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EPF 2002 - Lançando o debate

Isabel Capeloa Gil

Isabel Capeloa Gil

Reitora da Universidade Católica Portuguesa

O Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa afirmou-se de forma sustentada como honest broker do pensamento democrático em Portugal

Senhor Presidente da Câmara de Cascais, Dr. Carlos Carreiras, Senhor Diretor do Instituto de Estudos Políticos da UCP, Prof. João Carlos Espada, Srs. Embaixadores, Docentes, estudantes, palestrantes, distintos convidados, Minhas senhoras e meus senhores

Voltamos, em presença, a reunir-nos no Estoril Political Forum e as minhas primeiras palavras não podem deixar de ser, de novo, tal como aconteceu em outubro de 2021, de regozijo pelo regresso da presença real, que não é apenas a manifestação de uma materialidade básica, mas o reconhecimento tácito que de existe na interação dinâmica de corpos no mesmo espaço uma produção de sentido que ultrapassa a mera informação. Isto é, os corpos em presença também têm capacidade de conhecer, intuir, aquilo que a teoria da cognição designa como ‘conhecimento tácito’.

EPF 2002 - Lançando o debateTodavia, não é apenas um consenso tácito que o Instituto de Estudos Políticos da UCP continue a ser um reservatório da formação de excelência e do debate informado no ambiente crescentemente tensional da atividade política. O Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa afirmou-se de forma sustentada como honest broker do pensamento democrático em Portugal, lançando o debate e formando cidadãos capazes de pensar estratégica e responsavelmente o futuro, razão pela qual cumprimento o Diretor do Instituto, Prof João Carlos Espada e a sua equipa de Direção que, com clarividência e assertividade têm vindo consistentemente a afirmar a exigência de um debate político solidamente informado para que a qualidade da nossa democracia saia reforçada. Para que possa subsistir perante as ameaças autocráticas, que são constantes e permanentes exige-se uma educação de qualidade, livre e informado e é essa a missão que a Universidade Católica Portuguesa tem vindo a afirmar em Portugal, desde a sua fundação em 1967.

Caros participantes do Estoril Political Forum, Estimados convidados

É com grande prazer que vos dou novamente as boas-vindas ao Estoril Political Forum e a este extraordinário sítio. Este ano, o Forum enfrenta o desafio autoritário, um desafio tanto da macro quanto da micropolítica. Um desafio que tanto se põe ao abrangente e geral, como às pequenas práticas quotidiano.

A educação é fundamental para libertar o potencial de transformação que é necessário para que a nossa casa comum tenha futuro. A guerra na Ucrânia esmagou as grandes conquistas da modernidade tardia: a paz, o direito à alimentação, à educação, ao abrigo, o estado de direito e o pluralismo político. Basicamente, a guerra na Ucrânia perturba o direito básico de ter direitos que sustenta a ordem democrática moderna. Nestes tempos difíceis de necessidade, as nossas reflexões nesta assembleia estão sismicamente conectadas com a tragédia do nosso tempo e com a responsabilidade de quem defende a verdadeira liberdade de levantar a voz e agir de forma sistemática e consistente contra o narcisismo nepótico do autoritarismo.

A nossa situação actual, difícil, que se materializou em guerra total, ganância corporativa e agravamento da crise climática, intolerância e disrupção social, deriva do crescendo de um raciocínio dissonante, que coloca a utilidade de tudo antes do seu valor intrínseco, reduz o valor à monetização e instrumentaliza a humanidade para atingir objectivos de curto-prazo. Num ensaio escrito durante a ocupação da Polónia na Segunda Guerra Mundial, o escritor Czeslaw Milosz observou que mais do que a violência pura que era infligida aos seus compatriotas, o elemento mais corrosivo das acções dos ocupadores era a disrupção de um sistema estruturado de conhecimento, comportamento e crença, menosprezado por uma agenda anti-intelectual. “De contradições profundamente enraizadas no nosso sistema de conhecimento”, escreveu ele, “surgiu uma convicção sobre a incognoscibilidade fundamental do mundo, juntamente com uma compreensão da verdade com responsabilidade limitada, verdade para uso humano, sem qualquer pretensão de obrigatoriedade eterna.” (Milosz, 2005: 70) A democracia sustém-se no empoderamento dos indivíduos para fazer escolhas ponderadas, fundamentadas no Estado de Direito, no pluralismo político e nas liberdades básicas que garantem a dignidade humana e a coexistência tolerante da diferença respeitosa. A democracia nunca se realiza porque se baseia na possibilidade de os indivíduos raciocinarem e pensarem, escolherem e discordarem. Baseia-se no potencial – para entender e fazer escolhas informadas – e na confiança. Hannah Arendt, em Origins of Totalitarianism, afirma que ““A pessoa ideal para o totalitarismo não é o nazi ou o comunista, mas aquela para quem a distinção entre facto e ficção (isto é, experiência real), e a distinção entre verdadeiro e falso (isto é, os padrões de pensamento) já não existem”.

A democracia requer a capacidade de seleccionar e distinguir. A acção política não pode ser incluída na simplificação. Requer um compromisso para com perspectivas diferentes, visões antagónicas, entendimentos plurais da realidade, tão diversos como as situações da nossa humanidade heterogénea, para com a complexidade, no fundo. Se queremos honrar um interesse comum uns pelos outros ou, como o Papa Francisco escreve em Fratelli Tutti, honrar uma dívida e responsabilidade comum (FT, 35), não há outra maneira senão a de nos mobilizarmos contra combinações sociais humilhantes, degradantes e injustas que persistem em limitar o acesso de alguns grupos a direitos de outros. Há um certo direito vernacular à narrativa, a contar a história e à memória, por mais contraditório que seja o passado e diverso seja o presente, que está subjacente à afirmação fundamental de Hannah Arendt de ‘o direito a ter direitos’. As prediposições autoritárias, pelo contrário, não podem ser incomodadas pela complexidade. Elas incutem narrativas simples, como temos testemunhado em diferentes ocasiões, desde as ameaças à vida por acções na Rússia contra a guerra de Putin na Ucrânia ou os ataques de 6 de Janeiro de 2021 ao Capitólio americano. O autoritarismo, como afirma a cientista política Anne Applebaum, é um ataque à complexidade (Applebaum, 2021:106).

A democracia requer a capacidade de seleccionar e distinguir. A acção política não pode ser incluída na simplificação. Requer um compromisso para com perspectivas diferentes, visões antagónicas, entendimentos plurais da realidade, tão diversos como as situações da nossa humanidade heterogénea

EPF 2002 - Lançando o debateA luta contra narrativas sociais complexas ocorre em todos os lados da divisão política e é atravessada tanto pela nostalgia de um passado que nunca existiu como pelo activismo por um futuro que ainda não está traçado. A situação atual não nos retira responsabilidade. O fracasso das democracias liberais em fechar o iato da desigualdade, em escolher a dignidade sobre o lucro apesar de haver possibilidades científicas e financeiras para o fazer, em articular o interesse próprio com o bem comum, desacreditou perigosamente o sistema. A ascensão do incongruente conceito de ‘democracia iliberal’ e e as crescentes tentativas de mostrar o sucesso do capitalismo autoritário sobre seus homólogos democráticos, por um lado, e, por outro, a incapacidade das democracias de construir coligações baseadas em valores e agir, mesmo em autodefesa, quando a ação é essencial, sugere que o ‘farisaísmo da democracia’ (Milosz, 2005:85) que Czeslaw Milosz viu em ação na Liga das Nações na década de 1920 ainda existe em abundância.

Mas para todos nós há esperança. É isso que nos faz andar em frente e nos permitirá avançar. A democracia está longe de ser um sistema perfeito, mas ainda é o melhor, com exclusão de todos os outros. Nas palavras da poetisa norte-americana Amanda Gorman, “Embora a democracia possa ser adiada periodicamente,/ Ela nunca pode ser derrotada permanentemente”, (18) a sua grandeza está no propósito de vivermos juntos em harmonia, com respeito a todos. E esse é um objetivo que o falso brilho do espetáculo autoritário pode adiar, mas nunca conquistar. Que todos nós, e todos vocês, façamos a nossa parte para enfrentar o desafio!


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