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Em Political Hypocrisy – The Mask of Power, from Hobbes to Orwell and beyond, David Runciman argumenta que a hipocrisia política é inevitável, persistente e omnipresente nas democracias liberais. |
Political Hypocrisy - The Mask of Power, from Hobbes to Orwell and beyond |
POR CARLOS MARQUES DE ALMEIDA
Doutorando no Instituto de Estudos Políticos da Universid id ade Católica Portuguesa
Sendo no entanto um vício, a crítica à hipocrisia degenera demasiadas vezes numa hipocrisia de segundo grau que, enaltecendo a virtude e a verdade, pratica exactamente o defeito que pretende redimir com a verdade e a virtude. O mundo de Runciman é assim um lugar peculiar e no qual a virtude se transforma na prática sofisticada e superior do vício. Não será o mundo às avessas, mas será certamente uma planície de espelhos que reflectem uma imagem até ao limite infinito em que a hipocrisia e a sinceridade se fundem na imaginação e na quimera.
A questão pode ser entendida no dilema da escolha livre e democrática – que variedade de hipócrita deve ser objecto de selecção política? A questão ilumina-se com o brilho de um reflexo cínico. No entanto, para David Runciman a expressão máxima de um gesto cínico será precisamente a pretensão de considerar a política da perspectiva da verdade. Para o Autor, a forma mais insidiosa de hipocrisia política coincide rigorosamente com a afirmação de uma política livre e expurgada do vício da hipocrisia. Em política, o vício não presta tributo à virtude, tanto mais que a virtude e o vício se escondem nas palavras e se juntam no rosto real e fictício que compõe a máscara. Abstraindo as questões de método e a dimensão normativa inerentes à teoria política, para David Runciman a política é e será sempre um teatro de máscaras.
Deste modo, a reflexão regressa ao início. No princípio, a hipocrisia vivia nos palcos de um teatro. Na Grécia Antiga, o hipócrita seria o actor, o indivíduo que esquecia a sua personalidade para poder representar todas as personalidades. Originalmente, o termo grego hypocrisis significava representar uma personagem. Assim, a hipocrisia seria um termo técnico e descritivo associado à arte teatral, não existindo qualquer sentido pejorativo ou emanação de natureza moral. O actor seria o intérprete de uma vontade ditada pelo dramaturgo. O hipócrita deveria mentir para dizer a verdade, o hipócrita dizia o que não pensava e mostrava o que não sentia. Na realidade do teatro, no espaço convencional de um ritual, na fronteira delimitada pelo proscénio, a hipocrisia não representava, nem um vício, nem uma virtude. Mas no dia em que o actor deixou o palco e se aventurou pela vida real e corpórea, a hipocrisia invadiu o mundo e encontrou na política um palco no meio do mundo. O hipócrita deixava de ser o rosto da ficção e passava a constituir-se como parte integrante da face do homem na cidade. Para além do enredo e do jogo das personagens, o hipócrita vivia agora no meio de nós. No meio de uma audiência inocente da sua condição, livre das convenções teatrais e de um enredo particular, o hipócrita feito político ganhou uma soberba liberdade para adoptar uma incomensurável variedade de máscaras. Colocada entre o observador e o rosto real, a máscara projecta sempre no mundo um olhar passível de um conteúdo político e de um juízo moral. Como escreveu Oscar Wilde – “Give a man a mask and he will tell you the truth”.
O drama e a política partilham uma relação nem sempre óbvia com a realidade. Se a política é limitada à “arte do possível”, para Aristóteles o drama poderia ser considerado a “arte do provável”. De acordo com Robert Grant, talvez o que torna o drama plausível será a razão exacta que faz da política o ofício do possível, nomeadamente, o reconhecimento comum de uma natureza das coisas humanas, bem como a fidelidade partilhada em relação à superfície das aparências vivas. Deste modo, o drama estaria circunscrito a um naturalismo pobre e a política condenada a um pragmatismo frívolo. Em ambas as esferas dominaria a tipificação e a generalização e cujo corolário seria um entendimento do mundo suportado na transcendência parcial do imediato. O drama e a política são modos diferenciados do pensamento humano, tanto quanto são formas diferenciadas de abstracção sobre a matéria humana. Nesta perspectiva, Political Hypocrisy representa uma tradição da teoria política em que a dimensão dramática e o sentido da realidade estão constantemente presentes. Entre o is e o ought to be, David Runciman percorre as vicissitudes da hipocrisia no contexto da fi losofi a política liberal, um percurso marcado por uma incontornável tensão e pela emoção própria das contingências de um drama.
A sequência de autores que Runciman convoca no livro pode surpreender pelo inesperado e pelo tema – Thomas Hobbes; Bernard Mandeville; Benjamin Franklin, John Adams e Thomas Jefferson; Jeremy Bentham; Anthony Trollope, John Morley e Henry Sidgwick; George Orwell. A escolha heterodoxa justifica-se pela tentativa de encontrar um discurso coerente sobre a hipocrisia no pensamento político liberal, o que justifica a selecção de Autores que representam uma tendência anti-hipocrisia enquanto persistentes e impenitentes truth-tellers. A moral, se de facto existe uma moral, reside na aceitação da hipocrisia como um facto corrente da política liberal e democrática - reconhecimento que não exige resignação, nem impõe uma adesão cínica. A solução de Runcimam implica a cessação do esforço de erradicação de todas as variedades da hipocrisia, impondo o reconhecimento de um limite, a identificação de uma categoria benigna e a denúncia de uma espécie maligna. Finalmente, surge a proposta para o fim de uma saga que se transformou no grande fetiche da política liberal – a concretização do ideal da sinceridade e da autenticidade como virtudes cardeais do homem político. No discurso de David Runciman, a hipocrisia política não se libertou da realidade do vício a que sempre pertenceu. No entanto, quando se começa a distinguir e a adjectivar um vício caminha-se tranquilamente na direcção do relativismo.
O tema da sinceridade e da autenticidade é um clássico da teoria política. Jean-Jacques Rousseau será um Autor imediatamente convocado pela memória mais ilustrada e em defesa da revelação do autêntico e do genuíno, não apenas no político, mas de todos nós através do político. Mas Rousseau está também no centro da meditação de Bernard Williams em Truth and Truthfulness (2002) a propósito dos perigos de uma autenticidade procurada ou imposta enquanto valor supremo. Em Political Hypocrisy, o capítulo sobre George Orwell (curiosamente, ou não, um jornalista e escritor) será o que remete o leitor para a evidência de uma longa agonia no conceito de autenticidade e na exigência da verdade elevados ao extremo de uma situação limite. No romance Nineteen Eighty-Four quando Winston Smith é conduzido à sala de interrogatório, o fatídico Room 101, depara-se com a simplicidade pura da nudez de um gabinete anónimo. Não existe sofisticação, não é visível qualquer representação da ameaça, visão do inferno ou promessa de violência. O vazio da sala está desenhado para ampliar, à dimensão do insuportável, a verdade mais profunda que Winston Smith julga segura no silêncio da alma ou no conforto do cérebro. Cada indivíduo é habitado por um fantasma, espécie de terror ou medo absoluto que, para não o dominar, tem de ser dominado pela auto-ilusão e pela dissimulação. No entanto, em Nineteen Eighty-Four não existe um espaço livre e impermeável à política, toda a verdade é a verdade política, toda a mentira é a verdade política e o território interior e íntimo do indivíduo é também uma verdade manipulável e política. É o mundo em que a máscara política se esconde na sombra de uma outra máscara, em que a hipocrisia tanto pode ser um capricho do Poder como pode simplesmente ser dispensada a favor de uma verdade insuportável e fatal no delírio de pureza. Se a hipocrisia é simulação, dissimulação e mentira, não será infinitamente mais humano tolerar a máscara da hipocrisia em Winston Smith? Qualquer que seja a resposta, sempre volátil e complexa, esta descreverá sempre uma inquietação que constantemente reinventa o dilema humano no mundo da política e que a narração alegórica de Orwell revela enquanto constante moral face a uma versão patológica da verdade.
A hipocrisia política é um facto da existência humana. Verdadeiro. Mas quando o homem se torna insensível à hipocrisia, tal só pode significar que passa pelo mundo sem alma.
Torna-se óbvio que a colecção de ensaios pretende ultrapassar uma lacuna, atribuída à teoria liberal, relativamente à reflexão sobre a presença e necessidade da hipocrisia na política. Existem duas versões da acusação. A primeira visão, a mais moderada, afirma que a teoria liberal estará tão comprometida com o ideal da autenticidade e da verdade que simplesmente não entende a inevitabilidade da hipocrisia na acção política. Uma segunda avaliação, a mais radical, sublinha que a teoria liberal terá um profundo entendimento da hipocrisia, mas ao simular deliberadamente uma falsa inocência, transforma-se numa manifestação suprema da hipocrisia. Face a esta equação de variável dupla, a proposta de Runciman limita-se ao reconhecimento de uma evidência realista no contexto de uma análise localizada nas circunstâncias do tempo e da teoria, com momentos brilhantes, mas que por vezes se perde no deleite intelectual pelo paradoxo.
No final, a leitura de Political Hypocrisy abandona o compagnon de route no incómodo mundo da fatalidade. O leitor interroga-se sobre o lugar e a importância da virtude na política. No livro não existem valores, princípios, um ténue gesto que seja de exigência moral ou da simples necessidade de dominação da natureza animal que habita o Homem. Afinal, o auge da civilização continua a ser o lugar da besta.
Em Les Rêveries du promeneur solitaire, Rousseau faz a distinção entre o homem moral e o homem bom. O homem moral age animado pelo sentimento do dever e tem o carácter do cidadão verdadeiro. O homem bom segue o seu instinto natural, uma primeira natureza imune à corrupção da vaidade. O homem político de Runciman não é bom nem é moral, mas responde exclusivamente às circunstâncias, numa sequência em que a necessidade e a superação instantânea são uma segunda natureza. De certa maneira, o livro de Runciman convida à resistência para não provocar o desespero.
A hipocrisia política é um facto da existência humana. Verdadeiro. Mas quando o homem se torna insensível à hipocrisia, tal só pode significar que passa pelo mundo sem alma.
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