecimento de cada pessoa e das comunidades. Há certamente um direito ao património cultural deixado pelos nossos antepassados, incluindo o património cultural imaterial, como cidadãos da União Europeia e até da Humanidade, mas esse direito é um direito/dever. O titular do direito ao património cultural tem simultaneamente o dever de zelar pela sua preservação e promoção.
O direito ao ambiente, o bem comum e a ação política
Finalmente quero referir a área vital que condiciona a sobrevivência da Humanidade e dos direitos de cada pesso, de todas as comunidades humanas e até da vida no planeta: o meio ambiente, que tem de ser harmoniosamente promovido.
São João Paulo II, na encíclica “Laborem Exercens” sublinhou que Deus deu a Terra, planeta tão maltratado, a todos os membros do género humano, devendo ser efetivamente salvaguardo.
O Papa Francisco introduziu nas suas encíclicas “Laudato Si’” e “Fratelli Tutti” o conceito de ecologia integral como modelo a atingir para a sobrevivência da Humanidade e da vida. A luz da Verdade pode atingir-se pela fé, pela razão ou por ambas. Seja como for, “a harmonia de toda a criação exige que os seres humanos se lembrem que estão unidos por laços invisíveis e indestrutíveis e que formam uma família universal”12. Por isso afirma que o meio ambiente, a água, o ar e tudo o mais são património de toda a Humanidade e de cada pessoa. A sua preservação é uma responsabilidade de todos e cada um.
O bem comum é um conceito unificador e central da ética social que apela à solidariedade e às ações necessárias para concretizar o amor ao próximo. Já São Paulo VI na encíclica “Populorum Progressio” tinha afirmado que temos obrigações para com todos e não podemos desinteressar-nos dos que virão, depois de nós, aumentar o círculo da família humana, trecho que o Papa Francisco retomou e desenvolveu.
D. António dos Reis Rodrigues, excecional mestre de muitos estudantes na JUC, escreveu que a solidariedade não une os seres humanos somente aos membros do seu grupo social ou aos seus contemporâneos. Une-os também no espaço aos membros de outros grupos sociais e de outros povos. E une-os no tempo aos seres humanos das gerações vindouras, a favor dos quais é igualmente imperioso trabalhar, a fim de lhes criar condições favoráveis para que venham a realizar-se como pessoas.
Chegamos ao papel essencial da ação política. No início do século XX a Humanidade conheceu a catástrofe que foi a primeira guerra mundial, condenada em absoluto pelo Papa Bento XV como “horrível carnificina” e verdadeiro “suicídio da Europa”, com muitos milhões de mortos, ainda mais mutilados e destruições enormes.
Passados alguns anos, em 1927, o Papa Pio XI afirmou que a política é o campo mais alargado da caridade13: a caridade política. Como nota pessoal, este texto influenciou decisivamente a minha opção pela ação política.
O Papa Francisco, na encíclica “Fratelli Tutti”, afirmou a importância do amor político: “O amor é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor”14.
É mais fácil ver o amor na intimidade, entre marido e mulher, pais e filhos ou outros familiares, mas é o amor ao próximo que pode livrar a Humanidade da extinção através da justiça e da fraternidade. O próximo hoje são todas pessoas da Humanidade. São Francisco de Assis alargou o campo do seu amor fraterno aos animais, às plantas e a todos os seres inanimados que considerou irmãos: o Sol, outros astros, a água, o fogo.
Os problemas que interpelam os jovens
Dirijo-me agora aos jovens. É verdade que Portugal é muito diferente do que foi no passado e eu posso comparar com o que vi antes do 25 de Abril. Mas defronta hoje problemas que esperam pela vossa ação: um grave problema demográfico, com o envelhecimento da população e a baixa natalidade; a pobreza, que ainda abrange mais da quinta parte da população; a falta de trabalhos qualificados e bem remunerados, que leva uma grande parte dos jovens, sobretudo da classe média, a ter de ir trabalhar para o estrangeiro; a dificuldade de encontrar habitação nas áreas urbanas. Refiro ainda: a corrupção, que distorce todas as regras da justiça e limita a liberdade das pessoas que ficam dependentes ou são penalizadas pelos que a praticam; o mau funcionamento da justiça, especialmente pela sua morosidade, que acaba por ser uma justiça com dois patamares: os que têm meios de conseguir que muitos processos prescrevam e os outros, que não os têm.
O deficiente funcionamento de muitos serviços públicos exige uma reforma do Estado, incluindo a alteração do sistema eleitoral. O IEP tem estudado este tema que foi objeto de um livro notável do Professor Manuel Braga da Cruz15.
Verificam-se também repetidas violações de outros direitos fundamentais, como o direito ao bom nome, à reputação e à imagem, bem como à presunção de inocência. Novos problemas estão a surgir como a necessária regulação e controle da inteligência artificial, sob pena de vários direitos fundamentais, a verdade e a igualdade de direitos poderem ser postos em causa. Certamente estes temas ocuparão os vossos trabalhos.
Há uma profunda degradação do debate político que progressivamente se reduz ao binarismo maniqueísta. Este tenta conduzir tudo a posições extremas de permanente luta entre os bons e os maus, ignora a crítica justa, feita com medida, e sobrevaloriza a competição, esquecendo que não é possível viver, e muito menos dirigir sociedades complexas, sem a imprescindível cooperação. Há que rejeitar todas as tentativas de impor, seja por que meio for, um pensamento único ou politicamente correto. É absolutamente indispensável o respeito pela diversidade, um direito que resulta da própria natureza e enriquece as comunidades humanas. A este propósito lembro que numa das revisões constitucionais16 apresentei com alguns colegas uma proposta de consagração do direito de cada um ao desenvolvimento da sua personalidade própria.
Liberdade, responsabilidade e verdade
Séneca sustentava que toda a razão está contida na medida. Sem esta, aquela perde-se e perdem-se perspetivas essenciais, de que destaco, por exemplo, as das relações de Portugal com os países da lusofonia e com outros países do mundo para além dela, que guardam a lembrança e, por vezes, os valores que Portugal deixou no mundo17. Para mim, Portugal no mundo, sim, mas o “mundo português”, mitificado por alguns, não. Nisto reside a verdadeira universalidade e diferença dos portugueses.
Devemos sempre defender a liberdade com responsabilidade e promover a verdade. A nossa Universidade tem justamente a palavra “Veritati” como lema. Ocorre-me também o lema da Universidade de Oxford: “Dominus illuminatio mea”. É Jesus Cristo que ilumina o nosso percurso na Liberdade à procura da Verdade. Para Ele ergo o meu mais profundo e humilde agradecimento.
Saudação final
Quero agradecer aos jovens pelo que já fizeram neste Instituto e nesta Universidade, mas também a todos os membros da vossa geração pelo que possam vir a fazer no país e no mundo.
A Helena e eu temos refletido sobre os prémios e sucessos que muitos jovens portugueses estão a alcançar na ciência, na cultura, desde a literatura à música, à arquitetura, ao cinema e às artes visuais, na economia e em muitas outras áreas, incluindo no desporto de alta competição.
A única coisa que quero ainda acrescentar é uma calorosa saudação final, com os mesmos sentimentos com que alguém me escreveu há cerca de sessenta anos: com muita confiança, com forte amizade e sobretudo com imensa esperança!
1 Texto completo da intervenção proferida por ocasião da aceitação do Prémio Fé e Liberdade no dia 28 de junho de 2023 no Hotel Palácio do Estoril.
2 “Das inundações de 1967 à crise de 68/69 no Técnico. A intervenção da JUC no Técnico”. António Cavaco, in “Os católicos e o 25 de Abril”, Povos e Culturas, CEP/CEP – UCP, 2014.
3 Ver “Histórias da minha Vida”, Carlos Portas, SINATIS, 2019.
4 O “Holodomor”, termo que significa literalmente “matar pela fome”, foi levado a cabo pelo governo soviético na Ucrânia entre 1932 e 1933, causando a morte de milhões de ucranianos.
5 Lei n.º 16/2001, de 22 de junho.
6 O artigo 75ª da Constituição, cuja epígrafe inicial era “Ensino público e particular”, foi modificado na 1ª revisão, em 1982, e na 2ª revisão, em 1989. A epígrafe inclui, desde 1982, o ensino cooperativo. Na sua redação atual, o n.º 2 do artigo dispõe que “O Estado reconhece e fiscaliza o ensino particular e cooperativo, nos termos da lei”.
7 Decreto-lei n.º 553/80, de 21 de novembro.
8 Decreto-lei nº 271/89, de 19 de agosto.
9 Para Winston Churchill, o nível mínimo devia incluir “mínimos de salário, de segurança contra a possibilidade de cair no mínimo devido a um acidente, a uma doença ou à fragilidade de carácter”, como refere João Carlos Espada no ensaio “O mistério do inglês e a corrente de ouro”, Aletheia Editores, 2010, pág. 205.
10 Esta Convenção, também conhecida como Convenção de Oviedo, entrou em vigor em dezembro de 1999.
11 Ver “Património, Herança e Memória – A Cultura como Criação”, Guilherme d’ Oliveira Martins, Gradiva, 2009, págs. 37 e seguintes.
12 Ver encíclica “Laudate Si’”, de maio de 2015.
13 “Discurso à Federação Universitária Católica Italiana”, de 18 de dezembro de 1927.
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