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Niall Ferguson |
Carlos Marques Almeida
Doutorando do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa
A pergunta impõe-se como uma espécie de condenação à lucidez – o que distingue então o Ocidente na confusão das ruínas de tantas civilizações? Em Civilization – The West and the Rest, Ferguson identifica um conjunto de seis elementos (“killer apps”) que estão na base da ascensão e domínio Ocidentais. Em primeiro lugar surge a Competitividade, entendida como a descentralização da vida política e económica dando origem aos estadosnação e à economia de mercado. Logo a seguir vem a Ciência, um modo de inquérito, de estudo e de compreensão que, em última instância, permitiram o domínio e a transformação do Mundo Natural. Em terceiro lugar são eleitos os Direitos de Propriedade, uma condensação do estado de direito como forma de protecção da propriedade privada e de resolução pacífica dos choques e dos naturais conflitos entre interesses legitimamente divergentes. Com esta categoria, o Autor justifica a formação do Governo Representativo enquanto expoente máximo da estabilidade do Governo dos Homens pela acção dos Homens. Segue-se na sequência a Medicina, um ramo da Ciência que permitiu o controlo da doença e a expansão do horizonte temporal da existência humana. Em quinto lugar é a Sociedade de Consumo que assume o protagonismo, a configuração de um modo de produção material que exponencia uma Revolução Industrial colossal nos seus efeitos de escala, economicamente avassaladora e imparável na resposta às necessidades materiais
de uma Sociedade de Bem-Estar. Finalmente, é a Ética do Trabalho, uma emanação directa do espírito do Cristianismo (na interpretação de Ferguson uma derivação essencialmente atribuível ao Cristianismo Protestante), e que encerra o elenco de categorias ao constituir a fibra moral que mantém a coesão e a unidade de um movimento dinâmico e potencialmente instável criado pela interacção das cinco primeiras categorias. Uma breve contemplação desta essência do Ocidente permite ao observador esclarecido identificar desde logo uma particular tradição da teoria política – John Locke, Adam Smith, o Iluminismo céptico e a moldura moral do Cristianismo. A novidade de Ferguson é apenas a reafirmação de uma identidade deliberadamente silenciada pela deriva relativista da auto-negação.
Quando o Autor afirma que se assiste ao fim de uma ascendência do Ocidente longa de 500 anos, tal significa que algumas destas categorias começaram a ser copiadas e aplicadas em regiões antes estagnadas por motivos culturais e ideológicos, nomeadamente, na imensidão do Império do Meio, a China. O paradoxo do declínio do Ocidente é assim a resultante do triunfo do Ocidente, uma força universal que pela sua abertura e expansão no Mundo se fragmentou até ao limite de uma potencial extinção. No entanto, Ferguson não é um historiador do fim dos séculos, não é um pensador dominado pelas neuroses do declínio, nem mesmo um profético intelectual intérprete do sentido da História.
A questão do entendimento da História merece uma reflexão mais atenta. O Autor sofre de uma profunda influência de um filósofo de Oxford que dá pelo nome de R.G. Collingwood. De modo sucinto, esta influência concretiza-se de diversas formas, nomeadamente, e numa ordem livre de exposição – a) O passado não é uma recorrência mo r t a no tempo, mas sim uma realidade inscrita no presente; b) Toda a História é uma História do pensamento; c) O processo de inferência histórica requer o privilégio da imaginação que se projecta no passado; d) O real significado da História resulta de uma sobreposição entre passado e presente; e) A função da História é a de permitir uma profunda penetração intelectual que ilumina e explica as incidências do presente; f) Os verdadeiros problemas da História nascem dos verdadeiros problemas práticos, uma eloquente “present-mindedness” que mantém a continuidade entre o passado e o presente. Há aqui uma óbvia vibração burkeana, uma dimensão conservadora que se propaga na visão do Mundo que Ferguson pratica e que se concretiza na presente reflexão sobre o Ocidente. A crença na História é também a crença na resiliência do espírito humano, logo o Autor não se abandona ao registo prolixo da literatura do declínio. Pelo contrário, é precisamente a falta de confiança, a pusilanimidade, a ignorância da causa da História, tudo convenientemente concentrado na recusa dos seis elementos elencados por Ferguson, que ameaçam o Ocidente com a degeneração, com o declínio e com a extinção. A grande ameaça ao Ocidente não parte de nenhuma outra civilização, nasce sim de um niilismo iluminado e auto-suficiente transformado em modo de vida.
Uma breve contemplação desta essência do Ocidente permite ao observador esclarecido identificar desde logo uma particular tradição da teoria política – John Locke, Adam Smith, o Iluminismo céptico e a moldura moral do Cristianismo
Assim, os “killer apps” de Ferguson são verdadeiramente os valores constituintes da Civilização do Ocidente, categorias hoje separadas e dispersas pelo Mundo sem que alguma vez se entenda que a diferença Ocidental reside no ‘ensemble’ dos seis elementos combinados em graus múltiplos de complexidade. Refira-se aliás que o Autor não defende uma concepção de História cíclica, nem mesmo uma ideia de História movida por uma certeza dialéctica. A História, e fazendo uma transposição conceptual, a Civilização do Ocidente é entendida como um sistema complexo, caracterizado por longos períodos de ‘stasis’ seguidos por mudanças súbitas e radicais, comportamento este descrito pela ideia de um “equilíbrio pontuado”. A interpretação quase ‘naturalista’ de Ferguson reforça a estabilidade do Ocidente em uníssono com uma contínua capacidade de modificação e de adaptação. A flexibilidade Ocidental é a resposta para um futuro em aberto, a resposta que se desenha em permanência através de uma pluralidade de futuros possíveis. Nada é ainda definitivo porque nada está ainda definido.
No início e no final de Civilization, Ferguson não deixa de exibir uma profunda atracção pelo Oriente. Aliás, existe um espectro que vagueia silencioso por toda a obra, e esse espectro tem os exactos contornos de uma omnipotente China. Seja o passeio ao longo do Bund de Shanghai, seja o nevoeiro e a poeira de Chongquing, seja a encantatória música de Angel Lam na sua “Orientalização da música clássica” do Ocidente, o fascínio Oriental é uma variante dos fumos do ópio que prenderam múltiplas gerações a paraísos artificiais e que cativam a alma e o espírito do Autor. Neste ponto importa uma referência inspirada no livro Civilisation (1969) da autoria de Kenneth Clark. A nova face da cidade de Shanghai assemelha-se na violência e na dimensão do empreendimento a um imenso espectáculo da Natureza. A Natureza aqui é a representação do engenho do Homem à superfície do Planeta. Kenneth Clark escreve sobre as grandes catedrais Góticas e apetece sublinhar que Shanghai é uma imensa catedral edificada em glória da prosperidade do lucro ao serviço de uma nova engenharia social. Ao longe, Shanghai projecta o brilho e a imponência de uma cidade celestial. Ao perto, Shanghai absorve a metálica espiral da voracidade humana - fria, cruel, implacável nas ambições e parasita de todos os sonhos. Shanghai é a versão pósmoderna do “materialismo heróico” de que fala Kenneth Clark. O ‘vortex’ gerado pela ideia não deixa de quase confundir Ferguson. No entanto, o Autor permanece sobretudo consciente da fissura moral e intelectual da Civilização do Ocidente. Como escreveu W.B. Yeats, The best lack all conviction, while the worst / Are full of passionate intensity. A Niall Ferguson não lhe falta a convicção de que o Ocidente se confunde no tempo e na História com a Civilização da Liberdade. Eis uma rara percepção em tempos tão conturbados.
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