Este debate generaliza-se por maioria de razão à descoberta do outro com quem a Europa é confrontada na reconstituição de uma nova ordem internacional. | |
A Estranha Morte da Europa |
Sónia Ribeiro
Professora IEP-UCP
Controverso e provocador, o livro “The Strange Death of Europe”, de Douglas Murray, terá pelo menos o mérito de constituir nova oportu- nidade de discussão e recentragem do debate estruturante sobre a existência de uma identidade europeia e suas formas e conteúdos.
Este debate permaneceu durante várias décadas latente na Europa – restrito a círculos intelectuais e académicos –, até que a precipitação dos acontecimentos de final da década de 80 e seus desenvolvimentos nas décadas seguintes o trouxeram para a praça pública, em discussões cada vez menos eruditas e mais populares, acompanhando o alargamento da UE em 2004, e depois em aprofundamento e cada vez maior intensidade na discussão publica sobre o Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa; a crise económica e financeira a partir de 2009, a crise migratória com pico assinalado em 2015 e o Brexit, e que tem na ascensão do populismo e reafirmação de partidos de extrema direita no espectro político e governativo em vários países europeus o seu mais recente episódio, agora com relevância política estrutural.
Como nota Ian Almond 1 , no seu novo livro, o jornalista e comentador britânico reúne “um fluxo incrivelmente unilateral de estatísticas, entrevistas e exemplos, refletindo uma clara decisão de tornar o livro uma reivindicação retórica de que a Europa está condenada à autodestruição (...) reunidos a partir de notícias mainstream, as suas próprias entrevistas com vários migrantes encontrados em viagens dentro da Europa, e uma série de meditações sobre cultura, identidade e religião para suportar um único argumento: que a Europa como a conhecemos está condenada à autodestruição, e que o Islão terá um papel central a desempenhar nessa auto-aniquilação”.
O seu argumento parece assentar numa ideia de Europa, numa ideia de identidade cultural preexistente e agora ameaçada pela presença – ou tentativa de presença – nas sociedades europeias, de outros culturalmente distintos, face aos quais será inevitável o enfraquecimento cultural e identitário europeu, também ele orientado politicamente para um multiculturalismo que deve tolerar todas as diferenças culturais e, ao fazê-lo, implicar a diluição da identidade própria dos europeus até ao seu desaparecimento.
Inicialmente, e até meados da década de 2000, autocentrado (tratava-se de discutir se e quais os traços estruturantes de uma identidade europeia, e aferir se os povos que habitam os países do leste e oriente europeu comunga- riam desses traços essenciais de identidade cultural), este debate generaliza-se por maioria de razão à descoberta do outro com quem a Europa é confrontada na reconstituição de uma nova ordem internacional pós-Guerra Fria e na sequência da Primavera Árabe e das vagas migratórias que a partir do fracasso da reconstituição de sistemas estáveis no norte africano e em extensão ao médio oriente começam a fluir em crescente volume para a Europa. Ao mesmo tempo, o ISIS surge como o ponto de confluência de um modelo de outro radicalizado e ofensivo, revanchista e ameaçador para a Europa e os europeus, não apenas na esfera dos modelos políticos, económicos e religiosos, mas situando-se no nível do confronto armado e da própria sobrevivência física.
Esta confluência de situações constitui alicerce para o ressurgimento na Europa de tensões internas que, atenuadas e minoradas em tempos de estabilidade política e social e crescimento económico, são permanentes e constituem espaços de refúgio em tempos de instabilidade e complexidade acrescidas, face às quais as populações – e sobretudo se envelhecidas, como as europeias – se recusam a identificar a mudança das possibilidades de futuro e rejeitam a necessidade de corrigir expectativas e modelos de construção social, preferindo a tentativa de regresso a modelos de organização que constituem recuo para memórias coletivas de segurança e conforto, preferindo ignorar a impossibilidade de restauração de um passado que já não tem presente, nem poderá ter futuro.
Estes modelos de conforto encontram nos modelos culturais e identitários referência estruturante, e têm aí por isso um ponto de ancoragem relevante. A afirmação de elementos culturais e identitários que alegadamente constituíam o elo de conexão e ligação social que permitia aos europeus a sua própria identificação enquanto tal por oposição ao outro – sejam eles políticos ou religiosos (democracia, direitos humanos, cristianismo...) – seria então o garante das condições de sobrevivência da Europa enquanto tal, e da forma de vida dos europeus. Trata-se, no entanto, de uma visão coartada naquilo que é a verdadeira estrutura iden- titária europeia.
Como lembrou Eduardo Lourenço 2 , existe, com efeito, uma herança histórico-cultural europeia justificada “por referência a princípios teóricos e éticos que têm a sua matriz no pensamento grego, na lei romana e na tradição religiosa judaico-cristã”. Mas esta matriz aparece incompleta em si mesma, não incluindo elementos suficientes para explicar esse ethos europeu reconhecido e sentido, mas difícil de descrever de forma clara e concisa.
É também esta a falha que Murray não consegue superar no seu livro, onde não chega a explicar por que é que, em termos estruturais, para a cultura e identidade europeias, esta relação com o outro significa inevitavelmente a morte suicida da Europa que, esgotada pela história e culpa colonial, se deixa invadir por um outro cujo atributo de vitória se situa no campo do seu sistema de crenças e comportamentos.
No entanto, para além do peso que os migrantes terão nos sistemas de saúde ou outros serviços públicos de bem-estar social, da repetição de alguns temas do foro criminal, e a afirmação de que as evidências que sugerem que a imigração tem benefícios económicos são todas erradas ou manipuladas, Murray não parece conseguir fazer opor a esse sistema identitário invasor, um contraparte europeu. Talvez por isso, oscile ele próprio entre o reconhecimento de que a fidelidade da Europa a si mesma lhe exigiu responder de forma consistente com os seus valores e princípios ao fluxo de migrantes.
Murray não chega a explicar por que é que, em termos estruturais, para a cultura e identidade europeias, esta relação com o outro significa inevitavelmente a morte suicida da Europa
A questão que subjaz, e como lembrou, mais uma vez, Eduardo Lourenço 2 , é que “A nossa história (...)[é] uma perpétua construção-desconstrução com a forma de uma reciclagem permanente dos seus tempos (...). A identidade europeia constrói-se permanentemente no diálogo entre as suas raízes históricas e culturais e o seu presente, nas suas certezas e nos desafios que enfrenta, numa dialética construtiva de um futuro que torna perene a sua própria existência.
Esta dialética tem um único – mas decisivo – ponto de esforço: trata-se de uma questão do foro da vontade. Na verdade, como definiu Ernâni Rodrigues Lopes 3 , a afirmação de uma cultura europeia tem como fator discriminante ser “uma cultura própria autoconsciencializada, assente na conjugação de uma memória e de um projeto”. Neste (re)conhecimento de quem somos, e do que nos define identitariamente, encontraremos certamente melhores respostas aos desafios que enfrentamos do que o enveredar, como sugere Murray, pela negação da abertura e encontro com o outro. Ainda que possível fosse, certamente nos encerraria numa memória sem projeto, sem janelas abertas ao futuro.
O livro vale, assim, como contributo ao debate em curso, e independentemente da opinião face ao tema em si, e às opiniões veiculadas pelo autor, o livro não deixa de suscitar uma série de questões sobre as quais é absolutamente necessário refletir hoje, se queremos que a Europa de amanhã se faça também com o contributo que hoje podemos oferecer.
1 ALMOND, I., Misrecognising the problem: Douglas Murray’s The Strange Death of Europe, 14 August 2017. Disp. em http://www.middleeasteye.net/ node/65245. Acedido em 10.abril.2018
2 LOURENÇO, E, A Europa desencantada. Para uma mitologia europeia. Gradiva, 2011
3 RODRIGUES LOPES, E., Europa, conceito cultural ou mera zona geográfica? In CAPELOA GIL, I. (org.) Identidade Europeia, Identidades na Europa, UCP, Lisboa, 2009
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