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Sabemos hoje que o radicalismo de Maio não triunfou: em Junho, o General De Gaulle venceu as eleições com margem folgada. |
Roger Scruton |
João Pereira Coutinho
Professor IEP-UCP; Cronista, Folha de São Paulo
O Maio de 68 foi há 50 anos e a data merece ser relembrada. Não pelos acontecimentos em si – uma mistura de delírio juvenil com violência marxista – mas porque os événements de mai deram ao mundo um brilhante filósofo conservador.
O seu nome é Roger Scruton (n. 1944) e foi em Paris, onde se encontrava à época, que Scruton se descobriu “um rebelde contra a rebelião”: se os revolucionários pretendiam a subversão das instituições “burguesas” do país (aquelas que, convém lembrar, garantem a existência de um Estado de Direito e de uma democracia liberal), Scruton estava do lado oposto das barricadas e por lá ficou.
Sabemos hoje que o radicalismo de Maio não triunfou: em Junho, o General De Gaulle venceu as eleições com margem folgada. Mas a importância de “Tolos, Impostores e Incendiários” está na forma como Scruton demonstra uma estranha vitória do marxismo e dos seus herdeiros: se eles falharam no mundo real, o mesmo não aconteceu nos círculos intelectuais, académicos ou mediáticos.
O próprio Scruton foi vítima dessa vitória amarga: quando publicou uma primeira versão deste livro, em 1985, a sua carreira académica nunca mais recuperou. Em contrapartida, os seus colegas de geração, que seguiram a cartilha dos tolos, dos impostores e dos incendiários, continuaram tranquilamente a debitar sabedoria fraudulenta e a atacar a civilização e as instituições que lhes garantiam sustento e estatuto.
Não é possível resumir aqui a variedade de tolos, impostores e incendiários que esta obra denuncia. A tarefa seria redundante quando o estilo de Scruton é rico e merece leitura atenta.
Com ironia e conhecimento vasto sobre os objectos da sua crítica, Scruton vai anatomizando a história marxista de Hobsbawm; o activismo judicial de Dworkin; o fervor revolucionário de Sartre; as imbecilidades autoritárias de Althusser; sem esquecer, claro, os delírios circenses do incontornável Slavoj Zizek.
Mas se existem dois pensadores que merecem aqui uma referência especial, eles são Antonio Gramsci (1891 – 1937) e Michel Foucault (1926 – 1984). Primeiro, porque ambos simbolizam na perfeição a “cultura de repúdio” que Scruton combate – um repúdio à herança moral, política, social e espiritual do Ocidente. E, em segundo lugar, porque Gramsci e Foucault adquiriram estatuto sagrado na “terra devastada” das chamas “Humanidades”.
Era quase inevitável que Gramsci fosse adoptado pelos “intelectuais”. O teórico italiano atribui-lhes um papel na grande revolução marxista que serviu como uma luva para a vaidade da espécie.
Para Gramsci, e na interpretação certeira de Scruton, a classe burguesa capitalista não detém apenas o controlo dos meios de produção. Muito mais decisiva, e muitíssimo mais perniciosa, é a “hegemonia” cultural que os burgueses exercem sobre a sociedade e o Estado. De que forma?
Pela religião, pela educação, pela comunicação. O repto de Gramsci, lançado da prisão, é evidente: cabe aos intelectuais apoderarem-se dessa “hegemonia”, pas- toreando as almas proletárias rumo ao desejado fim.
Como escreve Scruton, Gramsci retirou a revolução das ruas e das fábricas (onde ela sempre foi recusada pelos trabalhadores reais, acrescento eu) e remeteu-a para as altas esferas da cultura. Hoje, visitar grande parte dos departamentos de Humanidades nas universidades ocidentais é comprovar, in loco, que os herdeiros de Gramsci cumpriram bem o seu papel.
Se os “pensadores da Nova Esquerda” começaram por assaltar a linguagem, é preciso devolver a certos termos – “capitalismo”, “poder” – o seu verdadeiro e expurgado significado
E cumpriram esse papel pela aplicação rigorosa dos ensinamentos de Michel Foucault. Para Scruton, Foucault teria alterado significativamente a própria noção de “verdade”. Para o pensador francês, a “verdade” é gerada pelas “formas de dominação” social presentes na sociedade (no fundo, Foucault revisita e repete o conceito de “ideologia” em Marx). Ou, dito de outra forma: o que interessa na inquirição intelectual e política não é saber se algo é verdadeiro – mas quem propaga essa “verdade”.
Consequentemente, cabe ao intelectual revelar as estruturas de poder que infligem essa “narrativa” sobre a massa ignara e libertar as vítimas da opressão e do obscurantismo. Uma vez mais, o discurso multiculturalista, anti-ocidental, relativista e niilista que se ensina por aí não anda longe deste caderno de encargos.
Perante isto, a pergunta leninista por definição: o que fazer?
Roger Scruton lida com o desafio no último capítulo para nos dizer: se os “pensadores da Nova Esquerda” começaram por assaltar a linguagem, é preciso devolver a certos termos – “capitalismo”, “poder” – o seu verdadeiro e expurgado significado.
Mas é preciso também defender algu- mas ideias que a tirania marxista sempre se esforçou por destruir. A importância da sociedade civil como resistência face ao poder centralizado é uma delas. A importância de certas instituições independentes, capazes de fornecer aos indivíduos o património moral e epistemológico das geração passadas, é outra ainda. Sem esquecer a soberania do “império da lei”, sempre acima dos caprichos ressentidos dos homens.
É um bom programa. Tão bom que é raro encontrá-lo em muitas escolas ou órgãos de comunicação social. É por isso que o livro de Scruton se assume como uma luz na (quase) escuridão.
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